A DEMÊNCIA DA CRIAÇÃO E DA POESIA

A coluna NARRATIVAS & DEPOIMENTOS ficou tempo indevido sem trazer poesia ao blog da VB&M, mas hoje compensa com uma seleção de poemas que exibe apropriação estética da linguagem e da língua portuguesa, para enfrentar o lirismo da criação demente, como raramente se vê na produção poética contemporânea. Por sugestão de outro imenso poeta, Lúcio Autran, a coluna apresenta poemas de “Manto”, do professor de Literatura Oswaldo Martins. Criado a partir da vida e da obra do artista Arthur Bispo do Rosário e lançado em 2015 em pequena tiragem pela TextoTerritório com posfácio de Silvano Santiago, “Manto” orbita o tema da loucura a partir da perspectiva do sujeito e compreende diversos tipos de metamorfose. O autor explica: “Desde a busca por assumir um eu lírico que é outro (neste duplo oswaldo-arthur), passando pela metamorfose do escrito em escrito visual não-concreto, mas devedor dos poetas concretos, até a metamorfose da linguagem cotidiana em possibilidades de linguagens que são operadas por uma invenção da linguagem, através do que se metamorfoseia em curinga desta língua – a mesma nossa cotidiana e outra, detentora da demência da criação”. Lúcio Autran, ao escrever sobre a poesia de Martins, comenta: “Oswaldo vai, como Bispo, recompondo na poesia, na linguagem, alguma lógica possível, embora improvável, e há momentos em que a linguagem / linhas de ambos se entrecruzam, intercalando-se, entretecendo-se, o poeta se apropriando da língua / linha do artista, nos mostrando, ou mais precisamente, nos fazendo vivenciar as tentativas de reconstrução desesperadas de Arthur.”

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da cidade 1

padrão marca d’água cerâmica
mudam as cores dos assoalhos

as pedras as portuguesas cílios
as alças as impressas em ruas

a cidade os trilhos dos elétricos
as putas cardioamantes mudam

como os objetos vivos as praças
com seus bancos e marulhos dê

mudam este estar quieto solo
de nuvens e o céu quê de azul
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da cidade 2

no oco das ruas a atmosfera e o miasma
o dente podre incita dor voejam mosquitos
amarelos que suas asas de cordel noticiam

a cidade é isto que se verá benditos
pendidos no carrilhão das horas quê
os templos múltiplos a cela azul adentro

a vida livre dos homens tortos
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marinhagem

quem encanta da sereia a ventania
o alvoroço dos outros são vozenvio
do que ainda perdido de mim erra

esse mosquito adrede na cabeça
que vem e vem a som e tarantina
a corpo a água o pus que abcessa

quando rirem as caveiras de sal
imagem do pavor as ocas séries
vestir zumbido no objeto serial

a manitô cama de subir aos céus
ordenará mar e a boca acera
cuspirá chamas
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igreja

zabumbas retinem nesta nave fluvial
ergue lanças o rubro guerreiro dança
de alpercatas e surrão nos cabelos os
ventos de mil direções criam nuvens

de poeira no redemunho da arca na
fulva cabeleira do profeta o gestual
primitivo em chispas em pura força
sêmen do deus o espalha das brasas

e desde então o objeto do mundo
guarda sóbria sugestão vindouro
pergaminho de exu a gafieira ara
a terra permite no invólucro leve

o eu
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hospício
os portões as insígnias
os camisolas-paxá as agulhas

os desviados que os levam para lá
os deuses

empilham em mundos os objetos
sujeitos à desordem

constroem construtos exatos
tão à força das mãos

que alfabetizam os nomes
das coisas que se perderam