A POESIA POLÍTICA DE LÚCIO AUTRAN

O Brasil se desconhece, mal parodiando Aldir Blanc, e por consequência menos ainda está a par da poderosa produção poética que existe país afora. Encerramos a semana publicando na coluna Narrativas _ de textos inéditos _ uma seleção de três poemas de excepcional qualidade de Lúcio Autran, retirados de uma série que o poeta vem escrevendo ao longo destes tempos de confinamento, A DEMÊNCIA DO TEMPO – POESIA PARA NÃO ENLOUQUECER OU MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA: UM DIÁRIO POÉTICO DA QUARENTENA SOB O SIGNO DE UM PODER DEMENTE. A série, de título autoexplicativo, é uma exceção na obra de Lúcio, grande poeta e escritor de uma fecunda linhagem literária, que normalmente não se rege pela circunstâncias. Na poesia selecionada _ TEMPO, RÉQUIEM e O FILHO DE NEFELE _, tem-se uma pequena e belíssima amostra do olhar lírico do autor sobre os tempos trágicos que vivemos, pandêmica e politicamente.

TEMPO

Com dias tão iguais, para que demarcar o tempo?

Quero quebrar os relógios da casa, tivesse um,

porém, mesmo quebrados, restariam os digitais.

Um Tempo infernal grita, nos obriga sua presença.

Se História corre igual para tantos iguais a mim

em dias sem Tempo, por que o vício das horas?

Sem Tempo? Se temos todo tempo do mundo!

Apenas tempo demais, derramado desperdício.

Marcar as semanas, os segundos e os meses

(os meses não, maldigo) contar todas as horas?

O presente é inútil, o futuro melhor nem pensar,

só o passado nos desenha de tempo e memória.

A demência do tempo, triste sintoma da doença.

***

RÉQUIEM

Para os que não puderam enterrar seus mortos

Morrer sempre foi o mais silencioso dos gestos

das gentes: o compartilhar a solidão e o silêncio,

cujo único eco era a certeza improvável do fim,

assim, lentamente despetalar um tempo de dor

nas cores de uma flor tão inútil quanto urgente.

Hoje ecoam entre nós ainda maiores silêncios,

ecos de um Coro surdo, um Réquiem composto

para voz alguma, sem Agnus Dei e sem adeus,

ou mesmo Deus, choro sem o consolo do Coro,

cuja a soma das vozes nos iludia humanidades.

Ficam uns braços pendidos na noite, e as mãos

que procuramos no escuro as sentimos buscar

nossos flancos, entretanto, elas tocam apenas

os flancos da nossa dor. Sem a certeza do corpo,

quem pranteará nossos mortos? Os seus olhos

nos buscam, sucede tocar-nos. Não os fechamos,

vagam e velam por nós, que os sabemos lacrados.

Sem o beijo vazio na pele fria, só nos resta o difícil

odor de flores imaginárias que despetalamos no ar,

e atiramos na noite do silêncio do alto dos edifícios.

Enquanto isso, esse rei demente, que só por existir

nos violenta, incita Incitatus, gargalha galopa várzeas

de flores não colhidas para dores intocadas. Calígula,

canibal, cavalga ódio enquanto come carne humana

e cospe o sangue na taça profana da boca dos filhos.

***

Nefele (Nuvem), na mitologia grega, foi um “eídolon” (imagem) de Hera, moldada de nuvens por Zeus para enganar Ixíon, que a perseguia. Dessa estranha união nasceram os centauros, seres monstruosos, bestiais e sanguinários, que se alimentavam de carne crua.

De tempos em tempos nasce um descendente de Nefele e Ixíon.

 

Dois mil mortos,

não sou coveiro.

 

Cinco mil mortos,

e daí?

 

Cem mil mortos

E agora?

 

o que dirá, mitômano, que não poderia ser coveiro,

que eles jamais cospem no rosto da dor. Elo perdido

um proto-humano. Morte tampouco posso chamá-lo

dela não lhe cabe nem nome nem ofício, ela triunfa

no Tempo, ao passo que a sua memória sucumbirá

no opaco de um passado a ser esquecido. Coveiro

não é, morte tampouco, quem é você, traste, afinal?

Um herdeiro de Nefele, nefasto filho de uma nuvem,

um centauro bêbado, um bastardo bestial, no qual

a Morte cavalga triunfante. Vai, tritura sob as patas

os corpos sem velórios, cospe nos olhos dos órfãos

a seiva do seu veneno, deixa no seu rastro o adágio

dissonante do horror que a morte rege. Ah, carrasco,

funde com as lágrimas os escarros que diariamente

nos atira ao rosto, faz uma mistura lilás como a flor

da dor não pranteada e com a borra do nosso asco,

fermenta o mosto desse vinagre. Brinda com a morte

sua herança, bêbado de ódio delira com as miragens

dos esgotos da História, dança macabra na memória

a imagem do bronze profano do Cão que você adora,

Belzebu fardado que com tesão você cultiva e lustra

cujo nome é uma rima rica tão infamante que a ânsia

cala, ajoelhe-se a seus pés, beije-os como um lúgubre

Brilhante, o sobrenome das sombras das masmorras.

Masturbe-se com o balé do horror, cicatriz que o tempo

não sutura, pois agora que tem os seus próprios mortos.

vai e goza, que no cio da sua boca, no esgar do sorriso

de lagarto corre um fino fio dos rios de sangue nascidos

 

da cultura

da dor

 

da Morte

e da tortura.