Miguel Sader
Na semana passada, esta coluna falou da tendência de romances biográficos sobre mulheres históricas, vindos especialmente da Alemanha. Hoje, traremos um outro movimento que fomos identificando ao longo de 2020 e que chega à época de Frankfurt com força total: os memoirs literários sobre saúde mental escritos por psiquiatras ou psicoterapeutas.
Diferentemente da primeira corrente, a exploração desse novo interesse por memórias psi não é observada em um só território, mas dois: Estados Unidos e Reino Unido. Foi dos EUA, da editora Houghton Mifflin Harcourt, que chegou TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUEM, da psicoterapeuta Lori Gottlieb, comprovando que o gênero também está em alta por aqui. Publicado pela Vestígio, selo de não-ficção do Grupo Autêntica, em abril, um ano após o lançamento americano em 2019, o livro é um sucesso de público e crítica, nota 10/10 conferida pelo influenciador Bookster.
Após Lori Gottlieb, chegaram muitos “look-a-likes”, jargão do mercado editorial para os livros que seguem a exploração de um campo aberto ou identificado por algum pioneiro no gênero. Por exemplo, Harry Potter, que abriu para um mundo de romances de fantasia para adolescentes; ou “Crepúsculo”, que desvendou o interesse jovem por vampiros.
Felizmente, os memoirs ou depoimentos de psiquiatras e terapeutas têm mais conteúdo, primam pela qualidade, com suas particularidades narrativas, mas sempre abordando temas como depressão, ansiedade e loucura. A própria HMH já engatilhou o lançamento de um novo título nessa linha: COMMITTED, “Comprometido”, de Alan Stern, memórias da sua residência em Psiquiatria na SUNY (State University of New York), comenta de maneira instigante e envolvente os casos de distúrbios mentais com os quais o autor se deparou no início de sua carreira. O lançamento está previsto para o primeiro semestre do ano que vem.
“Escreve-se muito sobre mentes brilhantes, mas muito pouco sobre as mentes perturbadas.” Foi assim que Anne Bihan, diretora de direitos estrangeiros da britânica OneWorld Publications justificou o sucesso de INTO THE ABYSS, “No abismo”, notas do neuropsiquiatra Anthony David sobre a loucura. O livro foi publicado em fevereiro no Reino Unido e desde então seus direitos de tradução foram negociados com a China, Espanha, Itália, Polônia, Romênia, Rússia e Turquia. Também na Grã-Bretanha, sairá em março de 2021 pela Sandstone Press FINDING THE TRUE NORTH, “Encontrando o verdadeiro Norte”, reunindo reflexões emocionantes da psiquiatra e professora Linda Gask, que rodou o mundo todo – inclusive o Brasil – enquanto investigava a própria profunda depressão comparando os efeitos _ entre outros recursos, terapêuticos ou não, para os quais correm os deprimidos _ das medicações e do álcool em si mesma e nos pacientes.
Há variações na corrente. A agente nova-iorquina Anne Edelstein, notadamente especializada em literatura sobre espiritualidade e religião, preparou para esta temporada um catálogo recheado de títulos que fazem uma mescla entre essas questões e a psicanálise. THE ART OF SOLITUDE, “A arte da solidão”, do professor especialista em budismo Stephen Batchelor, publicado em fevereiro pela Yale University Press, é um bom exemplo. Fugindo da perspectiva de quem cuida e dando voz aos pacientes, Anne Edelstein também apresentou THE SCAR, de Mary Cregan, relatos profundos de alguém que lutou contra a depressão por décadas _ e venceu.
Ansiedade, depressão e esquizofrenia são males que assombram a humanidade há séculos, tendo sido tratados como tabu em boa parte desse tempo. Vê-los naturalizados e representados na literatura é um bom sinal: estamos, enfim, resgatando essas questões das sombras e trazendo-as para o debate público, o que permitirá que se vislumbrem medidas de prevenção e tratamento adequadas.