“A CRIAÇÃO É MEU LUGAR DE FALA”

Luciana Villas-Boas

Em 2017, portanto antes da última eleição para presidente, Henrique Schneider venceu o Prêmio Paraná de Literatura – a crítica e editora Heloisa Jahn à frente do júri -, com o romance SETENTA (dublinense), trama e reflexão sobre a tortura. Esta semana, sob um presidente que já se declarou a favor da tortura e que diz ter saudade da ditadura, Schneider está pondo ponto final em A SOLIDÃO DO AMANHÃ, que trata do exílio sob o prisma da fuga e do medo do desconhecido. Ficará faltando X, cujo entrecho está quase fechado na cabeça do autor, para ele terminar sua trilogia romanesca sobre três verdadeiros Cavaleiros do Apocalipse, o tripé de de todos os governos totalitários – Tortura, Exílio e Censura -, projeto que ganhou “maior urgência” sob o atual governo. Mas Schneider, autor também do premiado O GRITO DOS MUDOS e de CONTRAMÃO (ambos Bertrand Brasil), tem outra magnífica narrativa pronta sobre um amor lésbico entre professora e aluna no interior do Brasil, na década de 20 do século passado. Apesar de jamais ter ouvido, na sua condição de homem branco e hétero, que voltasse para o tanque, para a África ou para o armário, ele acredita estar no seu lugar de fala. “Na literatura, o meu lugar de fala é o da criação.”

VB&M: Como surgiu a pulsão de escrever uma trilogia romanesca sobre três verdadeiros Cavaleiros do Apocalipse – Tortura, Exílio e Censura -, base de sustentação de todas as ditaduras?

HS: Na verdade, a ideia de escrever a trilogia sobre esses três temas específicos – espécie de tripé das ditaduras – surgiu após eu ter escrito o SETENTA, que trata da tortura. Ou seja: enquanto o SETENTA estava sendo escrito, ainda não existia claramente a intenção da trilogia.

A ideia da trilogia foi se formando, sem que eu verdadeiramente percebesse, no próprio processo de escritura daquele livro, ao tempo em que eu me dava conta do quanto ainda havia para falar – e precisa ser falado – sobre esse tema tão triste e sombrio.

Porque existe uma espécie de apagamento desse período, do tipo que pensa que “é hora de olhar para a frente e esquecer do passado”, algo como virar a página sem tê-la lido. Basta ver o tanto de garotada que foi tempos atrás às ruas com cartazes que, de uma forma ou de outra, louvavam a ditadura. Foram as ruas louvando um regime que não lhes permitiria ir às ruas.

Por isso, acho necessário esse tema. Ainda mais nos dias de hoje.

VB&M: O primeiro título da trilogia, SETENTA, venceu o prêmio Paraná de Literatura 2017, sendo portanto anterior à eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. O atual governo dá uma nova dimensão ao romance e ao projeto da trilogia como um todo?

HS: Sim, o atual governo dá maior urgência ao projeto. Temos na presidência alguém que já declarou mais de uma vez ser favorável à tortura, que homenageia seguidamente notórios torturadores, que declara que sem voto impresso pode não haver eleição em 2022 e que não disfarça sua saudade e apreço pela ditadura.

Há um cotidiano e reiterado ferimento às liberdades civis e individuais, aos direitos trabalhistas, sociais e humanos, em que as minorias e os pobres são os mais atingidos. Há, em resumo, uma ameaça cotidiana à democracia. Por isso, necessário que cada vez mais se evidencie o perigo de uma ditadura – e acho que a trilogia se insere nesse objetivo.

VB&M: Qual foi a inspiração para o entrecho de A SOLIDÃO DO AMANHÃ, a história do Exílio, que você finaliza esta semana?

HS: A SOLIDÃO DO AMANHÃ fala do exílio. Mas decidi tratar o tema sob um prisma um pouco distinto: em vez de falar do exílio em si, escrevi sobre a viagem que leva ao exílio.

No caso, conto o percurso do protagonista Fernando, militante da combalida resistência estudantil, de Porto Alegre até Melo, na fronteira Brasil/Uruguai, onde companheiros daquele país o aguardam. Fernando, que havia sido preso e torturado, é levado de carro até a fronteira pelo pai de um amigo de infância, funcionário público sem qualquer envolvimento político, e que só faz essa viagem pelo fato de conhecer Fernando desde que ele era criança – e com a condição de que não se fale em política.

Muitas histórias assim aconteceram. A que conto tem inspiração na viagem feita pelo militante Marco Aurelio Garcia, que foi levado pelo pai de um amigo de infância de Porto Alegre até a uruguaia Rivera. Quem me contou essa história fascinante foi o jornalista, promotor público e carnavalesco Claudio Brito – o pai dele levou Marco Aurelio Garcia ao exílio.

A incerteza do percurso Porto Alegre-Melo, a incerteza ainda maior do que viria depois, dois personagens tão diferentes – achei que esta era uma história que valia a pena contar.

VB&M: A história do romance sobre a Censura já está em sua cabeça e tem título?

HS: O título provisório da novela sobre a Censura é X, porque costumo dar nome aos meus livros enquanto os escrevo, para melhor situá-los em mim. O “X” era uma das marcas com as quais os censores proibiam palavras, trechos ou obras inteiras.

Ainda não tenho o roteiro definido, empenhado que estou em dar as últimas revisadas em A SOLIDÃO DO AMANHÃ. Mas o enredo, de alguma forma, já começa a me rondar. A ideia inicial é traçar duas histórias paralelas que estabeleçam uma espécie de diálogo entre si, uma acontecendo nos anos mais duros da censura e a outra nos dias de hoje, em que a censura segue acontecendo, ainda que com outros matizes, num país em que governo e parte da sociedade consideram a diversidade de pensamento e a cultura como ameaças.

Não será uma história fácil de ser contada. Tomara eu tenha competência para fazê-lo.

VB&M: A boa ficção é sempre política de alguma maneira? A questão do poder é o grande tema da espécie humana?

HS: A escritora estadunidense Willa Cather dizia que há apenas duas ou três histórias humanas, que se repetem com tanta força que é como se elas nunca houvessem acontecido antes. Acho que o poder é uma dessas duas ou três grandes histórias humanas – e, por consequência, um dos grandes temas da literatura.

E ainda que não se exija que a boa ficção seja política em seu espectro mais amplo, o fato é que a minha literatura o é – o que não significa que seja um manual de procedimentos, cartilha, panfleto ou propaganda. São tempos que exigem compromisso.

VB&M: Você tem outro belo romance pronto, com o título provisório de AS MULHERES QUE ROUBAVAM ROSAS, que conta a história de um amor lésbico entre professora e aluna de escola, ambientado numa cidade do interior, no início do século XX. Para escrevê-lo, não o preocupou a questão do lugar de fala, recentemente inventada mas já tão debatida?

HS: Essa resposta exige uma pequena introdução. Sou homem num país e mundo em que homens possuem mais direitos que as mulheres. Sou branco num país e mundo em que os brancos possuem mais direito que as outras raças. Sou heterossexual num país e mundo em que os héteros têm mais direitos do que as pessoas com outra condição.

Nunca me mandaram voltar para o tanque, para a África ou para o armário. Ou seja: já nasci, digamos assim, com todos os direitos garantidos. Não precisei lutar por eles. Mas as lutas contra o racismo, misoginia, machismo e homofobia são também as minhas lutas. Porque são as lutas daquelas pessoas de quem estou ao lado.

E a literatura também pode ser uma forma dessa luta. Acho importante que possa ser assim, de modo a que não se segreguem questões importantes que dizem respeito à sociedade como um todo.

Agora, no momento em que saio da minha zona de conforto branca, hétero e masculina, mais importante ainda se torna a necessidade de cuidado e da pesquisa, a fim de não repetir chavões ou estereótipos ou, pior ainda, escrever bobagem. Tomei esse cuidado, e acho que criei não uma bonita história de amor, mas a história de um amor bonito.

Na literatura o meu lugar de fala é o da criação.

VB&M: Você escreve e lança sua literatura desde Novo Hamburgo, onde sempre viveu. Quais os maiores desafios e particularidades da construção de uma carreira literária fora do eixo Rio-São Paulo e algo distante até da capital do Estado, Porto Alegre?

HS: Sim, vivo e trabalho em Novo Hamburgo. E na verdade, falo aqui de um duplo distanciamento: físico, por morar longe dos polos editoriais mais fortes, e profissional porque, na condição de advogado de trabalhadores e entidades sindicais, não vivo a literatura 24 horas por dia.

Essa dupla distância, por óbvio, torna mais difícil a divulgação de meu trabalho literário. Vivo longe, circulo pouco e contato ainda menos. Costumo brincar que foi um trabalho enorme sair da situação de completo desconhecido para a de ilustre desconhecido. Mas isso não é uma reclamação. É apenas uma condição: quando escolhi ficar em Novo Hamburgo, escolhi também essa dificuldade extra, apenas fazendo com que eu tenha que trabalhar um pouco mais, o que está longe de ser ruim. Afinal, se essa condição me deixa mais distante da literatura, também faz com que eu lute mais para me aproximar.

VB&M: Em 1989, jovem autor de 25 anos, você iniciou sua carreira literária com um elogio consagrador do inestimável professor e crítico Paulo Rónai a O GRITO DOS MUDOS: “Obra-prima de um escritor que domina a sua arte (…) conduz a sua história com mãos de mestre e sabe prender e comover o leitor.” A partir daí você pensou que seria tudo fácil? A literatura valeu a pena até agora?

HS: O GRITO DOS MUDOS venceu um prêmio literário importante à época – o Prêmio Maurício Rosemblatt de Romance -, de cujo júri o mestre Paulo Rónai era presidente. Naquele momento achei que sim, que seria tudo fácil – e então cometi o engano de ficar um tempo largo sem publicar, o que fiz apenas quase dez anos depois.

Assim, precisei meio que recomeçar – e, na condição de escritor que vive fora das capitais, não foi, nem é, fácil. Mas isso, repito, é apenas uma condição e não uma reclamação. Trabalho e disciplina ajudam a resolver.

Mas que a literatura vale a pena, para mim não há nenhuma dúvida. Ela é essencial em minha vida – sempre me proporcionou bons encontros com gentes e lugares e as chances de bem aprender.

Além disso, através da literatura, me conheci melhor. Talvez isso não tenha a ver com sucesso – mas acho que tem.