A AUSÊNCIA DOS QUE AQUI ESTÃO

VB&M desafia o leitor da NARRATIVA de hoje a acabar a leitura do texto menos que arrepiado de emoção. O trecho foi retirado do segundo livro de Tina Vieira, OS FILHOS QUE NUNCA TIVEMOS. A autora, cuja representação a agência tem o orgulho de anunciar, estreou na literatura com MABOQUE, romance sobre a busca da identidade publicado em 2020 pela pequena Quelônio e finalista do último Prêmio Jabuti. Já OS FILHOS QUE NUNCA TIVEMOS é uma emocionante e literariamente impecável narrativa sobre perdas, memórias e sonhos rotos, histórias paralelas de duas mulheres, que se entrelaçam: Isabel, educadora de crianças especiais, que está perdendo o marido para o mal de Alzheimer, e Silvia, mãe solteira de uma menina autista. A sensibilidade da escrita de Tina é impressionante, e o domínio que a autora exibe não deixa dúvidas sobre estarmos diante de um imenso talento literário.

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Diante de Antonio, em cima da mesa, havia uma folha de papel com o desenho de vários relógios. Todos iguais, redondos, com os algarismos arábicos, mas sem ponteiros. Cabe a ele desenhá-los segundo a hora que o exercício peça. Nove horas em ponto. Essa é fácil. Os ponteiros têm que estar no nove e no doze. Mas a tarefa pode se complicar. Vinte para as onze. Antonio levanta a vista na direção de Isabel, dubitativo.

Ela se mantém impassível, mas, por dentro, é como se as agulhas que antes marcavam o ritmo da sua vida estivessem rotas. Não há mais tempo para as conversas que adentravam a noite, conversas nas quais ele lhe ensinava a entender a existência, a olhar para si e reconhecer tudo de bom e de ruim, sem julgamentos. Esse tempo está se extinguindo junto com as conexões neuronais de Antonio. Agora ela tem que lutar para que ele continue sabendo ver as horas no relógio, que consiga desenhar os ponteiros no lugar certo, que compreenda o mecanismo pelo qual atravessamos os dias, que nos tira a vida lentamente.

Temeroso, Antonio ensaiou traçar as linhas dos ponteiros. Sobre qual seria a posição correta do segundo, vacilou, mas, no final, conseguiu acertar. E Isabel exalou longamente, como quem acaba de ganhar uma prorrogação. Uma prorrogação inútil porque a partida estava perdida, irremediavelmente perdida. Como todos os perdedores que se sabem perdedores, ela tentava adiar o fim, mendigar mais alguns minutos de jogo na expectativa de um golpe de sorte. Os azarões, às vezes, ganham, dizia para si mesma.