A REALIDADE INCOMPLETA DA NOVA PÁTRIA

Gabriel Waldman, escritor judeu nascido na Hungria em 1938, perdeu quase toda a família durante a II Guerra Mundial. Sobreviveram ele e sua mãe, que, depois de vivenciarem o domínio comunista na Hungria, fugiram para o Brasil, onde Waldman perdeu o idioma húngaro, ganhou o português e naturalizou-se brasileiro. Nesta Conversa Com (A) Gente, ele fala sobre sua experiência, os desafios de se tornar escritor num idioma que não é o seu, as leituras e os autores que o formaram pessoalmente e literariamente e sobre seu novo romance, ainda inédito e sem editora, provisoriamente intitulado A ÚLTIMA FATIA DE LIBERDADE, uma narrativa impressionante, em forma e conteúdo, sobre o exílio e a perda da língua materna. Para Gabriel, que escreve desde os 11 anos de idade mas realizou o sonho de se tornar escritor apenas na maturidade, esse romance traz à luz o olhar da criança que viveu tantas atrocidades compreendidas somente depois de adulto, com o devido distanciamento dos fatos. E reflete: “Um refugiado é um eterno apátrida, vive na realidade incompleta da nova terra com saudades desfocadas e eternas da pátria anterior”.

VB&M: Seu novo romance, A ÚLTIMA FATIA DE LIBERDADE (título provisório), narra a história de um sobrevivente da II Guerra Mundial que se refugia do comunismo húngaro no Brasil. Parece a história da sua vida. Você sentiu a necessidade de contar essa história? É um ajuste de contas?

GW: Acho que a tarefa do escritor é a de psicanálise de si mesmo. Ele precisa mergulhar em seu íntimo para trazer à tona culpas, ressentimentos, mágoas acumuladas ao longo de uma vida e com isso se compreender melhor. Quando terminei A ÚLTIMA FATIA DE LIBERDADE, eu era um ser humano diferente do que quando comecei. Episódios isolados da minha vida de repente criaram uma unidade sequencial e uma profundidade que eu jamais imaginara. Isso talvez se dê ainda mais com meu próximo romance, provisoriamente intitulado INGRID, em que narro episódios biográficos que jamais relatei a ninguém, nem a mim mesmo. Me aliviou contá-los.

VB&M: A biografia do protagonista Márci tem muito da sua, mas também há muitas diferenças entre uma trajetória e outra. Como se deu o processo de construção desse protagonista?

GW: Resgatei muita coisa dentro de mim mesmo. Sensações (fome), impressões fugazes de criança, o clima de medo, de desespero. Além disso, tiveram papel fundamental na construção do personagem os episódios de horror inesquecíveis vividos durante a guerra e depois no comunismo, relatos de adultos, leituras e reflexões. E o predomínio de uma alma de criança ferida e maltratada e ocasionalmente acalantada por pessoas generosas. Até agora, a grande tragédia do século XX fora relatada pelos que dela participaram diretamente. Chegou a vez das crianças de então contarem a sua versão, reflexivamente, com o devido distanciamento.

VB&M: A perda da língua materna é um dos grandes subtemas de um romance sobre o exílio. Foi dolorosa a perda do húngaro? Você ainda fala e lê regularmente nesse idioma?

GW: Até 11 anos de idade eu só falava húngaro. Com a fuga para a Áustria, de língua alemã, durante um ano não me comunicava com ninguém a não ser com parentes em húngaro. Não ia à escola nem tinha amigos. Por falta do que fazer, comecei a escrever. Dois romances, aos 11 e 12 anos. Eu ainda os tenho, mas não recomendo sua leitura a ninguém (mesmo que vocês lessem húngaro). Finalmente, aprendi alemão, frequentei a escola local, e minha mãe optou por vir ao Brasil como trampolim para os Estados Unidos. Chegando aqui, frequentei um colégio britânico e rapidamente aprendi o inglês, mas em casa continuei a falar húngaro, de modo que a língua local ficou relegada a breves conversas com o quitandeiro e a cozinheira. Quando decidimos ficar no Brasil, passei a estudar em colégio local e fiz amizade com adolescentes brasileiros. Tarde demais. Dizem que a certa altura da vida a laringe se consolida e o aprendizado da língua torna-se muito mais difícil. O inglês, impecável e sem sotaque, aprendi em dois anos. Mas o português, até hoje falo com sotaque. Quanto à literatura húngara, teria muita dificuldade de lê-la. Não o faço há muitos anos. Além disso, a língua é um ente vivo, muda constantemente.

VB&M: Como se deu a conquista do português e realizar o feito de se tornar escritor numa língua que não é a materna?

GW: Um trabalho excruciante e com muitas frustrações. Em 1960, escrevi um conto em português que ganhou o primeiro lugar do Concurso Literário Brasileiro e chegou ao conhecimento do lendário Décio de Almeida Prado, fundador do Suplemento Literário do jornal “O Estado de S Paulo”. Ele me convidou à sua casa e disse: “O conto é maravilhoso. Pena que está escrito em húngaro. Mas vamos dar um jeito”. Passamos um dia inteiro “traduzindo” o meu pseudo português para o português literário. Décio o publicou em seu suplemento, mas não se pode tornar-se escritor contando sempre com a ajuda de terceiros. Desisti, virei administrador de empresas e me adaptei (com a devida relutância) à pacata vida burguesa. Por volta de 1990, soube de um concurso promovido pelo Supermercado Pão de Açúcar, “ PdA na minha vida”. Escrevi um conto e ganhei o concurso. De repente descobri que, afinal, sabia escrever em português. Desde então, escrevi uma série de contos (inéditos) e dois romances, JULIA e A ESTRATÉGIA DO ESCORPIÃO. Ajudaram o fato de eu ser um leitor voraz de literatura e minha maneira particular de ler livros: o leitor comum em geral se deixa levar pela história, pelo enredo e _ muitas vezes apenas subconscientemente _ pelo estilo do livro. Quando leio, presto especial atenção à formação de frases, às palavras usadas e, enfim, ao estilo. Eu analiso o livro em seus detalhes.

VB&M: Você fez leituras importantes para a sua formação como cidadão e escritor brasileiro?

GW: Como formação básica, li os clássicos: Machado de Assis, Luis Fernando Veríssimo, Jorge Amado. Lembro-me com o dicionário na mão procurando entendê-los. Foi meu primeiro encontro com a dissonância entre a língua falada e a escrita. Desespero: nunca escreverei assim. Também li os modernistas e leio os contemporâneos, bastante Milton Hatoum, Moacyr Scliar, apaixonei-me pelo estilo pitoresco com imagética invejável de Adriana Lisboa. Há, ainda, os autores internacionais. Menção honrosa para Thomas Mann, Hermann Hesse e ao teatro excepcional de Dürrenmatt. E peço desculpas às dezenas e mais dezenas de escritores que deixei de mencionar.

VB&M: Márci, assim como você, viveu a dominação nazista e depois a ocupação comunista na Hungria, um longo período de perda progressiva da liberdade. Você diz que a liberdade foi fatiada como um pernil até desaparecer. Você receia que o Brasil possa passar por um processo semelhante?

GW: Espero que não. Mas a situação mundial não me dá muita esperança. Minha terra natal, dominada por um populismo nacionalista exacerbado, aponta os perigos pela frente.

VB&M: Por que a escolha do Brasil como país de exílio? Quanto tempo foi necessário até você se sentir adaptado a uma nova terra?

GW: O Brasil foi o único país que nos acolheu sem arrimo de família. Minha mãe era viúva (meu pai morreu na guerra) e arrimo na época só podia ser homem. Sou eternamente grato ao Brasil por nos acolher. Quanto à adaptação, até hoje não sei se sou totalmente adaptado ao Brasil. Um refugiado é um eterno apátrida, vive na realidade incompleta da nova terra com saudades desfocadas e eternas da pátria anterior.

VB&M: Da vasta literatura sobre exílio, o que o ajudou a pensar esse tema? E sobre a perda da língua materna, você leu grandes livros a respeito?

GW: Meu ídolo como escritor é Joseph Conrad, polonês que aprendeu o inglês aos 17, 18 anos de idade, e se tornou um fenômeno literário nesse idioma. Seus livros são clássicos inclusive pelo refinamento da linguagem utilizada. Ele é um modelo para seguir. Há inúmeros húngaros também, alguns bem sucedidos, como Arthur Koestler e Ferenc Molnár, outros trágicos, como Sándor Márai, autor de “As brasas” (Companhia das Letras), sucesso editorial no Brasil, que cometeu suicídio no exílio por não dominar outro idioma que não o húngaro. Meu próprio tio, promessa da literatura húngara, teve que fugir como eu, emigrou para a Austrália e jamais conseguiu retomar a carreira literária. (Prêmio de consolação: ficou milionário). Perder a língua para um escritor é como perder as pernas para um fundista. Primo da minha mãe, Stefan Zweig, o grande escritor austríaco, fugiu para o Brasil e aqui se matou provavelmente, em parte, pelo problema da língua. Eu lutei uma vida inteira (e ainda luto) para merecer a qualificação de escritor.