Com dois títulos de sua vasta e magnífica obra de reconstituição histórica saindo em Portugal este ano – D. MARIA I, pela Leya, e O MAL SOBRE A TERRA, pela Objectiva-Random House, Mary del Priore põe o dedo na ferida maior do nosso passado, a ambiguidade moral que distingue os habitantes da Terra Brasilis desde o início da colonização e que se reflete em um corpo de valores e práticas para o ambiente doméstico e outro bem diferente para o público; mas ela indica também as responsabilidades do brasileiro de hoje, que elege “políticos que beiram a marginalidade”, indiferentes às necessidades sociais de educação, saúde e civilidade. Nesta brilhante entrevista, a historiadora fala ainda de depressão, assunto que conhece profundamente depois de biografar dois deprimidos de épocas que desconheciam o diagnóstico dessa doença: Dona Maria e O PRÍNCIPE MALDITO, Pedro Augusto de Saxe e Coburgo, que se julgava herdeiro de D. Pedro II e morreu em um asilo para loucos no início do século XX. Finalmente, ela reflete sobre a pandemia da Covid-19 à luz do sofrimento e do sentimento de mal sobre a terra provocado pelo terremoto de Lisboa, em 1755.
VB&M: O título de seu livro sobre o terremoto de Lisboa de 1755, lançado em 2003 pela Topbooks e a sair em Portugal em outubro pela Objectiva-Random House, é O MAL SOBRE A TERRA. Soa atual. É possível traçar um paralelo entre os sentimentos de Apocalipse que acometeram os lisboetas do século XVIII, certamente a pensar que todo o Mundo conhecido da época estava sofrendo igual suplício, e o pavor contemporâneo provocado pela Covid-19 e a decorrente crise econômica?
MP: No passado, a comunicação circulava com mais vagar, atribuíam-se flagelos aos castigos de Deus por pecados da carne – a ponto de um governador-geral expulsar as prostitutas da cidade. Não havia médicos, e sim curandeiros e benzedeiras cujos remédios mais eficazes eram à base de gordura de bode, solas de sapatos queimadas e copaíba. As pessoas não temiam a morte, simplesmente preparavam-se para morrer. Desde o período colonial nossos portos foram assolados por epidemias de cólera, febre-amarela e varíola. As maiores vítimas encontravam-se sempre nas aglomerações urbanas. Não faltou quem quisesse impedir a entrada de forasteiros, com arcabuz à mão, como fez um capitão-general em São Paulo, no século XVII. Os problemas só começaram a acabar no século XX, graças às vacinas e, desde 1988, graças ao SUS. Hoje, o descrédito nos políticos e na política estendeu-se à ciência. Para o bem coletivo, poucos “interiorizaram”, como se diz, a necessidade de manter-se confinados. Ora, não podemos construir a responsabilidade dos eleitos com a irresponsabilidade dos eleitores. A democracia só existe, de verdade, com cidadãos responsáveis. Quanto à economia, fico com John Kenneth Galbraith: “A única função das previsões econômicas é fazer a astrologia respeitável”.
VB&M: Seu lançamento brasileiro mais recente, D. MARIA I, da Benvirá em 2019, é a biografia da mãe de d. João VI, que entrou para a história como “a Rainha Louca”. O livro, que também está saindo em Portugal, agora mesmo pela Leya, mostra que de louca d. Maria nada tinha, um caso grave de depressão, isto sim, numa época que não dispunha desse diagnóstico. O leitor se impressiona com o conhecimento clínico da autora sobre a depressão e mais o tanto que ele aprende sobre o assunto. O que você tem a dizer aos deprimidos de hoje em dia, jogados nessa condição por não suportarem a ideia de que no mundo todo o retorno a um estilo de vida dito normal pode não se dar em três anos ou mais?
MP: A rainha D. Maria lutou ferozmente contra a insidiosa melancolia, depois de perder, em cascata, seis entes dos mais queridos. Praticava a equitação, tomava banhos sulfurosos, enfim, fez o que a medicina recomendava na época. Só não se afastou da culpa que a roía. Sentia-se ingenuamente responsável pelos pecados do pai, pela doença que levou seus filhos, enfim, por tudo de mal que se abatia sobre a terra. Sentia-se responsável por forças naturais e mais fortes do que ela, de cujas consequências não queria fugir. Afinal, era a rainha. Sua responsabilidade era uma obsessão da qual ela não podia se desfazer como quem esquece alguma coisa pelo caminho.
Hoje, a depressão nasce menos da culpa – Freud e a psicanálise estão aí – e mais da solidão. Há um sentimento de que o mundo gira, o filme da vida passa, e muitos de nós assistem a tudo, em silêncio, a visão embaciada. Mas, como fez Maria, é preciso resistir. Guardar preciosamente a chama frágil da existência. Nada de se acomodar com o inimigo, mas lutar. Ficar de pé. Porém resistir implica escolhas. Não basta defender sua vida da depressão, mas os valores que lhe dão sentido e a fazem valer a pena de ser vivida. É para os valores que temos que olhar…
VB&M: Outra biografia de sua autoria a ser relançada em breve, pela Pausa, com direitos de cinema já vendidos, é O PRÍNCIPE MALDITO, Pedro Augusto de Saxe e Coburgo, aliás outro protagonista deprimido, que sonhava herdar o trono do avô, d. Pedro II. Uma das surpresas dessa leitura é constatar a semelhança das práticas políticas no Brasil de fins do século XIX com o que acontece hoje em dia, não só da parte dos representantes do poder e da oposição, mas até da imprensa. A raiz da tragédia política da república brasileira, que vivemos com tanta dor, encontra-se no período imperial?
MP: É confortável dizer que tudo se deve ao passado escravista, a um Império arcaizante e a uma elite vampiresca. Mas estamos no século XXI. Prefiro me perguntar quem somos. E a sociedade, qual a parte dela nisso? Afinal, vivemos num regime democrático. Por que razão elegemos políticos que beiram à marginalidade e que, com honrosas exceções, esquecem de fazer políticas de excelência na saúde e educação? Que ignoram os níveis de violência de que é vítima a sociedade? Que se recusam a pensar na desigualdade social que machuca o país? A resposta talvez se encontre na dupla moral que nos acompanha desde o início da colonização. Na ambiguidade em relação às regras e que, como lembra o sociólogo Leonardo Avritzer, se reduz à ética das relações domésticas e familiares, fechando os olhos para o que é público. Ele a denomina “familismo amoral”. O familismo amoral faz parte das tais “coisas antigas” que atravessam por séculos a nossa história. Coisas que nos fazem pensar que o passado não passou. Que, como disse o jornalista Millor Fernandes, “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Um passado que nos aprisiona e se cola à nossa pele. Na rua, liberais e tolerantes, progressistas e modernos. Em casa, antissemitas, racistas, homofóbicos e machistas. Essa fisionomia bifronte se vê claramente nos comportamentos diários que nós mesmos temos – não só os políticos: a propina para amaciar a multa, a buzina estridente na porta do hospital, as piadas de baixo nível envolvendo minorias, a crença não confessa de que “bandido bom é bandido morto”, hábitos de incivilidade como falar palavrão aos berros, avançar faróis vermelhos, jogar lixo pela janela.