DENTES DE CROCODILO

Trecho do romance DENTES DE CROCODILO

por Maurício Torres Assumpção

Villa-Lobos havia sido convidado a participar de uma expedição antropológica, contou Wagner. O grupo deveria explorar as selvas do Mato Grosso, na região próxima à fronteira com o Paraguai. Villa pretendia captar o canto das aves, o rugido das feras, enfim, os ruídos da floresta e, se possível, a música das tribos indígenas. Queria mergulhar na sonoridade atávica brasileira, para absorvê-la e harmonizá-la, compondo algo realmente original, uma amálgama de sons nativos e urbanos. No meio da expedição, sob o calor úmido da mata, quando a floresta se fechava como um manto verde que cobria todo o céu, quando já se esvaíam as forças de antropólogos e carregadores, Bilu, a cadela que acompanhava Villa-Lobos, desapareceu. Bilu! Bilu! Nada. O cachorro ficara para trás, Villa tinha certeza. Volta, não volta, hesita, grita para o grupo à sua frente, que esperem um minuto. Ele volta já. Vai procurar a cadela. Villa retorna pela trilha aberta pelo grupo até que, à sua direita, ouve o ganido de um animal. Usando o facão para abrir uma nova picada, entra pela mata fechada até encontrar Bilu deitada, imóvel, cravada por uma flecha. Villa se ajoelha, examinando o corpo da companheira fiel. Morta. Levantando-se, olha para cima e se depara com um grupo de homens, inteiramente nus, com os corpos e cabelos pintados, flechas e lanças apontadas em sua direção. Está cercado. Guiado pelos índios, sob a ameaça das lanças, Villa carrega o corpo de Bilu sobre os ombros, penetrando na floresta, afastando-se cada vez mais do seu grupo de expedicionários. Depois de meia-hora de caminhada, encharcado de suor, tropeça, cai sob o peso do animal, sem conseguir se levantar. Os índios recuperam o corpo de Bilu, chutam Villa, fazem graça, antes de o levantarem à força, empurrando-o para a frente do grupo. A trilha continua por mais duas horas até que chegam a uma clareira, um arremedo de aldeia. São nômades, julga Villa, enquanto os índios o despem, rindo, apontando para sua barriga pálida, seus membros peludos, suas nádegas flácidas. O alvoroço atrai as crianças e as mulheres, que gritam, gargalham, alisando a pele de Villa, como se quisessem remover a tinta branca que a cobre. Depois, os homens o amarram a um tronco, enquanto as mulheres buscam toras, galhos e gravetos para montar uma grande fogueira. Ao cair da noite, quando, exausto, mantém-se de pé pela força das cordas que o amarram, Villa é cercado pelos índios, que cantam e dançam ao seu redor, como se consagrassem seu corpo aos espíritos da floresta, como se o preparassem para o grande banquete da tribo.

Por três noites e três dias, Villa-Lobos foi celebrado, não como compositor, mas como o prato principal daquele rega-bofe inesperado. Jequiri tumurutu taiapó camarajó caitá, cantavam os índios, enquanto Villa, sedado pelo cansaço e pelas beberagens que lhe serviam, assimilava, de olhos fechados, tudo o que ouvia. Jequiri tumurutu taiapó camarajó caitá! Morreria o homem, mas não morreria o músico, curioso, fascinado pela melopeia daqueles silvícolas, prontos para encarnar a valentia daquele branco, comendo-o como churrasco mal passado. Jequiri tumurutu taiapó camarajó caitá! Não, Villa não morreria sem incorporar aquele som puro das matas, transmitido a milênios de geração em geração. Entorpecido, escutava, nas suas últimas horas, a melodia instintiva, arquetípica, viva na autenticidade do canto espontâneo, original. Um canto único, intocado pela influência da música europeia, ocidental, morta de tão civilizada. Jequiri tumurutu taiapó camarajó caitá! Entregando-se à morte, livrando-se do terror, Villa-Lobos acionava os microfones da memória, para que, numa vida além, o canto nativo das florestas brasileiras eternamente o acompanhasse. Jequiri tumu… Numa síncope inesperada, a música se cala. Villa abre os olhos. Está cercado pelos índios, que estão cercados por homens brancos. Padres, franceses, missionários. Em nome de Deus, soltem este homem.

Villa estava salvo. Não seria mais comido. Mas digerira, por sua vez, a melopeia indígena, calcada no mais fundo da sua memória pelo trauma de ter sido temperado como um leitão.