A PIOR PANDEMIA FOI A INADIMPLÊNCIA DAS LIVRARIAS

Luciana Villas-Boas

Há 26 anos ativo na indústria do livro, tendo trabalhado na Ediouro, Novo Conceito, Leya e Saraiva, o jornalista e professor de Literatura Pedro Almeida partiu para fundar a própria editora, a Faro, em 2013. Na Conversa com (A)Gente, Pedro baseia-se em sua vasta experiência para comentar a tragédia que a inadimplência das livrarias representou para o mercado editorial, os desafios que a Faro vem superando nesses tempos difíceis, a surpreendente conquista dos leitores durante a pandemia e o desserviço por elitismo dos intelectuais de sua geração para a literatura brasileira. Ele é professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Constando em seu currículo a publicação do livro de ficção mais vendido em 2019, A GAROTA DO LAGO, Pedro afirma: “A pior pandemia no mercado editorial é a inadimplência e o fechamento das livrarias.”

VB&M: A venda de livros por exemplar subiu 6% nos Estados Unidos durante a pandemia, mas com uma concentração de receita muito grande por parte da Penguin Random House, grupo cujo valor hoje é igual à soma das quatro editoras que a seguem em escala. Isso, segundo dados oferecidos por uma matéria do New York Times, no sábado 19/9, e tratando exclusivamente da operação norte-americana. Claro que os números absolutos no Brasil são toscos em comparação, mas tendo em mente as informações sobre os EUA, como você analisa dinâmica ou tendências do mercado brasileiro?

PA: O mercado americano é mais maduro, consolidado e concentrado. Um crescimento de 6% é altamente significativo. Para o Brasil eu esperaria um crescimento ainda maior e provavelmente com efeitos mais duradouros porque pode recolocar mais gente no mundo da leitura. Um fato que sempre me chamou a atenção é que depois da universidade grande parte das pessoas leitoras deixa de ler por prazer. Leem apenas livros técnicos. Esse momento de quarentena abriu espaço para a atividade perdida. Seja pelo tempo disponível, por esgotamento de outros tipos de entretenimento dentro de casa, ou por estarem saturadas pelo excesso de notícias sem notícia de verdade, com que os meios eletrônicos nos bombardeiam. Já conseguimos sentir esse empuxo, como um solavanco, acordando leitores adormecidos desde o mês de julho. O consumo de livros por um público mais adulto aumentou. Minha expectativa é de que quem voltou a ler não pare mais.

VB&M: Como você vem posicionando a Faro para disputar o leitor em tempos pós-pandêmicos?  

PA: Nossa operação sempre foi muito forte nas livrarias físicas, então uma parte considerável da oferta de livros se dava pela visitação das lojas, que permitia que mais pessoas conhecessem os lançamentos. Trata-se de experiência muito particular: um leitor ter a obra nas mãos, poder folhear as páginas, apreciar os detalhes. Perdemos isso de uma hora para outra. Assim, giramos o canhão para o marketing digital. Reforçamos nossa comunicação on line com os leitores cadastrados, que conhecem e se identificam com nosso trabalho, e multiplicamos nossas campanhas, direcionando sempre as vendas para as livrarias. O desafio foi criar meios para que os livros fossem descobertos sem os passeios pelas lojas… algo que as livrarias .com ainda não conseguem oferecer. Mas a pior pandemia no mercado é a inadimplência e o fechamento de livrarias, uma reação em cadeia que começou forte em 2018.

VB&M: Acredita na recuperação do leitor de livraria para a literatura brasileira? Diga-se: leitor de livraria em oposição ao estudante _  cuja leitura é definida pelo professor ou técnico do Ministério da Educação, não uma escolha pessoal e autônoma.  

PA: Toda a ficção brasileira ainda carece de incentivos, de inventividades para atrair os leitores. Há espaço e leitores, mas falta comunicação, oferta, investimentos. Um tanto do trabalho de um editor é ser aríete, tirar traves do caminho e, no caso da literatura brasileira, há muito a se fazer em todas as esferas: entre autores, editoras e livrarias. Há muitos equívocos em parte da produção brasileira, especialmente a mais literária. Ainda estamos presos na tal “literatura de proposta”. Um livro ruim pode receber bastante atenção porque sua história pretende falar sobre preconceito racial, por exemplo. Isso acontece bastante e é prejudicial para a literatura brasileira. Por quê? Porque um leitor vê a indicação, compra, detesta e acaba “tirando” todos os autores nacionais por aquele livro ruim, incensado por amizades. Uma obra literária pode ter qualquer tema, mas precisa ser ótima em forma e conteúdo. Os leitores brasileiros estão cansados de testar autores nacionais que só apresentam proposta e erram em forma antiquada e ritmo fraco. É preciso publicar mais obras de autores brasileiros que não estejam presos num passado recente, de que tudo o que tinha de mais relevante num livro era a luta contra uma opressão: ideologia, racismo, desigualdade social, gordofobia, etc. Desse mal também padece o nosso cinema. Vale repetir: todos esses temas podem estar contidos numa obra literária, desde que o maior mérito dela não seja o tema, mas a arte. Outro dia assisti a uma live sobre o mercado editorial e perguntaram a algumas pessoas o que a literatura significava para elas: muitas disseram a palavra “resistência”. Daí temos o problema. Se a resposta fosse estética literária, haveria pelo menos um aspecto artístico valorizado.

VB&M: Qual a sua proposta ao lançar um romance como O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS, de José Almeida Jr, por exemplo?  

PA: Decidi lançar o livro do José Almeida porque ele reúne tantos aspectos interessantes além da escrita que eu sabia que iria alcançar um público amplo. Trata-se de um crossover – uma ficção que conecta eventos reais, históricos e muita informação que está no imaginário das pessoas de diferentes gerações. Vi no original também a oportunidade de levar mais leitores jovens a uma obra que fala de um autor clássico. Muitos leitores de romances de entretenimento arriscaram a leitura e tiveram coragem de voltar a experimentar mais da literatura nacional depois dessa experiência. É preciso desmistificar o escritor brasileiro para os leitores, mas isso é trabalho complexo de toda a cadeia do livro, e uma parte está na falta de mais espaço de divulgação obras que fazem o caminho entre o literário e a ficção comercial.

VB&M: Como você concilia seu gosto literário pessoal com suas escolhas de publicação? 

PA: Nunca publico para mim. Gosto de editar e publicar qualquer gênero. Minha satisfação como editor é comunicar. E o livro se comunica quando encontra mais leitores. Isso não tem nada a ver com ganhar dinheiro, vender autoajuda, essas bobagens que são repetidas quando se fala de um livro que se torna bestseller: “Se vende bem é porque é ruim”. Nos acostumamos com a ladainha, que não vem de agora. Vinte anos atrás, num programa de entrevistas com diversos críticos literários e a elite intelectual, todos zombavam dos livros de Paulo Coelho. Eu e 105% dos jovens leitores também ríamos, repetíamos a crítica de que aquilo não era literatura, mas… fazíamos isso para pertencer a um grupo. O que percebi depois era que estávamos rindo de quem os lia, da massa de leitores daquele autor. Estávamos todos passando uma mensagem ruim para quem não lia textos mais literários. E, num país tão pouco leitor, foi um desserviço prestado pelos intelectuais da minha geração e das anteriores. Quero aproveitar para contar uma história que me marcou bastante. Creio que no final dos anos de 1990, uma revista enviou um original de Marcel Proust, inédito na época, de forma anônima para as grandes editoras. E todos os grandes editores a rejeitaram. Perguntaram a você, Luciana, qual o motivo (talvez quisessem que se sentisse envergonhada). E você disse algo como: “O autor é importante por pertencer aquela época. Um autor contemporâneo escrevendo assim não seria publicado.” Isso me acendeu toda a concepção sobre os movimentos que os livros precisam fazer se quiserem se comunicar com o seu próprio tempo.

LVB: Lembro bem dessa pegadinha da Folha de S. Paulo. Na verdade, não caí nela porque não cheguei a abrir e avaliar o original enviado, não respondi à proposta. Poderia ter caído, e o repórter quis pegar meu depoimento, imagino que estivesse faltando gente para falar na matéria, alguns dos editores que haviam recusado o livro preferiram não comentar. Defendi os colegas, talvez alguns deles tivessem até identificado a dicção do autor – ou não, não se trata de conhecimento obrigatório para qualificar um editor –, talvez tivessem achado que aquilo era um pastiche fútil de um estilo do século anterior. Bem tola, a pegadinha.

VB&M: Outro livro representado pela VB&M que você escolheu a dedo e também parece estar indo muito bem é HACKEANDO DARWIN, de Jamie Metzl; pelo menos a recepção da mídia especializada tem sido excelente.  

PA: Quando bati os olhos nele vi que o tema era quente. Li em um dia e já saí para fazer a oferta mais alta que eu poderia propor para não perdê-lo para outra editora. Aprendi logo no início da carreira que livro e autor andam juntos. Com meus autores nacionais, eles acompanham todo o processo. Com os internacionais nem sempre temos o contato direto, mas Jamie Metzl se revelou um parceiro incrível. Além de todo o trabalho importante dele, que oferece anos de pesquisa nesse livro, Metzl se envolve muito com a promoção. Isso é primordial. A obra tem de ser vista como um produto pelo mercado, mas o autor tem de sentir orgulho em promovê-la. Eu olho para a não ficção com cuidado porque é fácil escrever um livro com excelente conteúdo, mas frio, sem alma. Um grande autor insere paixão mesmo quando o seu livro não é um romance. E Metzl faz isso. Tanto que não para de receber pedidos de entrevistas.

VB&M: Você inclina-se mais para a ficção ou a nâo-ficção? 

PA: Eu gosto de ambos. Nesses 26 anos de atividades, eu editei todos os tipos de livros, exceto os escolares. Em cada casa tive uma experiência. Comecei publicando livros que eram tratados como autoajuda e negócios. Depois fui para a não-ficção. Ambos sempre me pareceram nichos seguros, pois livros assim encontram um público, mesmo que seja pequeno: você vende um como fazer, como aprender ou como entender tal assunto e quem tiver interesse vai buscar. Mas a ficção era um desafio: o risco de um fracasso é maior. Há mais de 15 livros de ficção com o título “O Casamento”. Sem uma indicação direta ou muita confiança de que haverá leitores para ele, o risco é enorme. Comprei Nicholas Sparks e depois se tornou um sucesso. Mas a ficção tem um caráter impermanente: os temas de hoje não serão os do próximo ano. Quando abri minha editora decidi encontrar pelo menos um autor de ficção que não fosse incensado previamente, portanto caro, e que pudesse alcançar tantos leitores. Tive certeza quando li A Garota do Lago. Mas o que pode fazer uma nova editora com um livro ótimo nas mãos senão contar também com sortes? Dessa vez deu certo. Foi o livro de ficção mais vendido em 2019.

VB&M: Qual é o grande romance de sua vida? 

PA: “Perto do Coração Selvagem”. Eu não sei o que acontece mas gosto de lê-lo em voz alta, apenas para mim mesmo e as lágrimas brotam. O livro tem uma capacidade de me emocionar fortemente, não por tristeza, mas pela beleza das imagens. Amo tudo de Clarice, desde a falsa simplicidade em “A Hora da Estrela” às revelações de “A Paixão Segundo G.H”.

VB&M: E uma leitura de não-ficção memorável? 

PA: Preciso extrapolar aqui porque são dois que se completam na minha cabeça. “O Ano do Pensamento Mágico”, livro tão pequeno mas carregado de intensidade. Joan Didion perde, no mesmo ano, de forma trágica, o marido e a filha única e tem de enfrentar essas memórias, revisitar suas histórias para tentar fazer o percurso de volta, como se pudesse mudar o curso dos acontecimentos. Ela sabe que é inútil. Sabe que está se martirizando e colocando-se numa condição de autocomiseração. Ela se envergonha e aceita ser frágil. É lindo ver alguém que decidiu ser tão generoso com os leitores ao expor sua humanidade. O outro é “Um quarto para ela”, de Hellen Garner – escritora australiana que esteve cotada para o Man Booker Prize -, e uma das principais vozes que defendem que toda ficção é baseada na vida real. Este livro é uma ficção criada sobre a experiência real de hospedar em sua casa, em Melbourne, uma amiga que estava numa fase terminal de câncer. O que me impressiona demais nele são os diálogos, absolutamente profundos, e os confrontos entre as duas personalidades – uma delas no limiar da morte -, com uma carga que só a vida real poderia oferecer. É o tipo de conversa ao mesmo tempo franca e sofisticada que a gente consegue ter com duas ou três pessoas em toda a vida. Isso num livro não tem preço. O que me atrai numa obra é sempre a generosidade de um autor que se preocupa com algo além das palavras.