A ILHA DE ABRANCHES

 

Em Narrativas, o conto de hoje da série “Vai ficar tudo bem”, podcasts da Storytel, pela primeira vez publicado por escrito no blog VB&M, é “Minha ilha particular”, de ensaísta político e ficcionista Sergio Abranches, autor de O TEMPO DOS GOVERNANTES INCIDENTAIS (Companhia das Letras) e de QUE MISTÉRIO TEM CLARICE (Globo).

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MINHA ILHA PARTICULAR

Sergio Abranches

A notícia chegou de repente. A doença deixou a China e se espalhou pela Europa, passei a segui-la. Virou uma compulsão. Por dias, praticamente sem dormir, saltava pelos canais noticiosos na TV e lia jornais dos países já ocupados pelo invasor invisível e desconhecido. Ficou claro, para mim, que a única saída seria o autoconfinamento. Fiz estoques, comprando online medicamentos, máscaras e luvas, material de limpeza, litros de álcool 70%, Listerine (tem álcool 65%), termômetros, comprei até aquele que as autoridades usavam nos aeroportos. Fiz uma grande compra de mantimentos. Muitos pacotes de congelados. Bebidas, galões de água. E tranquei-me em casa. Decidi que só abriria a porta caso precisasse ir ao hospital. Mas, para isto, o inimigo teria que me alcançar dentro de minha fortaleza. E não havia evidência de que ele pudesse contaminar uma pessoa sem contato. Só o vapor de saliva no encontro face a face e as gotículas dele, depositadas em mãos ou superfícies lisas, traziam o vírus. Acho que nunca mais estenderei a mão para um cumprimento, abandonarei a mania de cumprimentar com dois beijinhos falsos, agora dois verdadeiros canhões viróticos. Ou, ao contrário, quando tudo acabar terei o desejo de pegar, abraçar e beijar todos os sobreviventes que encontrar?

O inimigo desembarcou no Brasil logo em seguida. Ele viaja muito rápido e se alastra mais rapidamente ainda. O presidente afundou-se em sua alienação do mundo real. Vivia amimado pelo sonho de um passado que nunca existiu como ele o imaginava. Achava que o vírus não sobreviveria entre nós porque somos um país tropical. Bom, o que ele pensa é irrelevante, desde que médicos, governadores e prefeitos continuem tomando as precauções necessárias e combatendo o bom combate.

São Paulo entrou em crise. O invasor colhia vítimas na sua marcha sorrateira em escala geométrica. A cidade parou, tudo fechou; escolas, comércio, restaurantes e bares. Como será São Paulo sem seus restaurantes? Muitos ainda não acreditavam no vírus ou se julgavam imunes a ele. Até a ameaça chegar mais perto de cada um, o perigo imperceptível alcançar um amigo, um parente, um deles. Todos cairão na real, mais dia, menos dia. Só o presidente continuará com os olhos postos na miragem do passado idealizado.

Logo em seguida, o tinhoso chegou ao Rio. Também aqui fecharam tudo. O que será do Rio com seus botecos fechados? O carioca sempre foi irreverente e transgressor. Mas, nas horas de precisão, mostra uma disciplina insuspeitada. As praias encheram no primeiro par de dias. Agora estão desertas.

As ruas das duas grandes cidades estão vazias. Uma paisagem insólita. Vi uma imagem da Faria Lima, uma área de finanças, com um shopping de elite, em São Paulo, em hora de expediente, e não havia viva alma andando por suas calçadas. Vi o mesmo na Rio Branco, no Centro do Rio. A impressão era de uma distopia na qual os habitantes foram abduzidos. Mas, quando se entra nas redes, descobre-se que estão todos lá. As pessoas reais foram substituídas por suas personas digitais. Matrix redux.

Agora já não me sinto só. Antes, eu me sentia um ser à parte, o único em isolamento social. Temia que um desconhecido lado misantropo houvesse se manifestado repentinamente. Mas descobri que não era misantropia. Era hikikomori, ou reclusão autoimposta. O hikikomori antes atingia basicamente jovens digitalizados. Uma síndrome japonesa que se espalhou quando os jovens passaram a preferir a convivência digital aos encontros face a face. Agora foi estendido para os que resolveram se proteger voluntariamente da doença. No meu caso, o isolamento foi mesmo uma escolha pessoal. Agora não é mais. Fiquei mais confortado, ao fazer parte novamente da maioria. Estamos juntos, cada um em sua casa. Virou ordem geral.

Achava que 60 anos não era velhice. A ideia de velhice caducou, me disse uma amiga demógrafa um tempo atrás. Mas agora ouço médicos, autoridades, jornalistas a repetir incessantes que sou idoso. Grupo de risco. Vulnerável. Crianças não podem se aproximar de mim. Envelheci em menos de setenta e duas horas. Uma lástima. Espero retornar a meus 60 anos de não-idoso, tão logo tudo isto passe. A primeira coisa que farei será correr do Leblon ao Leme, para todos verem que não sou um decrépito qualquer.

Preciso ter uma rotina. Já automatizei minhas manhãs. Acordo, escolho a roupa que usarei. Recuso-me a sair do quarto de pijama. Seria uma capitulação. Jamais me renderei. Tomo o café da manhã, leio os jornais e vou para o escritório. Transformei um dos quartos em local de trabalho. Nele tenho meus livros, a mesa de trabalho, o computador. Mas, passo a maior parte do dia atrás de notícias, passeando pelas redes sociais. Entro várias vezes no Face, no Insta e no Twitter. Troco mensagens com amigos e grupos no WhatsApp. Preciso ter um programa de atividades, ser mais produtivo no isolamento.

Tenho dúvidas sobre o ponto de partida. Terminar de ler o Murakami, que está quase no fim, ou acabar de ler Berta Isla, do Javier Marías, que ficou pela metade? Tenho que finalizar o artigo encomendado para abril. Dois terços dele já escritos. Falta concluir e rever com cuidado. Quem sabe, reler A Teoria Geral do Esquecimento, do Agualusa? Nele, a personagem central fica em autoisolamento por 30 anos. Não que ache que ficarei confinado tanto tempo. Em meses, o inimigo terá passado, matado muita gente, um número maior ainda terá conseguido vencê-lo e ficará imunizado. Meu isolamento está cheio de coisas a terminar e outras, mais numerosas, a começar. Olho a pilha de livros que ainda não li e que estarão lidos antes que eu possa sair novamente.

Tenho uma lista de filmes para ver. Meu amigo Lula deu um concerto ao vivo no Insta. Pedi à Alexa para me lembrar um pouco antes, mas tive uma videoconferência no horário. Pensei que seria capaz de escolher com toda liberdade o que faria durante o confinamento. Afinal, a ideia de ficar em casa, a restrição do direito de ir e vir, deveria ser compensada pela liberdade de fazer o que quiser, a hora que bem quiser. Descubro que nem no isolamento voluntário e rigoroso meu livre-arbítrio é integral. Encontro limites onde imaginava que não existiriam.

Termino o Murakami agora? Completei 30 dias de isolamento. Posso escolher o que leio e a hora que leio. É diferente de procrastinar. Mudo de leitura ao longo do dia. Variar é uma receita experimental para o tédio. Escolho a hora de trabalhar. Só não pode ser na terça, quinta e sábado pela manhã, porque às oito horas eu tenho o grupo de corrida. Nós corremos juntos, cada um em sua esteira, conectados pelo Zoom. Ninguém corre só e um estimula o outro.

Melhor deixar o Murakami para mais adiante. Então vou retomar a leitura de Berta Isla. Tenho, ainda, o artigo para escrever. É preciso algo que vá além do horizonte incerto da pandemia como alento nos momentos de tédio e aflição. Marcar encontros futuros. Comprar jantares agora e agendar para depois. Vou reler a Teoria Geral do Esquecimento. Decidido.

Estou no 60o dia de confinamento. Aconteceu algo totalmente inesperado. Renata me mandou um wave pelo Messenger. É a irmã mais nova de Maria Lúcia, uma amiga de infância que o câncer levou. Respondi e ela me convidou para uma videoconversa pelo Zoom. Conversamos os quarenta minutos regulamentares. Combinamos jantar amanhã à noite. Pediremos pratos no mesmo restaurante. Tomaremos o mesmo vinho. Os dois gostávamos e tínhamos Amarone della Valpolicella. Ela ficou de me mandar um link do Zoom, sem limite de tempo.

Será que o prazo do artigo será mantido? Tudo está sendo adiado para depois da pandemia. Por precisão, não por maldade. Não haverá prazo para nada enquanto durar este tormento. Os cancelamentos, todavia, continuam válidos. Os atrasos serão aceitos. Eu é que estou ficando sem tempo. Minha agenda social anda muito ativa. Mais do que antes. Nossa vida será contada antes e depois da pandemia. Mas só depois que ela passar. Hoje é lutar pela vida durante a pandemia.

O jantar foi maravilhoso. Renata estava linda no auge dos seus 50 anos. Ouvimos a mesma trilha sonora e ficamos até quase a madrugada juntos. Hoje, terminei o Murakami antes de anoitecer. Renata e eu temos outro encontro mais tarde.

Estou no 75o dia de isolamento. Os dias têm sido leves. Renata juntou-se ao grupo de corrida. Agora corremos juntos. Reli a Teoria Geral do Esquecimento. Ao final do autoisolamento, Ludo sai uma pessoa melhor, com outra história de vida pela frente. Eu também sairei. Eu e Renata vamos ao cinema, à noite. Veremos o mesmo filme e depois jantaremos.

Ontem, no 85o dia de meu insulamento, Renata me contou que foi apaixonada por mim na infância, quando sua irmã fazia parte da minha turma. Ao me redescobrir na rede sentiu a doce lembrança daquela atração, misturada ao sabor amargo da frustração de nunca a ter satisfeito. A memória agridoce a fez me acenar. Esses dias juntos reacenderam a chama. Ela me amava. Eu não a amei naquele tempo. Era muito nova para despertar em mim mais do que carinho. Agora era diferente. Ela me encantava e eu a desejava ardentemente.

Após ficar recluso por 154 dias, chegou a demorada notícia que todos esperávamos. Os principais epidemiologistas do país consideraram a epidemia superada. Acabou o isolamento obrigatório. A Organização Mundial da Saúde colocou o Brasil na lista de países livres da pandemia. Decidi esperar mais alguns dias para interromper meu retiro. Saí da minha ilha particular para correr apenas no 168o dia de isolamento. Eu e Renata corremos à volta da Lagoa Rodrigo de Freitas. Estava uma manhã esplendorosa. O ar muito mais puro me deu nova energia. Renata, a meu lado, era a parte luminosa do legado do isolamento e da tragédia global. Os erros solitários no planalto central estenderam a crise e aprofundaram o colapso do sistema de saúde. Pagamos o preço da resposta atrasada, em vidas e em tempo de confinamento. Havia um clima geral de desconsolo e, ao mesmo tempo, de alívio. Era geral o sentimento de envergonhada satisfação com o fim do tormento. Ainda se morria em outros países. O mundo, o país, minha vida não seriam os mesmos depois desta pandemia. Mudaríamos para melhor.

Renata e eu nos casamos no meu 50o dia de liberdade.