Conversa Com (A)Gente Gustavo Ramos, editor da Red Tapioca e criador do BiblioTechie, aplicativo recém-lançado que oferecerá uma vasta biblioteca de contos, novelas e textos curtos de clássicos e grandes autores brasileiros e internacionais ao leitor que aprecia o formato digital. Publicitário com MBA no Instituto Europeu de Administração de Empresas (Insead), na França, Gustavo trabalhou em produtos de consumo e consultoria por 15 anos e em 2004 entrou no Grupo Globo, no qual foi diretor-geral da Som Livre e, em seguida, da Horizonte, a divisão de novos modelos de negócio em TV paga. Em 2019, fundou a Red Tapioca. Com sua experiência de executivo da área cultura, que lhe propiciou participar da ampla conversão da música e do audiovisual à linguagem e ao consumo digital, Gustavo está decidido a compreender e vencer a resistência do livro e do texto escrito ao formato eletrônico. Mas ao contrário do que pode parecer de início, a proposta da BiblioTechie não é competir com a edição tradicional, mas agregar: “Quero coexistir. Não imagino que alguém ame livro mais que eu e não quero que uma disrupção do negócio do livro esteja no meu epitáfio.”
VB&M já incluiu na BiblioTechie vários contos brasileiros representados pela agência que haviam sido publicados somente em áudio, como a joia MADAME TANGERINA, de Walcyr Carrasco, e O OUTRO LADO DO TANQUE, de Luize Valente, mas Gustavo está correndo atrás também da produção contemporânea estrangeira. Tem telefonado diretamente para autores que admira, como John Wiswell e Hugh Boehm-Steinberg, e paga o fee por pay-pal. Isso, o que está fechado, porque estão em andamento negociações com poderosíssimas agências de fora em torno de alguns dos nomes mais conceituados da literatura atual.
VB&M: Qual o conceito do BiblioTechie e o que o motivou a desenvolver esse projeto?
GR: O BiblioTechie é um aplicativo para celulares Android e iOS que oferece uma biblioteca crescente e variada de ótimos textos curtos de grandes autores e é acessado por assinatura. Uma boa parte da motivação para o seu lançamento é, honestamente, intelectual. Passei por Música e Vídeo e vi em ambos o consumidor tomar o controle, o “asset” médio consumido reduzir de duração, a dimensão social ser valorizada e o modelo de receita passar à assinatura. Nenhum desses quatro itens se aplica à Literatura, que transfere poucos bytes e por isso parece ideal para uma revolução digital. No entanto, ela segue com menos de 10% de receita nesse modelo, enquanto Vídeo e Música já ultrapassaram 50%. Quero entender isso e testar algumas ideias.
VB&M: O que você pode revelar do modelo de negócio do BiblioTechie? Que objetivos pretende alcançar?
GR: Vou passo a passo. O primeiro é testar a hipótese de que o consumo de textos mais curtos no celular via assinatura fica de pé. Pode não ficar, e aí volto à prancheta e ajusto conteúdo, preço, promoção, tudo que puder. Mas acho que fica de pé, sim, e aí vou acelerar o projeto.
VB&M: Como curador, você está colocando os seus gostos pessoais na seleção dos contos ou há outros critérios que orientam a formação do acervo?
GR: O consumo digital, no modelo Business to Consumer, traz uma riqueza de dados impressionante. Em breve já vamos conseguir criar “clusters”, entender quais são os usuários mais propensos a assinar, quem permanece mais tempo, etc. Até chegar a esse ponto, tento ao máximo esquecer minhas preferências ou o quanto o produto poderia ser um reflexo meu e trazer o máximo de variedade, para tentar captar estas preferências do assinante. Variedade de estilos, geografias, épocas, temas, tudo o que conseguir. Além disso, também estou trazendo e organizando o que está à mão. Pusemos obras em domínio público – e me apaixonei por Alcântara Machado. Acabamos de traduzir “Fazenda dos Animais”, “O Médico e o Monstro”, “Dublinenses” e os textos curtos de Virginia Woolf, por exemplo. Agora, vamos em busca de um ou outro autor best-seller, para avaliar corretamente a hipótese sobre a qual construímos o BiblioTechie.
VB&M: Por que contos? Há vontade de expandir o acervo para outros gêneros de narrativas curtas?
GR: O conto e a novela são, para usar uma expressão de engenheiro, “sub-ótimos” para o mercado editorial. Ninguém sabe muito bem o que fazer com eles, especialmente com o conto. Além disso, há evidências de que meu público-alvo, classes A e B, 15 a 39 anos, ama ficção. E não acredito que alguém realmente queira ler um livro longo na telinha do celular. Finalmente, não quero invadir o negócio de agentes e editoras. Então, contos em especial, mas também novelas, se encaixam perfeitamente no modelo. Quero coexistir. Não imagino que alguém ame livro mais que eu e não quero que uma disrupção do negócio do livro esteja no meu epitáfio. Aliás, acho que o BiblioTechie pode ser um bom veículo promocional para as editoras, que poderiam ceder alguns textos a título de divulgação e em troca eu coloco um link no app para a compra da obra da editora – não consigo imaginar uma razão para isso não funcionar.
Então, busco limitar os textos àqueles de no máximo 50, 60 páginas, ainda que aceite narrativas mais longas se estiverem em domínio público. E tenho explorado flash fiction, que acho um formato promissor.
Voltando à pergunta, diria que olho não-ficção e poesia com muito interesse. Só não incluí estes gêneros porque, da forma como construí o app, a adição de gêneros não é simples. Mas talvez o faça numa nova versão.
VB&M: Houve lições específicas de sua experiência com plataformas digitais de música e audiovisual que o estejam orientando no desenvolvimento do BiblioTechie?
GR: Sem dúvida. Além dos pontos que já mencionei, há dois: o primeiro é que Netflix construiu um catálogo sólido nos primeiros anos, mas só explodiu quando incorporou os blockbusters e os promoveu – e não o serviço em si. Catálogo sólido não vende, tem que ter alguns nomes fortes, textos relevantes. O segundo é uma difícil combinação de humildade e ambição. Reconhecer e corrigir erros bem rápido, mas confiar que a tese por trás do BiblioTechie é boa.
VB&M: Como tem sido a experiência com a Red Tapioca, editora que antecede ao BiblioTechie?
GR: Tem sido uma experiência prazerosa, mas minha volta dos bits e bytes das experiências passadas para a venda de bens físicos me foi mais penosa do que imaginava. Passei a odiar caixotes, por exemplo. E me parece que o modelo de consignação e a baixa barreira à entrada são uma receita perfeita para um setor destruir seu valor. Os bons editores são uns craques, tiro o chapéu. Não sou um deles.
VB&M: Quais os grandes livros da sua vida?
GR: A pergunta é difícil, porque sempre ficam obras maravilhosas de fora. Talvez tenha sido “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”, de Robert M. Pirsig. Ou “Baú de Ossos”, do Pedro Nava. Mas, já me diverti muito com Tolkien, Walter Scott, Loyola Brandão e Dickens, por exemplo. Recentemente, li muita coisa leve e divertida para compensar a pressão do trabalho e fui apresentado a James Herriott e Deric Longden. E quando terminei “The Curse of the Labrador Duck”, de Glen Chilton, fiquei muito triste. Ainda estou com saudade.