A POTENTE POESIA DE LIS LEMOS HORTA

NARRATIVAS & DEPOIMENTOS volta hoje à poesia – já era tempo. Dois potentes poemas, lindíssimos, de Lis Lemos Horta, tradutora e jornalista do New York Times, revelada como poeta pela coletânea de nova poesia brasileira, com versos-prosa de vários autores, “Não mais os falsos infinitos”, volume organizado por Nuno Rau e publicado pela Patuá em 2021. Em “Manhã carioca”, “A William Carlos Williams”, “Cetro”, “O Retrato” e “Ao Boi”, Lis, que participa do coletivo Cosmos Carioca, oferece a fina delicadeza de sua linguagem e visão lírica das coisas.

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MANHÃ CARIOCA

 

peões do tempo, coletivos trafegam

ladeando árvores em copas acesas despedaçando o sol da manhã

             árvores em copas acesas,

piões do tempo             trafegado

                em coletivos.

baralhos de pássaros                                           resolvem

 as horas pequenas

                    e sigo os braços tortos das ruas

                                               tortuosos das

            árvores,

                                              tartamudos os meus            

                          que mal podem

                            (o que podem eles)

                       com meu particular              

                                                                          inverno

                                 que levo delicado e mudo no colo                

 

 

MANHÃ CARIOCA

 

Peões do tempo, coletivos trafegam ladeando árvores em copas acesas, despedaçando o sol da manhã. Ou árvores em copas acesas, piões do tempo trafegado em coletivos. Ou baralhos de pássaros, revolvem as horas pequenas, e sigo os braços tortos das ruas, ou tortuosos das árvores, tartamudos os meus que mal podem (o que podem eles) com o meu particular inverno, que levo delicado e mudo no colo.

 

A WILLIAM CARLOS WILLIAMS

 

caro doutor de nova jersey, do nome que começa igual a que termina, que vem antes e logo retorna a si em dobra de existência, tripla e una presença. Me diga, é o Carlos, amigo gauche, que ousa acoplar coisas umas às outras como se debruçado a uma vidraça divina, gerasse um sexo de objetos que germinam? É ele que atravessa palavras umas por outras à metade, transidas de dordelírios e novos dias dentro dos dias descortinam? E seriam os enterprising Williams, que lhe cedem tudo nas duas pontas da luz do dia, após bater de porta em porta com maleta de instrumentos de perscrutação e receituário, a tratar a fera no adulto depois da garganta das criancinhas? me conceda sua melhor medicina, me tome o pulso e diga: quem em mim faz, e quem finge? me vitamine para dobrar o susto das manhãs novas que trago em chamas, e sucedem à inquebrantável noite da rotina.

 

AO BOI

à Cris Oliveira

 

ao boi ao boi ao boi

bamboleia rebrama uma serra

urros rabos chifres, ao boi

o homem

 

suas fêmeas laçadas 

em casa

entre elas e a fome

só ele

 

e as terras 

entre elas e a manhã

sem sombra ainda

 

só a menina

testemunha

ao boi

ele dobra a montanha

na unha

o sangue

a carne

 

e quando depois 

à fome 

sem terras sem homem

ela soube

sozinha

 

à montanha,

à montanha

à montanha

serei faca

serei unha

serei fria

dobrarei

as manhãs

 

CETRO

 

Soletro o sol

criança, deposito o olho

do cíclope

 

sem cíclope

 

no centro do papel

     ele roda em mim

como se alças de planetas

me dessem um nome novo a cada dia

na expectativa

de sua aparição. Grata, porém já sei que

me

 

soltei

 

de sua magnitude

 

pelas noites

em revolução

 

O RETRATO

 

O mesmo sol já não era tão astro

naquele horizonte o sal refulgia

a linha do mar se quebrava

no embaralhado de edifícios

 

muitos nascidos décadas depois dele

como ela, décadas depois dele

movendo aquele quadril

cotovelos no guardacorpo

ou parapeito

que ele enquadrava

na câmera

no terraço varrido

pequenas luzes encapsuladas no muro

abrindo os olhos como gatos

mortos de fome de penumbra

ele tinha um comando no bolso

que ativava o toldo retrátil

 

ela sorriu

olho no olho

e ele fotografou

a mulher que o escurecera ao partir