Narrativas & Depoimentos publica “Tempo à deriva”, conto inédito de Alessandro Thomé, autor de CÃO MAIOR (Telucazu), entre outros romances excepcionais. A história acompanha Macuco, um pescador desiludido, e sua obsessão por um misterioso bote à deriva em um lago.
Tempo à deriva
Por Alessandro Thomé
Um bote. Um bote de madeira com uma rala camada de tinta azul descascada. Boiava no lago ao sabor da brisa que ficava se revirando no fundo do vale, sobre a superfície da água. Uma brisa que mal balançava as folhas das árvores, mas que juntava forças e empurrava o bote em um movimento lento e contínuo, girando ao redor do lago como se houvesse, na lama do fundo, algum tipo de ralo destampado por onde a água estaria lentamente escoando.
Quando Macuco chegou ao lago, o bote estava passeando pela outra margem, de maneira que a embarcação servia apenas para que o homem constatasse que aquele lugar não era tão intocado quanto ele imaginava. Depois de quase três anos prometendo para si mesmo que desceria aquela encosta e pescaria no fundo do vale, Macuco resolvera levar a cabo essa ideia justamente no dia em que outra pessoa resolvera fazer o mesmo! Não que a velha casinha abandonada que estava sendo engolida pelas trepadeiras não deixasse claro que o lugar fazia parte do mundo habitado, mas essas mesmas trepadeiras, aliadas às portas e janelas que não mais existiam, conspiravam para que ele acreditasse que aquele era o lugar onde o real sentido de suas pescarias fosse alcançado de forma plena. Havendo ou não peixes, o que ele sempre buscava eram as respostas para as questões que o atormentavam. O tempo ia passando, e ele não conseguia entender o porquê de sua estada no mundo, por isso decidiu que não valeria a pena lutar para juntar qualquer tipo de lembrança em sua vida, pois acreditava que o tempo sempre levaria tudo embora e que apenas as lembranças ficariam, rindo um risinho irônico de quem rouba sorrateiramente e deixa apenas a certeza de que não se poderá ter nada de volta.
Em seus dias de juventude, Macuco costumava juntar amigos em casa para passar as madrugadas bebendo e conversando até que as conversas se transformassem em qualquer tipo de som que servia apenas para justificar a proximidade de todos. Com os anos, as vozes deixaram de vir de fora, e Macuco começou a ouvir sua própria cabeça questionando o que estaria sendo questionado na cabeça de seus companheiros. Depois vieram as garotas, os empregos, filhos, contas e sonhos… muitos sonhos. Tudo deixou de ser bulício, e aquelas velhas conversas tomaram a forma de fotografias guardadas em gavetas escuras e de certezas de que tudo o que havia passado era sempre melhor. Macuco não encontrou nada. Macuco não encontrou ninguém. Mas Macuco encontrou o lago.
Em seus anos de homem responsável, ele costumava pescar nos finais de semana. Juntava as tralhas na velha caminhonete e partia para uma viagem de quarenta minutos que o levava à grande represa que beirava a serra. Lá de cima, andando um pouco mais, era possível ver o mar se estendendo para todos os lados sem nada alcançar. Foi nesse lugar que Macuco compreendeu que suas manhãs seriam mais bem aproveitadas pela inconsciência do sono. Deixou de trabalhar, pois não havia quem alimentar. Depois a estrada virou sua rotina — agora sem a caminhonete —, estendendo placas para que caminhões o levassem para qualquer lugar a troco de pouco trabalho, apenas um pouco de dinheiro para comprar uns anzóis e um tiquinho de comida. E foi em uma dessas viagens com desconhecidos que ele viu o lago do fundo vale. Pararam no acostamento da interestadual para esticar as pernas, e Macuco esticou as vistas. O lago visto lá de cima parecia uma pequena poça de água, e a casinha branca poderia ser confundida com uma bituca de cigarro jogada em um gramado.
Depois desse dia, o plano de ir pescar naquele lugar tornou-se fiel companheiro de Macuco.
Agora lá estava ele. Desceu a encosta pela trilhazinha quase completamente engolida pelo mato. Quarenta minutos. Novamente quarenta minutos, mas com a diferença de agora ver água alcançando as margens da mata. Macuco chegou a temer que uma chuva repentina pudesse encher o vale, mas o minúsculo córrego que escorria de uma das margens do lago esticava dedos acalentadores e confortáveis. A água desaparecia em um buraco no chão, como o chão havia desaparecido da frente dos pés de Macuco, muitos anos antes.
Na beira do lago, tudo era silêncio. A água escura descansava como um espelho, refletindo as sombras da mata e o pequeno borrão branco que era a casa abandonada. Macuco deixou suas coisas em um pedaço de chão onde nada crescia a não ser uma grama rala em uma terra batida, resquícios do único caminho percorrido por quem quer que fosse que um dia houvesse habitado aquele casebre. Do outro lado do lago, o bote descrevia seu lento carrossel. Nada de vento, e a pequena embarcação se movia lentamente, como se debaixo da superfície, mergulhado na água escura, um punhado de mãos o levasse, impedindo-o de criar as mesmas raízes que mantinham a casa no lugar.
Macuco respirou o ar úmido do dia que começava. Pensou ter sentido cheiro de café. O bote flutuante lhe dizia que aquele lugar não era solitário, mas a casa em ruínas tentava convencê-lo de que naquele cantinho do mundo, ninguém mais vivia. A construção parecia um velho esqueleto com órbitas escuras onde antes havia olhos e com todas as rachaduras dos ossos. O homem seguiu até lá. Parou à porta da casa e sentiu vontade de chorar. Poeira, ervas daninhas, teias de aranha. A casa estava morta, havia nascido morta, pois não tinha qualquer mecanismo de memória que a permitisse se lembrar dos dias em que fora habitada. Nada naquela decadência trazia à luz a humanidade, a não ser algo que estava fora, a não ser o bote.
A linha estava na água. A boia colorida flutuava sem se mover. No entanto, o bote estava cada vez mais perto, rondando as margens em um movimento que se assemelhava ao das sombras das árvores que devoravam lentamente o mundo enquanto o Sol se movia. E nada vivia por ali. Não havia pássaros, nem borboletas, nem formigas. Macuco até acreditava que era besteira esperar que a boia afundasse, pois naquele lago não devia existir um só peixe. No entanto, ali ele estava em paz, pensando no que poderia tirar daqueles dias que vivera até então e tentando entender o que o distanciava tanto de todos os outros seres humanos. Até que o bote chegou um pouco mais perto, e Macuco se viu obrigado a deixar de lado sua incursão. Agora era possível perceber que havia algo dentro do bote, uma mancha que era sombra e que talvez fosse apenas ilusão se estendia como uma linha por sobre o beiral. Macuco ficou de pé e tentou ver o que era, mas a embarcação ainda estava longe demais.
De vez em quando o homem olhava para o alto, para o cume da ladeira que o trouxera até ali, na tentativa de ver um caminhão passando na rodovia, lá longe, lá em cima, mas não via nada, nem ouvia nada. Sentiu medo, e pela primeira vez na vida entendeu o quanto sua solidão, até então, era pequena, pois jamais estivera tão longe de qualquer coisa que o remetesse à sua existência humana. Lá no alto da serra pelo menos havia as torres de energia que traçavam uma tênue linha entre ele e os outros homens do mundo. Mas ali, agora, no lago, o que existia eram apenas uma casa engolida pelo mato e um bote que se movia como uma assombração, como se aquele fosse o lugar do mundo onde a falta de existência tomasse forma. Nesse cenário que remetia à catástrofe de não haver o momento da Criação, o homem buscou alento em suas próprias memórias, em uma tentativa de emprestar àquele lugar um minuto de alegria devido a qualquer coisa que já houvesse passado. Tentou imaginar crianças correndo e brincando na frente da casinha em um tempo em que as paredes caiadas de branco ainda refletiam luz, mas não tinha crianças em suas lembranças, porque jamais teve filhos e porque a cerveja de noites antigas o havia transformado em um homem duro e sem fotografias de sua própria infância, nem no papel, nem na memória. Tentou imaginar um casal debruçado em uma das janelas, observando patos nadando no lago, mas não tinha casais em suas lembranças, porque jamais teve uma mulher e porque aquela cerveja o havia impedido de estar com seus velhos amigos quando eles se debruçaram em janelas tendo alguém ao seu lado. Tentou imaginar um velho pescando de dentro do bote, mas não sabia como era pescar de dentro de um bote, porque jamais pretendeu ter um desses.
Assim, divagando em pensamentos e sentindo o peso da solidão que ele causara a si mesmo, Macuco não percebeu que o bote agora estava a poucos metros dele, e apenas quando percebeu que sua vida não tinha sentido algum nem mesmo para tentar desenhar um cenário menos doloroso naquele vale, o homem viu que a sombria embarcação se aproximara a ponto de permitir que se visse o que havia dentro dela.
Macuco deu um salto e ficou de pé. Mesmo nessa posição, tudo o que se podia ver era uma das mãos e uma parte do braço. No bote, estendido sobre a madeira úmida, estava um homem. Era possível saber que era um homem devido à aspereza de sua mão, não por unhas sujas ou mal cortadas, mas pelo desenho de pequenas colinas que cresciam em seus dedos, calos de uma mão que teve muito o que fazer.
A boia deixou a água. O barco continuava a perfazer o círculo a poucos metros da margem, mas de forma a deixar claro que a força que o impelia não tinha intenção de trazê-lo até a beira do lago. Então Macuco arremessou o anzol e foi puxando o bote lentamente, para que a linha não arrebentasse. O primeiro movimento mais brusco fez com que a água se enrugasse em diminutas ondas que seguiram em todas as direções, e enquanto ia lentamente puxando o bote, Macuco entendeu os motivos de sua solidão. Via o movimento da água causado por um movimento seu e compreendia que sua inércia permitira que todos fossem indo embora, como as ondas que seu movimento causou sem que ele se movimentasse para acompanhá-las. No entanto, havia um braço ali perto que ele via como um braço de mãe que poderia balançá-lo. Havia no bote um homem que talvez pudesse mudar sua vida pelo simples fato de estar ali naquele lago, naquele vale, naquele dia. E, sim, havia um homem embarcado, mas ao trazer o bote até a margem, o que Macuco viu foi um homem de pele azulada e de olhos opacos. Aqueles olhos olhavam para qualquer ponto do céu, mas nada viam. Aqueles olhos, assim como aquele homem, estavam mortos.
Quem era, de onde veio, o que fazia ali… nada disso era sabido. Vestia roupas de um homem normal que leva uma vida normal e que, supostamente, tinha laços com outras pessoas. No entanto, estava ali, morto dentro de um bote que boiava em um lago perdido. Apenas agora, tentando entender o que significava aquilo tudo, Macuco percebia que não havia sinal de como aquele bote havia chegado ali. Não havia mato esmagado, nem qualquer tipo de trilha por onde a embarcação pudesse passar. Portanto, aquele bote devia estar ali desde o tempo em que a casa era habitada. Mas aquele defunto não podia ser quem habitava aquela casa. Na verdade, ninguém no mundo poderia sê-lo, porque…
O pescador fixou seu olhar no defunto e percebeu que sim. Acreditou que aquele homem podia ser o habitante daquela casa, e assim sua morte estaria explicada. Aquele homem, com suas roupas normais e sua vida aparentemente normal, provavelmente havia morrido de tristeza. Talvez tenha vivido entre as aranhas e a poeira. Talvez tenha esperado que as trepadeiras e as ervas que se amontoavam na casa lhe dissessem algo, qualquer coisa. Talvez tenha esperado que os pássaros viessem cantar nos beirais do telhado. Depois, talvez tenha comido os patos e as galinhas. Quem sabe se não ficava tentando ouvir o vento que nunca descia ao vale, e é provável que tenha ido ao bote para conversar consigo mesmo, no espelho do lago. E agora era apenas um defunto novo que boiava solitário. Nem mesmo um urubu havia descido ali para se alimentar dele.
Macuco, olhando para aquele morto, sentiu uma lágrima escorrer pela carne de seu rosto e se juntar ao lago. Depois empurrou o bote com uma das mãos e deixou que ele continuasse seu círculo. Viu naquele lago e naquele bote o que a vida lhe reservava. Quando seu próprio círculo estivesse finalizado, o que sobraria seria sua carcaça desacompanhada. E assim ele descobriu que o tempo jamais passa. Descobriu que, na verdade, o tempo vai se acumulando até que cada um se transforme em um corpo em um bote. Girando e girando, parando como folhas em uma calha, até que bloqueia a vida com lembranças e mata o dono delas.
Dentro da casa abandonada e triste, uma tira de luz que se esgueirava pelas frestas do telhado riscou o rosto de Macuco, que havia se sentado em uma velha cadeira, a única mobília da casa. Nessa tira de luz, uma segunda lágrima brilhou, depois outra, e outra. A noite veio, e Macuco continuava sentado, chorando. Suas lágrimas já haviam escorrido até o lago, fazendo com que as águas agora começassem a entrar pela antiga cozinha. A madrugada adentrou o vale, e o lago adentrou a casa. Macuco já sentia suas lágrimas, misturadas ao lago, molharem seu pescoço, e o barco agora desenhava círculos por trás da casa, até que, na quarta volta, se enroscou em uma das janelas e ali ficou. Macuco agradeceu ao defunto por sua tentativa de ser uma companhia. Chorou até morrer sem ouvir uma só palavra.
Depois de muitos anos, alguém tentou cavar um leito para que o lago escoasse de vez por entre as montanhas, mas as árvores mortas sempre entupiam o escoadouro. Quando as árvores acabaram, a água simplesmente passou a criar barreiras de lama e pedra, e mantinha-se ali, cobrindo tudo o que existia no fundo do vale. Por fim, desistiram e deixaram o lago em paz.
Hoje é possível ver, em noites de lua, sob a superfície do lago, duas sombras que se parecem com dois homens conversando. Dizem que são o reflexo das crateras da lua, mas ninguém se arrisca a pôr um bote naquelas águas, com medo das sombras e com medo de morrer sozinho, no fundo do lago.