POR QUE LER SHAKESPEARE E CESARE CATÀ

O economista e professor Alberto Flaksman, que atuou por décadas como executivo na área da cultura, presenteou LVB&Co com perspicaz resenha crítica de um dos lançamentos recentes mais queridos da agência: PERGUNTE A SHAKESPEARE, do filósofo italiano, professor e performer Cesare Catà, lançado pela Leya, que vem com o subtítulo: “As respostas do dramaturgo mais famoso do mundo para os grandes desafios da vida cotidiana”. O texto de Catà compõe o livro de autoajuda mais sofisticado que já se publicou. Acreditando que, e mostrando como, as personagens de Shakespeare enfrentam dificuldades psicológicas e desafios emocionais que ainda são os mesmos que nos afligem na contemporaneidade, ele oferece interpretações que ajudam as pessoas a se entenderem em seus medos de amar (“Romeu e Julieta”), em seus narcisismos e envolvimentos com narcisistas (“Macbeth”), nas ansiedades e inseguranças (“Otelo”), nos sentimentos de inadequação (“Hamlet”), em suas paixões exacerbadas (“Antônio e Cleópatra”), em meio a outras peças clássicas. Como diz Alberto Flaksman, um livro que traz visões originais, de leitura fácil e agradável, que encanta tanto o conhecedor do Bardo de Stratford-upon-Avon como quem compra a ideia de que ele pode contribuir para o autoconhecimento emocional, ganhando de lambuja uma outra preciosa “autoajuda” – o instrumental perfeito para quem quer estrear na leitura da obra shakespeareana.

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Alberto Flaksman

Desde a sua morte em 1616, mal tendo chegado aos 52 anos de idade, o poeta, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare teve a sua obra traduzida em mais de 100 idiomas, descrita e analisada em centenas de milhares de páginas e em praticamente todas as culturas. Autores mais recentes de língua inglesa procuraram associar as criações de Shakespeare a acontecimentos em diferentes fases da sua vida, embora a biografia do bardo permaneça  ainda hoje mergulhada em muitas dúvidas e especulações. Em nosso país, as tragédias, comédias e dramas históricos do genial dramaturgo também receberam inúmeras traduções, muitas delas já encenadas em palcos brasileiros, além de comentários originais e criativos.

Mas, sem dúvida, a análise mais marcante da obra de Shakespeare, para a minha geração, foi aquela contida no livro “Shakespeare nosso contemporâneo”, escrito pelo professor polonês Jan Kott (1914-2001). Traduzida para o francês em 1962, a obra de Kott desfrutou de enorme prestígio e influência, inicialmente na Europa Ocidental, tendo sido avalizada pelo diretor de teatro inglês Peter Brook. Valendo-se das ideias do autor polonês, Brook levou à cena com grande sucesso a tragédia “Rei Lear”, que havia longos anos era considerada como impossível de ser montada.

Kott considerava-se um pensador de formação marxista, mas rompeu com a ortodoxia em 1956, junto com muitos outros intelectuais comunistas, depois das revelações dos crimes de Stalin feitas por Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS. Ainda assim, fiel à sua matriz ideológica, Kott escreveu uma inédita e criativa análise das peças de Shakespeare com ênfase nos movimentos históricos e sociais ocorridos na Inglaterra medieval dos séculos XIV e XV. A história, para os marxistas, caminha para um fim predeterminado. Mas o que fez de Kott um professor tão respeitado inclusive nos Estados Unidos é que ele não violou em momento algum a natureza universal da obra shakespeariana, a qual é inteiramente livre de qualquer princípio teleológico e apresenta os seus enredos de luta pela posse da coroa britânica como um processo histórico repetitivo.

Kott deu a esse processo o nome de Grand Mechanism (Grande Mecanismo), segundo o qual:

“A história feudal é como uma grande escada, sobre a qual marcha uma longa procissão de reis. Cada passo é marcado por assassinatos, perfídia e traições. Cada degrau se aproxima um pouco mais do trono. Mais um passo, e a coroa vai cair. Alguém vai simplesmente colhê-la… Mas depois do degrau mais alto, o que existe é a queda num abismo. Os reis mudam, mas todos eles – bons ou maus, corajosos ou covardes, ingênuos ou cínicos – repetem sempre os mesmos passos.”

Surge agora uma nova matriz de exegese da obra de Shakespeare. Desta vez, não baseada nos eventos históricos, e sim na psicologia dos seus personagens. Não que essa dimensão psicológica houvesse sido descartada pelos diversos comentaristas, inclusive o próprio Kott, ao longo dos quatro séculos que nos separam da morte do bardo. Mas Cesare Catà, o autor do excelente PERGUNTE A SHAKESPEARE: AS RESPOSTAS DO DRAMATURGO MAIS FAMOSO DO MUNDO PARA OS GRANDES DESAFIOS DA VIDA COTIDIANA, que a editora LeYa está lançando no Brasil em tradução de Silvana Corbucci, serve-se inteligentemente do fato de que os personagens de Shakespeare envolvidos em grandes tragédias passam por dificuldades psicológicas semelhantes àquelas que nós, leitores e simples cidadãos das sociedades contemporâneas, enfrentamos frequentemente, em razão das nossas inseguranças, angústias e decepções amorosas.

Que ninguém pense que Catà reduz a obra de Shakespeare a um mero manual de autoajuda. Pelo contrário, o que ele propõe é uma profunda e complexa meditação sobre os enredos e personagens de algumas das principais obras teatrais do gênio de Stratford-upon-Avon, partindo do princípio que esta reflexão, quase sempre de ordem psicológica ou psicanalítica, e por vezes mesmo filosófica, pode nos indicar saídas para descobrir novos caminhos mais claros e desimpedidos para a nossa vida. Esse, digamos, método inventado por Catà, é especialmente adequado quando se trata de analisar as dificuldades e barreiras nascidas dos amores ardentes, um tema recorrente nas comédias e tragédias de Shakespeare.

Como escreve o próprio autor no prólogo de PERGUNTE A SHAKESPEARE:

“Os dez capítulos que compõem este livro referem-se a dez problemas típicos da vida, e a cada um deles é associada uma obra shakespeariana que, por muitos aspectos, tocou a essência daquele problema.”

Simples assim. Um dos capítulos do livro é intitulado “Se o seu amor o abandonou, você precisa de Antônio e Cleópatra” (os títulos das peças são sempre grafados em negrito). Catà explica que:

“Em Shakespeare, as duas dimensões, histórica e psicológica, nunca são verdadeiramente distinguíveis… O colapso da República Romana e o fim da relação entre o general Marco Antônio e a rainha Cleópatra constituem a mesma realidade”.

Dito isto, Catà analisa a paixão entre esses dois seres magníficos, o grande herói e triúnviro romano e a poderosa e sedutora descendente de Ptolomeu que reina absoluta sobre o Egito. Quando eles se encontram, Antônio tem 43 anos e Cleópatra, 29. Uma diferença de 14 anos, que não tem grande importância. O que importa, verdadeiramente, é que eles passam a viver os dias mais maravilhosos de suas vidas. “Dias de beleza e de beijos, de êxtases e proezas”, escreve Catà.

Mas a questão psicológica essencial que Shakespeare descreve com a sua reescrita da narrativa original de Plutarco é, antes de mais nada, algo que o historiador grego não analisara detidamente: a divisão de Antônio entre o mundo romano e o egípcio, ou, nas palavras de Catà, “entre a honra e a paixão”:

O general leva o próprio amor ao extremo, transformando-o em sua única razão de vida, absolutizando-o a ponto de se descaracterizar, até não ser mais reconhecido por seu grupo de referência: seus soldados.”

Mas Antônio acaba voltando a Roma, deixando Cleópatra solitária em seu palácio de Alexandria. Em sua pátria de origem, ele se sente impelido a fazer um casamento de conveniência com a irmã de Otávio, um dos outros membros do triunvirato. Ao saber disso, Cleópatra espalha o boato de que havia cometido suicídio. Desesperado, Antônio volta ao Egito e tenta também se matar. Ferido, acaba morrendo junto à sua amada. Cleópatra o enterra e depois, sentindo que o seu poder se esvai diante de Otávio, que virá a ser conhecido como Augusto, o novo imperador de Roma, também se mata, fazendo-se picar por uma serpente.

Antônio é um homem excessivo, em sua coragem de guerreiro e em sua paixão. Quando acredita que Cleópatra o abandonou, ele tenta, como verdadeiro romano, tirar a própria vida. Cleópatra, a rainha todo-poderosa, também sucumbe diante da ausência do homem que é o objeto da sua paixão. Catà tira dessa tragédia uma conclusão, ao considerar que, no texto de Shakespeare, a perda do afeto do outro demonstra um excesso de dependência, contra o qual deveríamos nos precaver:

“Deveríamos fazer com que a estrutura da nossa personalidade não seja construída sobre a frágil palafita da efêmera alegria do amor. Isso nos impediria de sofrer por amor, e nos levaria a um relacionamento saudável e funcional com o outro.”

Como nos textos de Shakespeare não se encontra nenhuma lição ou mensagem moral, o próprio Catà admite que talvez não exista uma maneira indolor de se separar:

“Uma história de amor, quando é verdadeira, se termina, não pode terminar bem. A questão é tentar entender o que fazer com a dor.”

Talvez seja mais possível lidar com a dor quando somos adultos, mais maduros e experientes. Mas o que fazer quando somos jovens impulsivos e irrefletidos? Catà nos propõe uma resposta em outro capítulo, intitulado “Se não consegue se apaixonar mesmo encontrando pessoas maravilhosas, você precisa de Romeu e Julieta”.

Ao comentar esta conhecida tragédia envolvendo dois jovens que se apaixonam perdidamente, apesar de pertencerem a famílias rivais, Catà trata de dois temas: a “filofobia”, ou o medo inconsciente de se apaixonar , e, de forma contraditória, do amor como movimento de rebeldia, o qual é, para Shakespeare, perigosamente destrutivo. Catà crê perceber na obra do bardo a ideia de que o êxtase amoroso traz consigo o germe da tragédia, e é isso, segundo o autor italiano, que nos faz temer lançarmo-nos numa paixão, algo semelhante a jogarmo-nos de um penhasco sem conhecer a altura do precipício. Este é, na verdade, o sentimento dominante do próprio Catà, que admite ser vítima da “filofobia”.

É evidente que nem toda paixão, inclusive a dos adolescentes, conduz a um final trágico, assim como o medo de amar que aflige Catà está longe de ser universal. A explicação, segundo ele, é que:

“O amor nos assusta porque abre um mundo de forças irresistíveis e incontroláveis. Acho que este é o primeiro motivo que nos leva a ter medo de amar: o pavor de perder o controle. E há outro motivo, igualmente essencial: o medo… de que alguém entre em nosso mundo privado, perfeito em sua intocabilidade, e perturbe tudo.”

Um terceiro exemplo de tragédia que tem sua origem numa paixão amorosa leva Catà a comentar a história de Otelo e Desdêmona. A este capítulo, Catà deu o título “Se sofre de ansiedade, você precisa de Otelo”. Que ansiedade é essa? É aquela que nasce, segundo Catà, de uma questão não resolvida conosco mesmos, ou seja, o que ele chama de “nossos medos invisíveis”:

“Os medos que atribulam nossa existência podem ser de dois tipos: visíveis e invisíveis. Os visíveis são aqueles que têm um objeto concreto específico e uma causa evidente. Os invisíveis, por outro lado, são aqueles que não se baseiam em motivos racionais. Neste segundo caso, trata-se de enfrentar fantasmas, imagens da nossa mente.”

Os ciúmes que Iago habilmente instila na imaginação de Otelo, movido por pura maldade, inveja e espírito de vingança, por ter sido preterido numa promoção, estão na origem dos impulsos que levam o Mouro a, primeiro, desconfiar da fidelidade de sua esposa Desdêmona, e depois, a cometer seu crime horrível que hoje chamamos de feminicídio. Militar brilhante e respeitado em Veneza, onde é o general que comanda a armada local, Otelo se revela frágil diante da retórica de Iago porque é um ansioso e, por isso mesmo, facilmente influenciável.

Apesar dos seus méritos nos campos de batalha, sua ansiedade nasce do fato de ter a pele escura e não ser veneziano: Otelo é um estrangeiro, casado com uma mulher bem mais jovem e branca, oriunda de família veneziana importante. Desdêmona é bela, delicada e também sincera e generosa. Sua paixão por Otelo é grande e verdadeira, nascida ao ouvir as histórias narradas por ele das batalhas que enfrentou e venceu. Apesar da oposição do seu pai, Desdêmona decide corajosamente se casar com este homem tão diferente da sua grei. Escreve Catà:

“Nós, o público, sabemos que Desdêmona nunca traiu seu amado Otelo nem jamais o trairia em nenhuma circunstância. É ele quem a trai. Ele a trai com Iago… O ciúme de Otelo é um delírio, motivado por sua falta de intimidade com as palavras, sua ingenuidade, sua falta de introspecção, sua falta de confiança em si mesmo… É como se Shakespeare prescrevesse, quase como uma espécie de ansiolítico natural, a necessidade de ser mais forte nesses aspectos.”

Ao se matar, no último ato da peça, Otelo liquida a parte monstruosa e bárbara de si mesmo, aquela que nasceu do medo invisível de não ser um veneziano verdadeiro e não estar à altura de Desdêmona. As ações de Otelo nos parecem absurdas e estúpidas porque nascem do seu pavor de algo que na verdade não existe fora da sua mente, e o impede de viver em paz consigo mesmo.

William Shakespeare é, como sabemos, um autor inesgotável. E PERGUNTE A SHAKESPEARE é um livro de enormes qualidades. Cesare Catà nos propõe interpretações originais, de leitura fácil e agradável, que podem agradar a um amplo público. Tanto aquele que é apaixonado pela obra extraordinária do bardo inglês quanto aquele interessado em encontrar, a partir das suas peças de teatro,  algumas ideias novas e inspiradoras.