O GRANDE SILÊNCIO

A narrativa que fecha esta tensa semana de eleições presidenciais americanas é o belo conto O GRANDE SILÊNCIO, de Edney Silvestre: a história de um menino que, preso a uma realidade opressiva, aguarda, sem saber, a libertação. Referindo-se às perdas impostas pela pandemia, Edney diz: “dessa incerteza ilimitada tirei os elementos para compor o conto”, que foi especialmente escrito para a áudio-série “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, idealizada pela editora Mariana Rolier no fim de março, auge da quarentena. O projeto reuniu histórias curtas de grandes autores sob o amplo tema do “enclausuramento com final feliz”, e fez sucesso. Nas próximas semanas, publicaremos em primeira mão os contos que os autores representados pela VB&M escreveram para a série. Publicados em podcast pela Storytel, saem aqui pela primeira vez em forma escrita.

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Edney Silvestre

Então o menino abriu a porta e tampouco viu nenhum adulto. Da entrada do prédio até os altos muros que envolviam o bairro, ninguém pelas calçadas rachadas ou ruas de paralelepípedos a empoçar água lamacenta das chuvas dos últimos dias. Nem guardas, nem detidos, nem coveiros, nem distribuidores das rações.

Ninguém.

Na parte superior da muralha, abaixo dos espessos círculos de arame farpado, nenhum soldado armado caminhava entre as torrinhas das sentinelas. Não havia tampouco atiradores nos ninhos de metralhadoras em cada ponta, nem homens fardados manejando os holofotes das caçadas noturnas de fugitivos do confinamento esgueirados por becos e aleias, fatais estradas de luz vistas pelo menino com fascinação e temor através das frestas das tábuas pregadas nas janelas do apartamento da avó, como nas de todas as edificações dentro dos muros.

Por sobre a respiração asmática da avó deitada a seu lado no mesmo colchão, ouvia as risadas dos militares ao atirar e acertar o que se mexesse sob o facho de luz. Se uivasse de dor, o menino já sabia: era algum dos velhos insubordinados. O corpo só podia ser retirado pelos outros velhos quando já estivesse dia claro. A avó o proibia de ver. Mas havia as frestas. E de lá o menino via. E ouvia os barulhos do dia.

Hoje, nada.

Além dos muros seus olhos não alcançavam. Apenas o céu acima, nada mais, alternando tons de azul e cinza, conforme o tempo esquentava ou esfriava. Hoje estava quente. Hoje estava azul. Hoje o azul estava riscado por espirais de fumaça lá longe, como as que vira quando incendiaram um edifício no final da rua ali perto. Irremediavelmente contaminado, comentou a mãe. O menino não sabia o que significava irremediavelmente. Nem as palavras no cartaz colado no tapume, avisando da interdição de novas construções naquele local, nem dos avisos mais antigos, nas cercas que isolavam outros terrenos, de outras construções demolidas.

Como nunca lhe fora consentido sair além muros, a cada momento imaginava mundos diferentes do lado de lá, compostos por retalhos das histórias sussurradas entre a mãe e a avó quando achavam que dormia. Quando os três ainda viviam juntos no mesmo cubículo. Antes de a mãe sumir.

Em todos os seus mundos, ao contrário dos cambiantes e coloridos delas, havia sempre os mesmos adultos fardados e armados, berrando aos moradores que voltassem para dentro de suas casas. A todos os residentes, entendera desde cedo, ou a avó lhe ensinara, ou a mãe, era interditado ir ao outro lado, ou sair à rua.

Sua mãe e sua avó, deduzira de seus cochichos, haviam um dia vivido além muros. Mas lhe diziam que não havia nada lá. Mais nada, lá.

O sol estava alto. Hora do almoço, o menino sabia, porque tinha fome. Mas não vinha cheiro de comida de lugar nenhum.

Tudo parado à sua volta.

Exceto os rolos de fumaça ao longe, subindo, crescendo.

Um grande silêncio pairava sobre tudo.

Tal como dentro de casa, quando acordou sem a habitual azáfama da avó na cozinha ou sua tosse na sala, sem os xingamentos do casal briguento do apartamento ao lado, sem o ranger da cadeira de rodas do paraplégico no andar de cima, sem o som compassado da máquina de costura da senhora do térreo, os últimos moradores do prédio.

Conhecia-os todos, embora estivesse proibido de entrar em suas casas ou conversar com eles, assim como a eles era vedado qualquer contato entre si ou com o menino do terceiro andar. Era-lhe permitido subir e descer pelas escadas entre os quatro andares. Fazia isso o dia inteiro, sempre correndo, até cansar. Câmeras e microfones asseguravam o bom cumprimento das normas de convivência entre os moradores. Equipamentos, mãe e avó alertavam, capazes de captar imagens mesmo no escuro. O menino acatava as proibições. Até onde ia sua compreensão delas.

Conversar com os vizinhos, por exemplo, cada um de um lado da porta, aprender seus nomes, ouvir suas histórias, fazer perguntas, não lhe parecia infringir as regras. Assim ficou conhecendo respostas para as incontáveis indagações jamais respondidas pela mãe. Ou por sua avó. Porque fora infectologista condecorada nos primeiros anos da epidemia, foi-lhe dado o privilégio de ser acompanhada pela nora viúva e seu bebê, quando mostrou sinais intratáveis de contaminação e foi enviada para o SSC-19, onde eram acolhidos e atendidos os mais frágeis.

Cada morador descia uma vez por semana, separadamente, para pegar sua cesta básica. Os entregadores vestiam macacões brancos do pescoço aos pés, calçavam botas e luvas também brancos, tinham as cabeças cobertas por capacetes com tubos ligados a cilindros de ar às costas. Os homens armados que os escoltavam, igualmente envoltos em vestimentas protetoras, eram chamados de Agentes da Paz. A operação-alimentação, lhe foi explicado pela avó, era parte do Isolamento Vertical decretado anos atrás.

Na fase mais aguda da epidemia, para evitar a contaminação dos mais jovens, garantidores da produção de bens e alimentos, os maiores de 60 anos foram realocados e isolados em bairros planejados para contê-los, os SSC – Setores de Saúde Controlada. Quando ficou claro que a peste se instalara por todos os continentes e que as constantes mutações do vírus o haviam tornado permanente, as áreas metropolitanas foram esvaziadas e os cidadãos em idade produtiva, organizados por faixa etária e atividade, instalados em povoamentos que uniam indústrias e agropecuária a áreas de moradia.

A Nova Ordem, adotada para as populações sobreviventes no país do menino e pelas nações remanescentes, garantia trabalho, abrigo, alimentação, cuidados médicos e, especialmente, paz e ordem para os quase 1 bilhão de habitantes ainda aptos.

Decidiu subir, procurar melhor alguma coisa de comer. Não encontrara mingau nem pão à mesa, como a avó costumava deixar toda manhã. Antes de entrar reparou que a nuvem de fumaça se espessara e ia-se abrindo como um cobertor acinzentado.

Ouviu apenas seus passos nos degraus de metal. Lembrou-se de quanto todos os apartamentos estavam ocupados, antes de os ruídos vindos dos cubículos diminuírem até o silêncio atual, embora nunca tenha visto nenhum morador ir embora, ou ser levado. Passara a entrever apenas o marido ou a mulher do casal briguento pegando as rações, e a senhora magra que parecia costurar interminavelmente, não conseguia imaginar para quem. O homem da cadeira de rodas içava seu pacote por uma corda. Ouvia-o gemer.

Era com quem mais gostava de disfarçar que não conversava. Um segredo guardado até de sua avó.

Entre subidas e descidas pelas escadas, ouviu sua voz uma primeira vez. Ei, sussurrou. Ei, guri, murmurou na vez seguinte. E logo outras vezes. Ei, ei, ouça, guri, ei, ouça. A cada passada pelo andar, percebia o velho da cadeira de rodas a lhe dizer uma palavra. Uma só. Quando entendeu o que pretendia, passou a juntá-las.

Existem. Aldeias. Libertadas. Da. Nova Ordem. Independentes. Além. Muros. Trabalhadores. Livres. Resistentes. Unindo. Outros. Trabalhadores. Independentes. Formando. Brigadas. Você. Será. Salvo. Guri.

O menino tentava imaginar as aldeias de que falava o velho, mas voltava sempre a seus mundos de adultos fardados a berrar ordens, ou às figuras de branco com capacetes ligados a cilindros nas costas. E sempre muralhas, vigias, patrulhas, ninhos de metralhadoras, estradas de luz dos holofotes caçando pelos becos.

Não encontrou nada para comer. Sentiu cheiro de queimado, vindo de fora. Entrava pelas frestas um calor incômodo.

O trecho de céu que entreviu estava coberto por nuvens negras. Parecia ter anoitecido. Partículas giravam no ar, como uma garoa escura. Algumas entravam pelas frestas. Pegou. Sujaram seus dedos. Eram cinzas.

Entreviu labaredas, altas, próximas da muralha. Ouviu ruídos de motores, um clangor metálico desconhecido, um estrondo, logo outro, pareceu-lhe que uma das torres de vigia estourava sob algum impacto, logo blocos de pedra despencavam, até onde conseguia enxergar através das frestas. Outro estrondo, e o passadiço das sentinelas desabou. O clangor pareceu mais próximo. Agora eram múltiplos os ruídos de motores. O calor aumentara. Labaredas envolveram o ninho de metralhadoras.

Desceu as escadas correndo.

Lembrou-se do velho sussurrando. Cada palavra. Uma a uma.

Existe. Resistência. Além. Muros. Existem. Brigadas. Elas. Virão. Libertar. Todos. Nós. Um. Dia. Talvez. Breve. Derrotarão. A. Nova. Ordem. Talvez. Demore. Talvez. Breve. Talvez. Eu. Ainda. Seja. Resgatado. Mas. Você. Com. Certeza. Será. Guri. Com. Certeza. Um. Dia.

Então o menino abriu a porta e viu um adulto se aproximando. Ao fundo, por um grande rombo no muro, surgiu um canhão, montado sobre rodas, puxado por mulas, seguido de outro, e mais um. Com eles entraram homens e mulheres montados em cavalos. Outras dezenas e dezenas os acompanhavam, a pé, em filas ordenadas. Portavam foices, facões, ancinhos. Alguns, armas que o menino desconhecia, mas que lhe pareceram antigas.

O adulto à sua frente parou. Era jovem. Não usava uniforme. Nunca tinha visto um adulto jovem sem uniforme.

O adulto jovem à sua frente sorriu.

O guri entendeu.

Finalmente tinham chegado.