AMOR DE FAMÍLIA

A coluna Narrativas fecha a semana de nosso blog com mais um conto escrito para a série “Vai Ficar Tudo Bem”, da Storytel, e publicado pela primeira vez em texto: “Não importa onde a gente esteja”, de Luize Valente, em que uma mulher desiludida com o casamento reencontra a segurança no amor de sua irmã e seu sobrinho.

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Não importa onde a gente esteja
Luize Valente

Foi a irmã quem ligou, alarmada. “Vocês estão em casa? O Corona chegou aí? Aqui entramos em quarentena”. Ela pressionou a tecla do viva voz. Ficar em casa era sua rotina. Dias, semanas. A irmã só a procurava para falar de tragédias e catástrofes. “Ei, você ouviu o que eu disse? Ou continua alienada no seu mundinho da ficção?” Ela levantou os ombros. “Vou pegar uma cerveja.” Abriu a geladeira. “Uma Stella.” Sussurrou para si mesma. Foi uma Corona, com um sexto de limão espetado no gargalo, a bebida que selou o primeiro encontro com Heitor. Restaurante mexicano, barulhento, com mariachis cantando parabéns pra você, no aniversário de um amigo em comum, íntimo dele – única razão para ele estar ali numa quarta-feira –, e primeiro colega de trabalho dela, recém-chegada ao Brasil, estrangeira de mesma língua, ainda solitária na cidade – única razão para ela estar ali numa quarta-feira. Já se iam oito anos. A irmã seguiu com a ladainha de números e precauções de onde ela pescava uma e outra informação e soltava um “nossa”, vez por outra, para fingir alguma atenção. Corona. Lavar as mãos. Cuidado com a asma. Grupo de risco. Álcool gel. Itália. Cancela tudo. Febre. Prende a respiração por dez segundos. Tio Virgílio. Não põe o pé na rua. Só lhe vinha a imagem de Heitor. Filho de Príamo, o rei de Tróia. Comandante das tropas na guerra contra os gregos. Mais rei que o próprio pai. Heitor, o que guarda, o mais valente dos troianos. Heitor, o que a protegeria para sempre. Ela gostava de dizer que não havia nome que mais se encaixasse numa pessoa do que o dele. No último ano, porém, ela ansiara pela chegada de Aquiles. Ansiara por ver o corpo de Heitor exposto e arrastado, por dias, atado ao carro puxado pelo herói grego. Meses de total dessintonia, horários trocados, programas distintos, opiniões opostas – até a marca do detergente causava estresse nas compras online que ainda faziam juntos. Mantinham o mesmo quarto. Num arranjo tácito, dormiam em turnos diferentes. Desde que ela deixara o dia a dia da redação, passando a ser dona do próprio nariz e agenda, preferia varar as noites e adormecia ao amanhecer. Já Heitor levantava às cinco e meia, religiosamente, para correr antes do trabalho – afinal, havia sempre uma maratona, e se ela um dia, um dia apenas, se dignasse a experimentar, entenderia. Ela reclamava com as amigas, não suportava mais aquilo, a vida tinha que ser mais. Heitor se transformara num chato, um chato que só falava de corridas, que sempre sabia onde comer o melhor isso, o melhor aquilo, que desmerecia todos ao redor com sua falsa modéstia – como ela via isso tão claro, agora! – que dormia no primeiro minuto de qualquer filme, mesmo no cinema, que não dava a mínima para séries. “Foi para isso que você largou o jornalismo?” Mesmo assim, ela ia levando, afinal, ninguém aguentaria Heitor, seria canonizada, ele tinha muita sorte em tê-la. Ele falava cada dia menos, ela cada dia mais. “Nós não conversamos, Heitor, você não tem nada para dizer?” Ela ia para varanda e acendia um cigarro de um maço esquecido por algum amigo. Ele dava uma olhada de “me poupe”, cerrava a porta de vidro e mudava de cômodo. Ela esmagava a ponta recém acesa na mureta. No banheiro, mirava-se no espelho, o botox vencido não segurava o friso entre os olhos, ressaltando uma aparência mal humorada. Logo ela, tão risonha. Venerava a leveza de uma testa. Estava dura para mais uma agulhada. Nem pensar em pedir algo a ele, quanto mais dinheiro. Heitor – e depois de oito anos ela tinha que admitir – nunca fora mão aberta. Mas agora tornara-se um mão fechada regulador de migalhas. Justo com ela, que sempre fora generosa, independente e companheira quando ele decidiu abrir o próprio escritório. Eles moravam no apartamento que ela comprara com a herança dos pais e dividiam as despesas. Ela não precisava de Heitor, era melhor estar só. Era bonita, divertida, tinha um humor ácido e charmoso. Havia engolido tantos sapos por ele, aguentado as gêmeas que pulavam na Corbusier malhada – única peça à qual tinha apego na vida, porque era Corbusier das antigas, herdada do pai. Uma cadeira que cruzara o Atlântico com ela. As gêmeas pulavam só para irritá-la. Ele consentia. “São crianças. Desapega!”. Se ela quisesse filhos teria os dela. Apesar de tudo, de tudo, de tudo que ela aguentou, foi ele quem, num fim de tarde duas semanas antes, viera com o papo da separação. Papo não, comunicado. De repente as lágrimas escorreram. Ela ficou sem chão. “Não se acaba assim um casamento de oito anos”, ela gritou em meio aos soluços. “Sem uma conversa, sem uma explicação.” “Conversa? Explicação? Tem um ano que não dormimos juntos, que mal transamos e transamos mal, tudo é pretexto para discordarmos, não há um dia que a palavra separação não saia da sua boca!” “Quem é a piranha?”, ela escorregou entre os dentes cerrados, com raiva de si mesma pois jamais se imaginou em cena tão patética. É claro que havia alguém. Ele nem relutou, nem tentou poupá-la. “Mariângela.” “Mariângela?” Depois de alguns parcos segundos ela repetiu. “Mariângela? O ser humano mais, mais, mais inóspito do planeta?” Foi a única palavra que lhe veio à mente. “Não se usa inóspito para definir uma pessoa. Você está sendo rude e, além do mais, Mariângela te admira muito, adorou sua novela.” “Primeiro, a novela não é minha, sou uma reles colaboradora. Segundo, a palavra inóspito cabe sim! Mariângela é um ser humano totalmente inabitável! É um vazio áspero e nada acolhedor.” Ela caiu em prantos e abraçou os joelhos enfiando o rosto entre as pernas. Levantou levemente a cabeça esperando alguma reação dele, um gesto de carinho, acolhimento. Nada. Era como se a intimidade tivesse fugido apressadamente pela porta da varanda escancarada. “Você está apaixonado? Há quanto tempo?” Silêncio. “Vocês vão morar juntos?” Silêncio. A cumplicidade também havia corrido atrás da intimidade. “Você poderia ter escolhido alguém mais interessante!” Ela fez uma pausa e mirou o vira-latas que a fitava, esparramado sobre o tapete felpudo da sala. “Você vai levar o Einstein?” Ele levantou apenas uma sobrancelha. Silêncio. “Eu não sei quem é você, sinceramente, suma da minha frente.” Foi a última vez que se viram. Ela ficou três dias na casa de uma amiga. Tempo suficiente para ele empacotar roupas, livros e tudo que coubesse na mala e banco traseiro do SUV, como ele se referia ao próprio carro. Aliás, se havia algo realmente admirável em Heitor, era o desprendimento. Heitor acreditava que o homem na contemporaneidade tinha que aprender a viver apenas com o que coubesse em seu próprio meio de locomoção. A frase era dele. A pequena família de sangue era composta pela irmã – do outro lado da linha e do oceano – e um sobrinho. Os pais e avós já haviam morrido. Tinha tios e primos. Poucos e distantes, espalhados pelo mundo. Eram família política, como diziam os espanhóis. A irmã, de certa forma, também se tornara família política, apenas sangue, parentesco e sobrenome. Houve um tempo, muito distante, perdido na infância, em que haviam sido bem próximas. Desconversou quando a irmã perguntou sobre Heitor. Vivia do lado de lá do Atlântico, de que adiantaria falar da separação? Da falta que já sentia dos pelos do Einstein no sofá? Do ronco no primeiro minuto de um filme? Heitor, que sua irmã mal conhecia, partiu levando muito mais do que a tralha empilhada no SUV. Até duas semanas atrás, ela não tinha sensação de exílio. Sempre fora uma viajante desprendida. Deu um gole longo na cerveja. A irmã continuava destrinchando o rosário de calamidades. A irmã era chegada a um drama. Ela a despachou com uma desculpa esfarrapada. Ligou então a televisão ao mesmo tempo em que espiava sites e redes sociais. As notícias eram mesmo calamitosas. Onde ela estivera nos últimos dias que não vira nada daquilo? As mensagens entupiam o celular. Amigos de todos os cantos, preocupados, solidários. Enxurrada de alertas. O peito apertou. Como estaria Heitor? Nem sinal de vida? O pai diabético! Será que ele estava bem? O país desabando, o mundo desabando. A mensagem dele piscou. “Oi, você tá vendo o caos né? Estou ferrado, agitando home office, mil coisas. E o apê aqui não tem varanda nem área. Será que o Einstein pode ficar aí? Peço para levarem depois do banho, ok? Bj.” O mundo dela desabando. “Me comove sua preocupação comigo, estou cuidando da asma. Sim, joguei fora aquele maço!” Digitou com raiva, com mágoa. Ia apertar a seta de envio, quando piscou nova chamada da irmã, agora de vídeo. Relutou, estava com a cara péssima, mas decidiu atender. Uma carinha sorridente encheu a tela do celular. Era o sobrinho. A primeira reação foi de estranheza, e um certo incômodo. Tinham pouco contato. Ela mandava presentes no Natal e no aniversário. A irmã sempre dava um jeito de avisar o dia pois ela mesma não guardava a data. Não tinha jeito com crianças nem assunto com elas. Será que ele gostava de música? Preferia livros às armas de brinquedo? Era mais dos jogos virtuais ou das quadras esportivas? No visor, uma boca se abriu num sorriso sem os dentes da frente, mas não emitiu palavra. Ficaram se encarando. A voz da irmã soou em off. “Ele que insistiu. Não tenho nada a ver com isso. Queria falar com você. Agora está tímido!” O garoto aos poucos foi soltando a voz depois de limpar a garganta como se começasse um discurso. O que provocou um risinho involuntário dela. “Mamãe disse que nós temos que ficar em casa porque assim vamos combater o vírus. Não precisamos ter medo, mas temos que cuidar uns dos outros. Ela contou que quando vocês eram pequenas, ela tinha medo de muitas coisas. Aí você dizia para ela fechar os olhos, com bastante força, que você viajaria para dentro do coração e a protegeria. Não importava se estivessem perto ou longe. Agora eu fecho os olhos e mamãe viaja para o meu coração. Estamos fazendo uma corrente. Eu estou ligando para dizer que quando você estiver assustada, é só fechar os olhos e pensar em mim. E pode ligar quando quiser. Assim você protege a mamãe, mamãe me protege e eu protejo você. Não importa onde a gente esteja. É isso. Tchau!” O menino saiu correndo da frente do vídeo dando espaço à irmã. As duas se olharam e, de repente, tinham seis e oito anos. A irmã fechou os olhos com força e levou as mãos à altura do coração. Nada disseram e desligaram em seguida. Ela releu a mensagem de Heitor e a resposta que havia escrito. Ao invés da seta de envio, apertou deletar e digitou nova resposta. “Einstein pode ficar o tempo que quiser. p.s.: um abraço forte pro seu pai.” Finalizou também com um bj e um emoji de mãozinha dando ok. Uma alegria súbita tomou conta dela. Em breve, os pelos de Einstein descansariam no sofá e ela sentaria no chão. Iria arrumar os armários, trocar os quadros de lugar, quem sabe pintar a área. Terminou a cerveja enquanto vasculhava o computador atrás de um e-mail antigo que a irmã mandara com fotografias. Encontrou o retrato do menino. Fechou bem os olhos e apertou as mãos sobre o peito. Estava mais do que na hora de renovar os porta retratos.