A LITERATURA BRASILEIRA CORPULENTA E A ESBELTA

Por Alexandre Staut 

Quando penso no tema literatura versus gastronomia, o primeiro livro que me vem à mente é Vidas secas, do Graciliano Ramos. Um dos assuntos mais fortes do romance é a falta de comida, a escassez. Tanto é que, em determinado momento, o protagonista Fabiano mata a tiros a cachorra Baleia. Dessa forma a família miserável teria uma boca a menos para alimentar. Baleia vai para o céu dos cachorros e o narrador diz que lá ela poderia sonhar com preás gordos, enormes.

Há livros com muita fartura. Caso de Arroz de Palma, do Francisco Azevedo. O próprio título do romance, que vai virar série da Globo, já traz um ingrediente culinário. O narrador, Antonio, de 88 anos, prepara um grande almoço para comemorar os cem anos de casamento de seus pais. Todos os descendentes da família aparecem à celebração e o arroz, em clima de realismo mágico, é o fio condutor da narrativa.    

Há livros em que a culinária popular brasileira aparece de forma discreta, mas está lá. Exemplo: os dois romances de Martha Batalha, A vida invisível de Eurídice Gusmão e Nunca houve um castelo. Os personagens da Martha param em botecos para comer salgados, empadas, tomam chope na rua, assim como a gente faz na vida.

Poderia citar muitos outros autores de literatura farta, Zélia Gattai, Jorge Amado, por exemplo. Alguns quase não falam de comida em suas tramas. Nos livros de João Gilberto Noll, come-se pouco. Num deles, acho que em Harmada, o personagem se alimenta durante toda a ação de uma mísera lata de sardinha. Isso é proposital, claro. O autor quer mostrar que o personagem está tão mergulhado num ambiente de loucura, que se alimentar é algo menos importante.

Não são poucos os autores contemporâneos que acham um sacrilégio, algo indigno falar sobre alimentação/gastronomia em seus livros. Talvez devido aos abismos sociais do Brasil. Há muitas obras em que os personagens simplesmente não comem e não há explicações claras para isso. Para mim, um personagem que não come não consegue pensar, fazer conexões mentais, sexo, ou se locomover.  

Mas voltando a falar de livros que trazem bastante comida, e citando outra vez Jorge Amado, lembro de A morte e a morte de Quincas Berro d’água. A cachaça aparece na história como uma epifania que conduz a narrativa. Para lembrar, a segunda morte de Quincas acontece quando seus amigos “de copo” o retiram do caixão em que era velado pela família burguesa e o levam, escorado entre ombros, para um passeio pelos bares em que bebiam juntos, em Salvador. Depois o levam para ver o mar, e, num descuido de bêbados, lançam Quincas pelas águas.  

A comida pode moldar um personagem. Por meio do que um deles come você tem acesso ao seu subjetivo. Nos dois últimos romances do francês Michel Houellebecq, por exemplo, Submissão e Serotonina, a comida está presente o tempo todo. Os personagens são burgueses e uma das formas mais eficazes de o autor demonstrar isso é descrever os restaurantes grã-finos que eles visitaram. Já que entrei nesse tema da burguesia, no Brasil, burgueses e ricos, ou pessoas que se alimentam bem, são pouco retratadas na literatura atual. Como se essa gente não existisse na vida real e não tivesse importância no modo de vida das classes média e pobre. Disse mais acima e repito: intelectual brasileiro parece não gostar de comida/gastronomia em suas obras. Na esfera privada, sim! Adoram a boa mesa. (Vejam, nada contra). Um a quem tiro o chapéu é o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que sempre vem com a questão da alimentação indígena em seus ensaios.

Pegando carona no assunto indígena, não nos esqueçamos de um dos primeiros livros sobre o país, Duas viagens ao Brasil (1557), do alemão Hans Staden. A obra fala de cabo a rabo sobre alimentação. No caso, a antropofagia praticada pelos povos Tupinambás, que habitavam parte do litoral brasileiro. Staden descreve em detalhes os festins canibais desses povos. Ele mesmo quase vira iguaria nos banquetes Tupis. Para nossa sorte, isso não aconteceu, seu livro se tornou um best-seller, atravessou séculos, e chegou até nós, influenciando absolutamente o Movimento Antropofágico, do Oswald de Andrade, que influencia a todos nós, escritores, poetas, músicos nacionais, até os dias de hoje.

Eu mesmo já publiquei um livro sobre gastronomia. Paris-Brest é um misto de livro de receitas, diário de viagem, história e antropologia, que tem a estrutura de um romance de auto-ficção sobre os três anos e meio em que vivi na França trabalhando em cozinhas de restaurantes. O livro mostra a dureza do ofício ao lado de chefs casca grossa, as dificuldades de adaptação a uma nova cultura, exaltando o tempo todo a arte da gastronomia. Outro dia, percebi que ainda traz uma reflexão atualíssima sobre a imigração aos países europeus. O livro ganhou o World Cookbook Awards de Melhor Livro de Gastronomia Francesa em 2017. 

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Além de Paris-Brest, Alexandre Staut é autor de dois inéditos que trazem gastronomia como tema: Banquete com os índios e outras histórias da gastronomia brasileira e o romance A arte da glutonaria.