Com 17 anos de carreira no mercado editorial português, depois de atuar como livreiro, tradutor, revisor, diagramador e capista, André Andraus é hoje editor-executivo do Grupo Narrativa e CONVERSA COM (A) GENTE sobre a história de sua editora, que fundou com a mulher em 2013 sob o nome Publicações A Ferro e Aço, com foco em livros sobre Música e História. Vieram novos selos, e André acolheu em seu catálogo uma linha de infantis, infantojuvenis, de ficção comercial e literária e ampliou a não-ficção. Pelo selo Narrativa, está programado O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS, de José Almeida Jr., com lançamento em Portugal na primavera do hemisfério norte, em 2022. Sobre o talento de José, ele afirma: “Foi para mim uma surpresa muito agradável, pois para além de escrever uma história que gira em torno de Machado de Assis (que também publicamos na Narrativa), tem o dom de nos transportar para os anos de 1800 com mestria.” Pelo selo A Ferro e Aço, André desenvolve com paixão e requinte uma linha de música centrada no rock americano e britânico, explorando, como a Estética Torta de Eliel Vieira no Brasil, o pequeno mas leal e fidelíssimo público de literatura em torno do heavy e thrash metal. Sobre a leitura que mais o influiu a seguir a carreira editorial, André Andraus surpreende: o thriller “A Casa da Rússia”, de John Le Carré, pelo personagem do editor Scott Blair. Natural de Lisboa, André enviou por escrito suas respostas, e os encantadores léxico e sintaxe portugueses permanecem inalterados na entrevista.
VB&M: Como se deu sua trajetória profissional até a posição de editor-executivo do Grupo Narrativa?
AA: A minha trajetória profissional no mundo dos livros teve início com a abertura de uma livraria que fundei com minha esposa, a autora e ilustradora Sofia Paulino, em 2004. Antes de completarmos dez anos de livraria, fundei a editora Publicações A Ferro e Aço no ano de 2013, mas apenas em 2014 é que o primeiro livro veria a luz do dia. O objetivo da editora era o de conter somente duas coleções, Música (biografias de músicos e de bandas, em especial dentro das áreas do rock e do heavy/thrash metal) e História (ensaios em volta de qualquer época ou período da História nacional ou internacional), e isso se mantém até aos dias de hoje.
Posteriormente, com a evolução natural de expansão para as áreas do infantil/juvenil primeiro, e da literatura e não-ficção posteriormente, tivemos a necessidade de criar mais selos para o efeito, o que culminou numa marca única que englobasse todas as chancelas – o Grupo Narrativa – que inclui os selos Publicações A Ferro e Aço, Simon’s Books (infantil/álbuns ilustrados), Narrativa (ficção literária e não-ficção/ensaio) e Sell Out (ficção e infantil/juvenil comercial). Talvez não por acaso, o selo Narrativa tivesse acabado por dar o nome à marca principal, e liderar, no que concerne a repercussão literária, o grupo editorial. No entanto, os conceitos editoriais de cada selo mantêm-se e todos os selos são importantes para nós.
Recentemente, ainda este ano, criámos uma editora paralela, a Editora Epopeia (que publicou no mês de Outubro o seu primeiro autor brasileiro), que tem como principal foco os autores de língua portuguesa.
VB&M: Sob quais critérios são feitas as aquisições de títulos para o Grupo? Em que medida os livros publicados pelo Grupo refletem seu gosto pessoal de leitura?
AA: Na atividade editorial, quando o editor é o proprietário e é quem decide quais livros devem ser publicados, existe sempre um reflexo do gosto pessoal do editor no conceito da editora e no catálogo que se constrói a longo prazo.
No meu caso, ao longo dos sete anos de atividade da editora, e devido à evolução que a criação dos novos selos exigiu, o critério foi sendo trabalhado com o tempo. No início, com a A Ferro e Aço, bastava que o título em causa fosse uma boa biografia de um músico ou banda do universo do rock/metal, nos quais os primeiros títulos escolhidos (ou quase todos) foram, obviamente, acerca de músicos da minha preferência, e que, no fundo, eram da preferência da generalidade dos fãs do género. Já na coleção de História, o critério se baseava simplesmente na qualidade da obra e no prestígio do autor, embora também pesasse o meu enorme interesse por esta matéria.
No entanto, faz parte da função do editor receber e analisar manuscritos para publicação, e a descoberta de novos textos e novas vozes, mesmo que mais afastados dos nossos interesses, interferem positivamente, em maior ou menor grau, na construção de um catálogo que, no nosso caso, cada vez mais se centra na qualidade da escrita e da história que está a ser contada. Se o(a) autor(a) tiver reconhecimento dentro do público leitor, tanto melhor.
Finalmente, não devemos esquecer as várias parcerias que se estabelecem no meio, como por exemplo, a publicação de um texto vencedor de um prémio literário, ou uma iniciativa semelhante.
VB&M: Como surgiu a linha de livros de ou sobre músicos pop, particularmente do rock anglo-saxão, no selo A Ferro e Aço? É forte em Portugal o público para esse gênero?
AA: No seguimento do que referi mais atrás, o selo A Ferro e Aço surgiu da necessidade de fazer em Portugal aquilo que já se fazia lá fora há alguns anos e que, mais do que uma tendência, era também um sucesso. Falo das biografias e autobiografias de músicos de todos os quadrantes, mas em especial os da minha preferência, que por cá não tínhamos quase nada publicado, e o que já tinha sido traduzido já não se encontrava disponível. Daquilo que é a nossa experiência, o retorno que temos tido dos leitores tem sido muito positivo, e apesar de o mercado ser pequeno, demonstra ter força e dedicação dentro dos fãs do género, e isso também é comprovado pelo número de exemplares vendidos e de solicitações para continuarmos o nosso esforço de trazer estas obras ao nosso país.
VB&M: Quais as características dos livros de História desse mesmo selo, A Ferro e Aço?
AA: Os livros de História da A Ferro e Aço podem e devem contemplar qualquer época e qualquer vertente do passado. Contudo, este segmento do projeto editorial tem sido ainda pouco explorado, com uma média de um título a cada dois anos por questões de gestão orçamental, com mais um no prelo e agendado para o próximo ano, mas também por optarmos por um investimento maior em cada livro, como no caso de “Entre a Espada e a Parede – Vitória e Derrota em 1918” de David Stevenson, uma obra exaustiva e profunda, escrita por um historiador americano de renome e traduzida por um tradutor premiado que já tinha colaborado connosco anteriormente.
Por mero acaso, até à data, os nossos títulos de História versam sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o que fez sentido devido a termos atravessado há uns anos o centenário do início da I Guerra e os 75 anos do início da II Guerra em 2014, e do final da II Guerra em 2020.
Mas um dos objetivos para os próximos dois anos é expandir o catálogo desta coleção para uma maior quantidade e diversidade de títulos do género.
VB&M: O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS é o primeiro título de literatura brasileira contemporânea que você contrata? O que lhe atraiu no romance de José Almeida Jr?
AA: O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS é o terceiro título de literatura brasileira contemporânea que contratamos, todos eles para o selo Narrativa, sendo que os dois primeiros títulos (um publicado e outro no prelo) são da autoria do escritor de Rio Grande do Sul, Sinval Medina, um autor e ex-jornalista com quem tive a honra de estabelecer uma bela amizade e de cuja escrita sou fã incondicional.
José Almeida Jr. foi para mim uma surpresa muito agradável, pois para além de escrever uma história que gira em torno de Machado de Assis (que também publicamos na Narrativa), tem o dom de nos transportar para os anos de 1800 com uma mestria bastante semelhante à do próprio Machado de Assis. Este foi um daqueles manuscritos que avaliei com um prazer imenso e que não consegui deixar de ler. O facto de este ser o seu primeiro romance escrito (e o segundo publicado) revela uma capacidade superior para desenvolver e contar uma história. Acredito que este título vai ser muito bem recebido pelo público português e também pela crítica, à semelhança do que aconteceu no Brasil, e que irá valorizar imenso o catálogo de literatura da Narrativa.
VB&M: Como a obra do clássico americano Kurt Vonnegut pode se integrar ao seu catálogo?
AA: Kurt Vonnegut é um autor intemporal que, na minha opinião, se integra muito facilmente em qualquer catálogo que tenha por base uma escrita de qualidade de fundo ensaístico, como no caso das obras que iremos publicar, IF THIS ISN’T NICE, WHAT IS?”, GOD BLESS YOU, DR. KEVORKIAN e A MAN WITHOUT A COUNTRY. Integrados na coleção Ensaio, estes títulos de não-ficção encaixam na perfeição no selo da Narrativa, a par de grandes nomes da ficção literária internacional. Estas obras, que há muito não estão publicadas em Portugal, irão dar a oportunidade a velhos leitores de reler algumas das principais obras do autor e a novos autores de conhecer um dos ícones mais influentes do nosso tempo.
VB&M: Quais leituras mais o influenciaram a seguir a carreira de editor?
AA: Sem dúvida que a leitura que mais me influenciou foi “A Casa da Rússia”, de John le Carré. Não me revejo no editor Scott Blair, mas algo despertou em mim enquanto lia o livro. Muito antes de o terminar, já estava decidido. Ia fundar uma editora.