Há 14 anos no mercado editorial, Livia Vianna, editora executiva do Grupo Record, alterna quatro chapéus no seu figurino diário. Chefiando selos de grande tradição na história do livro no Brasil – Civilização Brasileira, Paz & Terra, José Olympio e Rosa dos Tempos –, que foram absorvidos pela Record sob o comando do falecido editor Sérgio Machado, Lívia publica nomes como Alice Walker, Hannah Arendt, Pablo Neruda, Michel Foucault, Paulo Freire, Antonio Callado, centenas de outros. Seu grande feito, porém, foi em 2017 ressuscitar a Rosa dos Tempos, o único desses selos que havia ficado praticamente desativado. Nesta Conversa Com (A) Gente, ela comenta a retomada da RdT, criada pela pioneira do feminismo brasileiro Rose-Marie Muraro e para a qual só com VB&M contratou obras de Alice Walker e recentes contribuições fundamentais da ciência para o feminismo; fala do desafio de cuidar de quatro linhas de livros bastante nítidas mas que dialogam entre si; reflete sobre a experiência de editar autores que ama; mas diz que, para duas grandes paixões alvinegras em sua vida, o Fogão e o Foguinho, sempre consegue arrumar tempo.
VB&M: Como se desenvolveram a ideia e o projeto de retomar o selo Rosa dos Tempos, criado pela pioneira do feminismo brasileiro, Rose-Marie Muraro?
LV: A ideia de retomar o selo veio com a retomada da própria força do feminismo. O ano era 2017, as campanhas contra o assédio sexual estavam em alta, o termo sororidade estava na boca do povo e até mesmo no mercado editorial se notava a potência do tema, seja com a profusão de livros a respeito ou com a presença maior de escritoras em grandes eventos como a FLIP. De repente, era como se não reativar o selo é que fosse estranho. Tínhamos em casa o primeiro selo feminista do Brasil, com um poderoso fundo de catálogo curado por uma gigante como Rose Marie Muraro. Para além disso tudo, – que já seria o bastante para a retomada – a ideia de reunir num só selo livros com esse perfil unificando a comunicação, os objetivos e ações como campanhas e eventos soou como um plano perfeito.
VB&M: Qual balanço você faz do desempenho dessa nova fase do selo até agora? O que aponta como maiores desafios, obstáculos e conquistas?
LV: Do início da retomada do selo para cá, além de mais editoras também terem se voltado muito para o tema, o próprio feminismo mudou bastante. A constante evolução do feminismo é um grande desafio. É preciso de fato se engajar no tema para estarmos sempre cobrindo as nuances e sensibilidades que o momento pede. Quando a Rosa dos Tempos publicou o Feminismo em comum, da bell hooks, a autora estourou no Brasil, ficando o livro por mais de ano entre os mais vendidos. Outra autora que foi publicada com muito sucesso na nova fase do selo foi Maryse Condé, sempre nas apostas para o Prêmio Nobel e com vendas expressivas. E eu incluiria nas conquistas as festejadas publicações da própria Rose Marie Muraro, seja como editora – relançamos o clássico O martelo das feiticeiras, trazendo de volta a edição estabelecida pela própria Rose Marie –, ou como autora, já que reeditamos seu atualíssimo Os seis meses em que fui homem.
VB&M: No comando de quatro diferentes selos do Grupo Record – Rosa dos Tempos, José Olympio, Civilização Brasileira e Paz & Terra –, como você posiciona cada um deles e como equilibra sua atenção e dedicação entre os três?
LV: A Rosa dos Tempos tem uma linha editorial bem focada, o que ajuda no posicionamento do selo. A José Olympio é uma editora tradicional, que completa agora 90 anos, e pede um olhar mais sensível, literário. Já a Paz & Terra e a Civilização Brasileira são selos de não ficção, voltados para ciências humanas e sociais, que têm uma linha progressista muito forte. Ambas atuam para ampliar o debate democrático no país. A diferença mais crucial entre esses dois selos é que a Paz & Terra, casa editorial de Paulo Freire, traz muitas obras voltadas à teoria da libertação, à educação. Para estar à frente desses selos é preciso estar atenta e forte, como diria a canção. Brincadeiras à parte, é necessário estar muito atenta, o tempo todo, e forte também. Porque não dá para parar. Mesmo.
VB&M: No processo de recontratação e reunião da obra de Alice Walker, que vinha sendo em grande parte publicada pela José Olympio, a agente americana e a própria autora se surpreenderam com a proposta de lançamento dos diários GATHERING BLOSSOMS UNDER FIRE pela Rosa dos Tempos, depois concordando com a ideia. Qual a lógica de divisão da obra de Alice Walker entre dois selos? O objetivo é fortalecer a obra ou a Rosa dos Tempos?
LV: Eu sou muito fã da Alice Walker, desde muito jovem. Ter a chance de me tornar editora dela no Brasil é algo que eu valorizo muito, demais. Quero que cada livro dela tenha a atenção necessária e encontre seu público. Foi imensa a alegria que senti quando A terceira vida de Grange Copeland foi lançado com tamanha repercussão que o boom do livro aqui no Brasil chegou à própria autora. Eu vibrei de verdade. Editar a edição especial de A cor púrpura, que está prestes a chegar às livrarias, foi algo bem especial também. O objetivo de seguir com a ficção da Alice Walker na José Olympio e deslocar a não ficção para a Rosa dos Tempos é justamente para que as histórias de luta e superação que ela conta sejam recebidas de forma focada, com campanhas específicas e recebimento estratégico de mercado. Na José Olympio, a ficção de Alice Walker está ao lado de nomes como Harper Lee e Juan Rulfo, enquanto na Rosa dos Tempos ela está sendo recebida por companheiras com Maya Angelou e bell hooks. Em ambos os casos ela está no lugar certo. A diversidade da obra dela pede um posicionamento pontual e dedicado, para que todas as vertentes sejam devidamente exploradas.
VB&M: Você disputou com firmeza e ganhou o concorrido leilão pelos direitos de publicação no Brasil de L’HOMME PREHISTORIQUE EST AUSSI UNE FEMME, da historiadora francesa da Pré-História Marylène Patou-Mathis. Qual a importância desse livro para Rosa dos Tempos?
LV: A Rosa dos Tempos precisa buscar o tempo todo questões relevantes e originais dentro do feminismo. Quando eu me deparei com um livro que, logo no título, diz que os homens pré-históricos também eram mulheres, eu me interessei de cara. Sabemos pouco ou quase nada sobre essas mulheres pré-históricas. Quais foram suas atuações? Que tipo de relações se estabeleciam ali? Tudo que o livro traz é rico demais. Não só como registro histórico, mas como análise e reflexão dos primórdios das relações de gênero. Coincidentemente, o livro chegou hoje da tradução. Não vejo a hora de começar a trabalhar nele. Quero que em 2022 o máximo de mulheres, e homens também, tenha acesso ao mundo de novidades ancestrais que esse livro traz.
VB&M: Sobra tempo para leituras extraprofissionais? O que você gosta de ler e que leitura ao longo da vida considera importante na sua formação intelectual e moral?
LV: Me forço a isso. Acho danoso o editor que só lê o que publica ou o que busca para contratar. Traço metas de livros da concorrência que eu preciso ler. Nem sempre cumpro a meta, mas eu tento. Gosto demais dos clássicos, sempre gostei. Na minha formação intelectual eu destacaria Mrs. Dalloway, da Virginia Woolf. Muito se abriu para mim quando o li, por volta dos 18 anos. Apreço e gratidão enormes também por Rimbaud, Oscar Wilde, Proust, Graciliano (o maior brasileiro para mim) e Harper Lee – O sol é para todos é um xodó meu.
VB&M: Com tanto trabalho, sobra tempo para outras paixões, como Fogão (o Botafogo) e Foguinho (o cachorro)?
LV: O Botafogo foi uma paixão que se impôs pra mim. Fui criança nos anos 80, então é claro que fui Flamengo. Até que o Botafogo, time da minha mãe, da minha avó, do meu avô, se tornou meu também. De forma natural, espontânea e irreversível. Quando adotei meu cachorro, que é preto e branco, logo falei: ele é Botafogo! E naturalmente ele virou o Foguinho. Eu de fato não tenho tempo para quase nada além dos livros, mas minhas paixões alvinegras se impõem, seja o Fogão ou o Foguinho!