A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA

A coluna Narrativas desta sexta-feira traz um capítulo do novo livro, ainda inédito, do físico e escritor Marcel Novaes. O autor de livros de história narrativa, como O GRANDE EXPERIMENTO (Record) e DO CZARISMO AO COMUNISMO (3 Estrelas), passou corajosamente à ficção. O título de trabalho de seu romance é O ASSASSINATO DO VELHOTE INIMIGO QUE MORREU ONTEM: a investigação de um jornalista nos dias de hoje sobre a morte de seu pai, preso e assassinado pela ditadura militar nos anos 70, com muitas referências a personagens e acontecimentos reais da história recente do Brasil.

***

Juvenal e Walter bateram na porta do quarto de Carla, chamando aos gritos. Mauro se levantou assustado e abriu a porta de cueca.

— Mas o que é que vocês querem? Calma que o Brasil é nosso…

— Está tendo uma guerra na Maria Antônia! Vamos!

Vestiram-se às pressas e entraram no carro do Walter, um fusca branco que ele cuidava como um filho. Durante o percurso, os dois rapazes viravam a cabeça para trás freneticamente, procurando colocar Eulália e o casal a par da situação. Explicaram que Epitácio já estava lá, no meio da confusão.

— O pessoal da Filosofia fechou a rua, ontem, para cobrar pedágio dos carros que quisessem passar. A ideia era angariar fundos para ajudar na organização do congresso da UNE. O pessoal do Mackenzie, que fica do outro lado da rua, ficou provocando.

— É o CCC, tem muita gente do CCC no Mackenzie.

— Isso. São um bando de reaças. Então, ontem passaram o dia gritando com a nossa turma, querendo briga. O Zé Dirceu mandou recuar o bloqueio para os carros poderem passar, mas o pessoal do Mackenzie continuou enchendo o saco. Hoje de manhã, a confusão recomeçou.

— Eles arrancaram cartazes e jogaram ovos no prédio da Filosofia, daí o nosso pessoal começou a jogar pedras neles. Só sei que a coisa foi piorando e agora parece que tá feia mesmo.

Mauro buscou a mão de Carla. A ideia de se meter numa briga de verdade o assustava. Seria capaz de dar um soco em alguém? De jogar uma pedra? Mais importante ainda: estava disposto a levar um soco ou uma pedrada? O que seus pais diriam de uma coisa dessas? Pelo menos o problema não era com a polícia, era só entre estudantes. Talvez nem fosse tudo isso.

Pararam o carro a duas quadras do local e foram a pé. Conforme se aproximavam, ouviam a trilha sonora de uma verdadeira guerra, ou pelo menos era como imaginavam que fosse uma guerra: gritos e explosões. Mauro se deu conta, aflito, de que, na pressa de sair de casa, não fora ao banheiro. Quando viraram a esquina, viram que a coisa não estava só feia e sim feíssima, horrenda. Um garoto passou correndo por eles carregando uma barra de ferro que tirara de um canteiro de obras na vizinhança. Empunhando o objeto como uma lança, ele o arremessou por cima do ombro. Os amigos pararam de andar para olhar a barra traçar uma curva no ar e entrar por uma janela do Mackenzie.

De outra janela voou um pano molhado, que caiu no colo de uma moça. Ela deixou-se atingir e pareceu até divertida, afinal desde quando um pano molhado é arma de ataque. Mas logo em seguida começou a gritar desesperada: o pano estava encharcado de ácido sulfúrico. Ela foi rapidamente levada para dentro do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Mauro teve vontade de ir embora. Queria estar sentado na mesa da sala da pensão, queria pedir a dona Matilde um leite com chocolate e assistir à televisão. Estudar um pouco. Ou mesmo voltar para casa, dar um abraço em sua mãe. Qualquer lugar seria melhor do que ali. Que desculpa poderia dar para desaparecer?

Na sequência, uma garrafa passou voando por cima da rua. Preso a ela, um tecido em chamas. Coquetel molotov. Explodiu na parede do prédio da Filosofia, formado uma língua de fogo azul e amarelo que queimou por vários minutos.

Mauro e seus amigos correram para dentro do prédio. Pessoas passavam por eles com pedras na mão, para atirá-las contra o inimigo. Impossível sair dali. O jeito era ficar e lutar. Queria perguntar a alguém onde ficava o banheiro, mas teve vergonha. “Vamos jogar pedras também!”, chamou Eulália, já a caminho com passo decidido e seios balançando.

Havia muitas pedras, que tinham sido trazidas da construção para serem usadas como munição. Iam até o depósito, vinham com uma em cada mão, atiravam com toda a força, voltavam para pegar mais duas. Uma vez, quando voltava para recarregar, Mauro desviou-se do caminho e foi atrás de um banheiro.. Tinha pressa por dois motivos: estava prestes a se aliviar nas calças e não queria que dessem por sua falta.

Entrou nas cabines, uma por uma, procurando onde houvesse papel higiênico. Não havia nada. Pensou em se virar com papel toalha, mas esse também estava em falta. Ele se limparia com as meias, então, paciência. Entrou em uma das cabines e encostou a porta, mas não havia trinco para fechá-la. Abaixou as calças e se sentou, mantendo uma das pernas esticada para segurar a porta com o pé. Torcendo para que não aparecesse ninguém, relaxou os músculos do abdome. Soltou um pum estrondoso. Estivera sofrendo de gases. As meias estavam a salvo, afinal. Subiu as calças e voltou correndo para a frente de batalha para jogar mais umas quantas pedras, com força redobrada.

A certa altura, pararam para descansar e Walter perguntou por Epitácio, que alguém disse estar no andar de cima. Foram para lá. Mal chegaram, alguém colocou um rojão na mão de cada um. “Façam boa pontaria!”. Sem responder nada, chegaram perto da janela, acenderam os rojões e os dispararam na direção do Mackenzie. Ouviram os estouros, mas não puderam ver o que tinham acertado. “Saiam logo daí!”. Não era seguro ficar exposto. Afinal, o outro lado também tinha os seus rojões. Ademais, precisavam dar espaço aos próximos atiradores.

— Pessoal, aqui tem gasolina para fazer os molotov.

Quando se viraram para ver quem estava falando, a surpresa: era o próprio Epitácio. Abraçaram-se em meio à confusão.

— Que bom que vocês vieram.

O encontro foi interrompido por uma sequência de estampidos secos.

— O que é isso? — perguntou Mauro.

— São tiros. Eles estão atirando contra o nosso prédio. Fiquem longe das janelas. Luís, Luís!

Epitácio chamou um colega que ia passando e o fez se juntar a eles.

— Pessoal, esse é o Luís Travassos. Ele está no comando aqui. Luís, eles vieram ajudar.

O tal Luís mostrou onde estavam as garrafas para fazer os molotov e cada um deles pegou uma. Uma nova sequência de tiros atingiu a parede pelo lado de fora e uma janela se estilhaçou.

— Filhos da puta! Estão querendo nos matar!

Correram para encher suas garrafas de gasolina. Quando estendeu o braço, Mauro percebeu que sua mão tremia. Tentou disfarçar segurando com as duas mãos. Epitácio encaixou um funil para verter a gasolina dentro. Alguns rapazes tinham tirado e rasgado suas camisetas para produzir pavios. Com tudo preparado, desceram as escadas. Na rua, encontraram voluntários com isqueiros a postos para acender as bombas, uma de cada vez, antes que as jogassem com força contra o Mackenzie.

Mauro estava achando aquilo uma loucura. O que estavam querendo alcançar ali? Os adversários ocupavam a porção mais alta do terreno e atiravam com armas de fogo. Eles se expunham a levar tiros para jogar aqueles coquetéis, que se espatifavam na parede de forma inofensiva. Ver a bola de fogo subindo era tão bonito quanto inútil.

Enxugou o suor da testa com a mão e se esforçou para achar uma maneira de formular a sugestão de que fossem embora. Não queria parecer covarde nem derrotista, apenas sensato. Enquanto pensava, viu um garoto parado ao seu lado, com uma bolsa nas costas.

— Ei, garoto, como se chama?

— José.

— José do quê?

— José Guimarães.

— Você é muito novo para estudar na USP…

— Não, eu estudo aqui perto, no Colégio Marina Cintra. Fica ali ó, na Consolação.

Era um secundarista.

— Vai pra casa, menino. Aqui é muito perigoso.

— Eu não tenho medo, não.

— Pois devia ter. Eu mesmo…

Antes que Mauro acabasse de falar, o garoto foi atingido na cabeça por um tiro e desabou.

Primeiro, Mauro ficou paralisado, olhando para o corpo. O mundo ficou em animação suspensa por alguns segundos. Depois, recuou, assustado e balbuciante.

— Gente… o menino… o menino…

Puxou Juvenal pela camisa e apontou para a cena. As moças se voltaram para ver o que era e começaram a gritar. O amigo imediatamente tomou o garoto nos braços e o levou para dentro do prédio da Filosofia. De lá, o corpo foi levado à Santa Casa.

Carla se abraçava a Mauro, chorando muito. Ele queria ser forte para lhe dar apoio, mas também estava muito abalado. Caminharam até um canto mais tranquilo, sentaram-se no chão e choraram os dois. Além da tristeza, Mauro sentia raiva. Raiva do atirador. Sobretudo do atirador, mas não só. Tinha raiva da polícia, que não aparecia para resolver aquela loucura. Raiva dos amigos, que o tinham levado até ali. Raiva de si mesmo, por ter aceitado ser levado até ali. Tinha raiva até do menino. Secundarista ainda, se colocara na frente do perigo. Para quê? Por uma vaga noção de coragem, de sacrifício? Que burrice. Onde estaria sua coragem agora, depois de morto? Aquilo tudo era um pesadelo.

A luta continuava, levada a cabo pelos que ainda não tinham ficado sabendo do que acontecera. Aos poucos, a notícia da morte de José se espalhou e mudou a disposição dos uspianos. Desistiram de defender o prédio e saíram em passeata. Mauro e seus amigos foram também.

Quando o pessoal do Mackenzie viu o prédio inimigo sendo abandonado, correram para ocupá-lo e incendiá-lo, celebrando a vitória.

A passeata ainda não tinha se afastado muito quando alguém começou a discursar aos gritos, empoleirado na janela de uma casa. Tinha nas mãos a camiseta ensanguentada de José Guimarães. Carla sussurrou em seu ouvido: “Aquele é o José Dirceu.” Mauro não ouvia direito o que o orador estava dizendo, mas percebeu o espírito da fala: a culpa era da ditadura.

Recomeçaram a andar e a ideia fazia cada vez mais sentido. A culpa direta era de quem atirou, mas a razão de tudo aquilo estar acontecendo era a ditadura. Não era o ditador — Costa e Silva estava em Brasília e nem sabia que naquele dia alguém chamado José tinha levado um tiro na cabeça em São Paulo, na rua Maria Antônia. Era o sistema, o regime. Os militares queriam se impor pela força, continuariam se impondo pela força. Não entregariam o poder pacificamente. Tinham que ser derrubados ou continuariam produzindo outros Josés.

A turba estava vandalizando um carro da polícia. Os policiais não pareciam estar por ali. Mesmo que estivessem, não estariam em posição de fazer muita coisa. Eram o braço armado do regime, viviam a seu serviço e portanto aquele carro representava a repressão. Queriam destruí-lo e tinham toda a razão para isso. Mauro viu que um colega levava na mão um molotov.

— Me dá isso!

Tomou a bomba da mão do outro, encontrou alguém que a acendesse e arremessou-a contra o vidro do carro da polícia. O fogo subiu. Os que estavam em torno bateram palmas e assistiram ao carro arder.

— Muito bem, Careta! — gritou Juvenal.

— Mauro — corrigiu Carla. — O nome dele é Mauro.

As chamas ardiam, hipnóticas. Queimavam junto com elas o seu apelido. Não seria mais o Careta. Mas ele queria mais, queria que elas queimassem sua ingenuidade, sua passividade. Sua alienação. Queria jogar lá dentro seus cadernos, seus livros de cálculo, suas roupas. Queria entrar ele mesmo numa pira funerária e sair renovado.

Sentiu que Carla lhe puxava o braço. Gostou de sentir aquele puxão. Era o puxão da vida. Ele queria ser puxado. Desejava ir com ela, ir com aqueles que ali estavam, que o puxassem o quanto antes e saíssem correndo, para qualquer lugar.