A INVEJA QUE MATA

Quem Conversa Com (A)Gente hoje é Ugo Braga, autor de GUERRA À SAÚDE, sensacional narrativa jornalística sobre o embate entre Jair Bolsonaro e seu então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em plena crise da Covid-19. O livro, recém publicado pela Leya e já vendido para produção audiovisual, esmiúça dia a dia o último mês de Mandetta em seu cargo, trazendo à tona detalhes sobre os debates de gabinete que raramente chegam à sociedade. Sobre a “competição” com o ex ministro, que também lançou seu livro recentemente, Ugo diz não acreditar que exista: GUERRA À SAÚDE tem espírito documentarista e traz dados e informações precisas sobre o SUS, a pandemia e os bastidores do governo, enquanto o livro de Mandetta revela um viés mais memorialístico. Perguntado sobre Bolsonaro, ele define: “o atual presidente da República é uma espécie de criança mimada, ciumenta e birrenta”.

VB&M: Depois do confronto com o ministro Luiz Henrique Mandetta, o presidente Bolsonaro nomeou para o ministério da Saúde o médico Nelson Teich, o Breve, que, por não recomendar a cloroquina para a cura da Covid-19, foi devidamente demovido. Veio então o general Eduardo Pazuello, trazendo para o ministério o valor militar da obediência, mas nos últimos dias ele também está sendo obrigado pelo presidente a se retratar de corretas recomendações e posicionamentos. Como você analisa esse padrão repetitivo de Jair Bolsonaro no trato de um problema tão grave como a pandemia da Covid-19 e a dificuldade de lidar com os executivos que ele mesmo escolhe para a área?

UB: O relato que eu faço no livro é baseado inteiramente em fatos, mas ao longo da narrativa eu construo um raciocínio com base em silogismos. A conclusão inevitável desse exercício é que, politicamente, o atual presidente da República surge como uma espécie de criança mimada, ciumenta e birrenta. No último caso que você mencionou, o do general Pazuello, a birra toda envolve a Coronavac, a vacina desenvolvida por um laboratório chinês em parceria com o Butantã. O caso seria de rir, se não envolvesse a saúde de 200 milhões de pessoas: Bolsonaro encrespou com a vacina porque em primeiro lugar esta será oferecida por um laboratório do governo de São Paulo, onde está João Dória, seu desafeto político. Como se não bastasse, a polêmica toda foi levantada quando o presidente da República respondeu a um comentário no Twitter pretensamente feito por um jovem de 17 anos _ eu estou convicto que é uma conta fake, operada pelas milícias digitais _ reclamando que não queria ter seu futuro influenciado por uma ditadura comunista, então pedia para que ele não comprasse a Coronavac. É de um absurdo tão gritante, tão… tão… só pode ser risível. É a reação de uma criança no poder. O padrão de decisão que temos no Brasil é esse, infelizmente.

VB&M: Narrado como um thriller, GUERRA À SAÚDE é ainda um verdadeiro estudo de caso de inveja política e personalidade narcísica no comando de um país. Você acredita que seu trabalho ofereça material de cunho psiquiátrico e psicanalítico para a pesquisa do narcisismo no poder? Quem sabe um dia seu livro será leitura obrigatória nas escolas de psicologia e psiquiatria…

UB: Eu adorei a pergunta! A audiência vai ler, então não vai poder ver que estou sorrindo agora… Eu escrevi esse livro com uma narrativa complexa, mas linguagem bem simples. A ambição dele é documentarista. Então eu posso dizer que é um recorte da história brasileira contemporânea, nesses tempos tremendamente difíceis, que ficará para sempre. Será lido como jornalismo, como história política e da saúde, quem sabe de várias maneiras e em várias faculdades. Além disso, é preciso reconhecer que livros como GUERRA À SAÚDE são bem raros no Brasil. Quero dizer, livros com relatos dos bastidores do presente, dos debates de gabinete que se transformam em política pública, esse tipo de informação por aqui raramente chega à sociedade, ainda mais da forma crua e esmiuçada como está. Então eu espero que ele sirva aos brasileiros das mais variadas formas.

VB&M: O confronto do presidente Donald Trump com o dr. Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, tem traços semelhantes aos embates de Bolsonaro com seus ministros da Saúde. Você tem alguma dica para o chefe da Comunicação do dr Fauci?

UB: Do ponto de vista técnico, o papel da comunicação numa gestão de crise como essa é, de certa forma, bem simples, porque delineado: espera-se que a sociedade receba as informações sobre o desenvolvimento da doença com clareza, regularidade e método. O ambiente em que essa missão deve ser cumprida lá, como cá, é poluído pela política. Então, quando é assim, frequentemente o emissor da mensagem, que nesse caso deveria ser o dr. Faucci, costuma derrapar, escorregar, porque está sob pressão política. O chefe da comunicação, então, deve fazer de tudo para garantir que a clareza, a regularidade e o método sejam mantidos. Mas não é uma tarefa fácil.

VB&M: GUERRA À SAÚDE é seu primeiro livro. Como conseguiu escrevê-lo tão rapidamente com uma linguagem de experiente narrador?

UB: Bom, eu venho “narrando” profissionalmente há mais de 25 anos, já que sou jornalista. Normalmente, o jornalista tem sua narrativa limitada pela mídia em que ele trabalha. Se é um jornal impresso ou revista, você tem uma quantidade tal de informações a oferecer, porque a mídia fisicamente não é capaz de abarcar mais. Se é na TV, rádio ou internet não tem a limitação física da mídia, mas tem a limitação natural da audiência. Dito isto, na minha opinião, GUERRA À SAÚDE é uma reportagem feita como se deve fazer. Com introdução correta dos personagens, do ambiente, do pensamento em debate. Como é um livro, aquela limitação da mídia impressa foi ampliada e abriu-se espaço suficiente para se contar a história da forma como foi contada. O livro foi escrito entre maio e setembro, então muito editor que tive em minha vida me xingaria um monte se eu demorasse tanto a entregar uma reportagem. Outra coisa importante é que, durante esse tempo, houve um momento em que empaquei. Sentava e não conseguia escrever. Eu estava batendo papo com minha filha, Carol, que está concluindo um doutorado em História na Universidade de Coimbra, e fiz um desabafo sobre meu apagão. Ela me disse que isso era muito comum e contou que leu uma entrevista da escritora moçambicana Paulina Chiziane, em que ela falava desse problema. Paulina achou uma solução. Era preciso delimitar uma fatia do dia, exatamente à mesma hora todos os dias, de preferência quando as demais pessoas da casa já tivessem ido dormir, para sentar e trabalhar unicamente no livro. Nem que fosse só pra ler, pesquisar, revisar. Eu repeti esse método e pra mim foi um bálsamo. As coisas voltaram a andar e fluíram até o ponto final. Claro que ajudou muito o fato de eu ser um leitor voraz de livros, um apaixonado por literatura. Então a forma de introduzir um personagem, de estruturar uma estrada pela qual a história trafegou, isso eu devo à leitura, não tenho dúvida nenhuma.

VB&M: Sua narrativa parece pronta para a tela de TV ou cinema. De fato, direitos audiovisuais foram vendidos para um grande produtor antes mesmo do contrato de publicação pela Leya. Você gosta mais de dramas políticos tipo House of Cards ou de séries médicas? Como você vê seu livro no audiovisual?

UB: Eu adoro uma história bem contada. Algumas são contadas de forma genial. House of Cards é um bom exemplo. As duas primeiras temporadas são excelentes. Depois disso, na minha opinião, foi esticada por vil metal, aí perdeu a graça, porque os roteiristas começaram a forçar situações. No caso de GUERRA À SAÚDE, que, modéstia a parte, é uma história muito bem contada, a editora Leya pôs na resenha um resumo que eu acho oportuno. Diz que se trata da história de como um grupo de servidores públicos se colocou sob a liderança de um médico, o ministro Mandetta, para combater um vírus mortal que ameaça 200 milhões de pessoas e, surpreendentemente, começa a ser atacado pelo presidente da República. É uma história real sobre poder, ciúme, inveja e a guerra eterna entre a vida e a morte. Uma das condições da venda dos direitos do livro era que eu participasse da construção do roteiro, então estou muito animado e curioso para ver como é que vai ser a adaptação para o audiovisual. Estou muito feliz e honrado com a produtora que se propôs a fazer essa adaptação, porque ela vem de dois grandes sucessos de livros adaptados para a tela, então acho que será sensacional.

VB&M: Como estão suas relações com o ex-ministro Mandetta agora que vocês são competidores como autores de Não-Ficção?

UB: Não falei com ele depois do lançamento de GUERRA À SAÚDE, mas não acho que haja qualquer problema de relacionamento entre nós. Meu livro é muito detalhado e, como eu disse, tem espírito documentarista. Significa que nele tem muita informação que um narrador mais político naturalmente filtrará, amenizará. Aliás, conversamos sobre os dois livros tempos atrás, antes de eles serem lançados. Obviamente não podíamos revelar detalhes um ao outro, já que concorreríamos. Mas nessa conversa ele ficou surpreso quando eu disse que havia muitos dados em GUERRA À SAÚDE. Dados precisos do SUS e da pandemia. O ministro Mandetta disse que o livro dele estava sendo inteiramente escrito a partir das memórias, logo não teria dado nenhum. Para ser sincero, eu tenho dificuldade de falar do ministro como um concorrente, tamanho o apreço que tenho por ele e pelo papel que desempenhou nessa guerra que relato.