A AUSÊNCIA QUE UNE

O conto “Amorzinho”, de Miguel Sanches Neto, escrito no início da pandemia para a série “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, fecha a primeira semana do blog da VB&M este ano. Na história, um casal separado divide o mesmo apartamento e a guarda de Amorzinho, uma cachorrinha idosa que vem a falecer em plena quarentena.

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Amorzinho

Miguel Sanches Neto

No final do primeiro mês de quarentena, as coisas que eles tinham para fazer individualmente acabaram.

– Quanto tempo você acha que ainda vai durar? – ele perguntou.

Depois da morte da cachorrinha de estimação, não tinham mais nada em comum. No começo do isolamento, o silêncio entre eles se fez mais profundo. Até ali, haviam sido sócios de um apartamento de dois quartos, o menor tendo ficado para ela pois foi quem resolveu dormir em outro lugar. Ainda compartilhavam a cozinha para o lanche da noite, durante o dia comiam perto do serviço – ela no centro, só descer e escolher um dos muitos restaurantes por quilo; ele na própria indústria. Por trabalhar em casa, ela fizera da sala de jantar seu escritório. Cada um com sua televisão no quarto, apenas a cozinha e a lavanderia de uso comum.

Com os amigos, não se referiam àquela vida a dois como casamento. Era “o nosso arranjo”.

– Casal moderno – os amigos comentavam, pois tinham outras companhias publicamente.

Ainda discutiam questões sobre as despesas e trocavam informações sobre a cachorrinha quando havia algum problema.

– Não quis comer hoje – ela dizia quando, ao chegar do serviço, ele brincava um pouco com a Lhasa, que fazia a festa por ter mais alguém para ela. Latia até que ele a levasse para passear, a sacolinha de recolher os dejetos em uma de suas mãos; na outra, a coleira curta para que não fizesse nenhuma loucura. O passeio, obrigação dele. Alimentar e fazer companhia durante o dia era com ela, em meio ao trabalho em seus projetos de obras e reformas.

A cachorra chamada Amorzinho morreu com 14 anos, depois de um período de senilidade em que não reconhecia nenhum dos dois, dormindo num lugar que batesse sol, mesmo no calor.

– Você está acabada, Amorzinho – ela falava em voz alta.

Jamais compartilhava esses momentos de comoção com o marido.

Em um sábado em que ela saiu para ver uma obra, ele ficou em casa com uma das únicas coisas que dividiam, e acabou cochilando no tapete da sala, território alheio. Acordou logo com Amorzinho mordiscando levemente seu indicador da mão direita para ver se estava vivo. Tinha sido o ato amoroso mais intenso de sua biografia. Fingiu-se de morto por uns instantes para aproveitar mais daquele cuidado todo.

Nunca contou para a esposa.

Ela que anunciou a morte de Amorzinho. Por telefone. Ele pediu para deixar o serviço no meio da manhã e os dois ficaram bastante tempo contemplando o corpo, velado na mesinha de centro. Depois de alguns telefonemas, levaram ao crematório e fizeram o que tinham que fazer. Cada um beijando a Lhasa. Primeiro ela; depois ele.
Voltaram para casa em silêncio.

Em silêncio maior passaram as primeiras semanas de quarentena; sozinhos, completamente isolados. Se ao menos Amorzinho estivesse aqui, os dois pensavam a mesma coisa, mas não falavam.

Ela terminou os projetos pendentes e não recebeu outros. Ele com dispensa total da fábrica, que deu férias aos funcionários quando foi interrompida a produção de uniformes escolares. As escolas fechadas; o estoque alto.

Ela fazia pratos rápidos. Uma omelete; uma salada de atum. Ele, sanduíches. Pedia pizza de um único sabor, sempre de pepperoni, e esquentava no microondas as fatias na hora da refeição.

Depois de terminar de ler os livros começados, organizou as suas coisas no quarto, quando achou a última coleira de Amorzinho e chorou. Tinha escondido da esposa para ter uma recordação que fosse só dele. Para se distrair, passou a frequentar cursos online. Colocou para funcionar a velha esteira, antes abandonada na lavanderia. Caminhar na rua nem pensar.

Ela passava as tardes no quarto, vendo séries. Pelas manhãs, arrumava os arquivos de seus projetos, tantos os impressos quanto os digitais.
E de repente não tinham o que fazer. Não saíam mais do que uma ou duas vezes por semana, com máscara, em horários diferentes, para comprar comida. Fingiam não reconhecer amigos no mercado. Devia ser assim o voto de silêncio de um monge nas montanhas, ele pensou. O diário que ela tentou escrever ficou quase em branco. Nada acontecia.
Foi quando ele fez a pergunta: – Quanto tempo você acha que ainda vai durar?

Na briga em que o casamento acabara de vez, logo depois da morte de Amorzinho, ela gritara que não suportava ouvir a voz dele. Você não precisará mais ouvir, esta é a última vez que conversaremos, ele decretou. E agora estavam tentando de novo.

Ela demorou para responder. Ele já havia ido para a cozinha preparar um sanduíche de queijo.

– Uns dois meses.

– Tudo isso?

E acabou aí o diálogo. Naquela tarde, ela deixou a porta do quarto aberta quando foi ver suas séries. Ele olhou para aquele cômodo distante nas duas vezes em que buscou água na cozinha. Há quanto tempo não entrava lá? Mais de dois anos, com certeza. A namorada com quem estava no momento fora para o sítio dos pais, em outro Estado. O engenheiro com quem ela saía era casado e estava com a esposa e os filhos. A vida era construída com relações, com movimento, com conversas. No começo, tentaram manter-se conectados com colegas de trabalho. Não era a mesma coisa. Morriam de medo do vírus e achavam que ali, longe de tudo, um não representava perigo para o outro. Era a única coisa boa de estarem em um casamento fake. A região toda infestada pela tosse e pelo contato, e eles na bolha. Domesticamente separados, cada um com sua louça. Ele só usava os pratos de sobremesa. Ela, os fundos. Ele, os talheres de cabo de madeira, da churrasqueira. Ela, os talheres de inox.

– Acho que somos o casal mais protegido da cidade – ela comentou, esta necessidade nova, quando foi intencionalmente à cozinha no mesmo horário dele.

Ele sorriu, orgulhoso da vida que antes poderia parecer miserável.

Ao passar pela porta entreaberta do quarto, pôde ver que ela estava só de calcinha, cabelos molhados, e farejou no ar o perfume do xampu. Pensou na hora que seria bom estar com a atual namorada. Mas ela tinha família grande e estava longe.

Naquela noite, ela foi no quarto dele e em silêncio se saciaram. Os corpos tão conhecidos haviam virado novidade. Ela notou uns fios brancos no peito do marido. Ele ficou alisando os músculos da coxa dela.

Tudo terminado, a esposa comunicou que voltaria ao seu quarto.

– Posso ir junto?

A concordância veio com um sorriso.

Depois de quatro semanas sem contato com outra pessoa, dormiram abraçados, sem receios. Era bom misturar os pés sob o lençol.

Quando ele abriu os olhos, na manhã seguinte, ela já estava acordada.

– Sabe, eu estava pensando. Não importa quanto tempo durar…

A economia, a crise, talvez falta de alimento, as pessoas amigas que perderemos, ele pensou na hora.

– … teremos que passar por tudo.

A voz dela era suave, sem desespero.

– Nós tivemos um exemplo.

Ele olhou para ela, triste. O sujeito e o tempo do verbo denunciavam o sentido. A única coisa compartilhada e perdida.

– O que será que Amorzinho estaria pensando de tudo isso? – ele perguntou.

– Nunca saberemos. Mas ela passou sua existência em quarentena, sem conseguir falar com a gente – ele se lembrou do desespero amoroso da cachorrinha quando achou que ele estava morto.

– E mesmo assim acho que teve uma vida plena.

– Sim, temos uma vida plena – ela falou.