Anna Luiza Cardoso e Luciana Villas-Boas
Livre pensador, escritor e jornalista, doutor em Sociologia pela Universidade de Paris VII – Dennis Diderot, diretor de curta-metragens e co-autor do roteiro da série audiovisual “Milton e o Clube da Esquina”, o professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, mestre Marcelo Dantas dedicou uma boa parte das quarentenas de 2020 a formatar a aquisição dos direitos de adaptação audiovisual da biografia ROGÉRIA, de Márcio Paschoal, e a série de TV que ele projeta dirigir inspirada na vida do “travesti da família brasileira”. Pioneiro do ativismo gay nas priscas eras do Grupo Somos, ainda sob o regime militar, Marcelo acredita ser fundamental resgatar as lições deixadas por uma personagem realmente transgressora no mapa da cultura brasileira, “livre de todas as ditaduras”, capaz de lutar ferozmente pelos direitos homossexuais mas sem sucumbir ao autoritarismo de qualquer militância. Ele promete uma série que “honre Rogéria e também o livro de Márcio Paschoal, uma obra contundente, culturalmente impactante, transgressora, controversa, elegante, sensual e emocionante como o foi ela mesma”.
VB&M: Você comprou os direitos de adaptação audiovisual da biografia ROGÉRIA, assinada por Márcio Paschoal (Estação Brasil/Sextante). Por que Rogéria?
MD: No momento em que o livro de Márcio foi lançado e o comprei numa livraria em Salvador, tive imediatamente a ideia de que a história de Rogéria precisava ser contada em filme ou série: antes mesmo de ler o livro, pois conhecia muito bem a artista e sua trajetória, talento, importância para a cultura brasileira e para a luta pelos direitos dos homossexuais ou, como dizemos hoje, da população LGBTQI+. Como fui um jovem militante dessa causa, tendo participado do Grupo Somos, em São Paulo, lá pelos idos de 1979/80, aos meus 19 anos, e como jornalista cultural, acompanhei toda a trajetória de Rogéria nos últimos 40 anos. Mas foi realmente quando li o livro que decidi que tinha que lutar por essa ideia. Rogéria teve, ainda em vida, uma biografia à sua altura: elegante, transgressora, bem escrita, ousada e respeitável, como ela sempre foi. Márcio Paschoal mostrou sensibilidade como escritor, escapando de todas as armadilhas de escândalo ou vulgaridade que os ignorantes poderiam atribuir a uma travesti como Rogéria, e mergulhou com afeto, carinho e respeito na história daquela vida absolutamente única.
VB&M: Do desejo de fazer um projeto audiovisual à compra dos direitos da biografia de Rogéria, levou muito tempo?
MD: Para a urgência do meu desejo, levou tempo demais. Depois de ler o livro, comprei logo outro exemplar para dar de presente a Fabiano Gullane, um dos maiores produtores brasileiros, que me convidou para escrever o roteiro da série “Milton e o Clube da Esquina”, o seu projeto do coração, com ele próprio e com o diretor Vitor Mafra. Acontece que a sua produtora realiza dezenas de projetos por ano, e havia vários projetos na fila. Pouco tempo depois, Rogéria morreu e voltei a insistir no projeto. Foi então que ele me incentivou a que eu mesmo comprasse os direitos. Entrei em contato com Márcio Paschoal, que me apresentou a Luciana Villas-Boas e fechamos o acordo. Desde então, a luta é para realizar um projeto que honre Rogéria e também o livro; produzir uma obra que seja contundente, culturalmente impactante, transgressora, controversa, elegante, sensual e emocionante como o foi ela mesma.
VB&M: Quais as lições de Rogéria que ficaram esquecidas e precisam ser recuperadas?
MD: O impacto de Rogéria nas artes, na cultura, no comportamento, fazem parte do alicerce que permitiu a construção, no Brasil, de uma luta por direitos capaz de chegar à conquista dos direitos para homossexuais e mais amplamente para a população LGBTQI+, consagrados pelo Supremo Tribunal Federal: da adoção de filhos a casamento entre pessoas do mesmo sexo e, mais recentemente, a inclusão da homofobia e transfobia como crimes equivalentes ao racismo. Mas acho que a lição de Rogéria que ficou esquecida e precisaria ser recuperada para o Brasil de hoje, um país dividido pelo crescimento do fascismo e do que eu chamo de ignorância orgulhosa de si, é sua inegociável noção da importância da liberdade. A liberdade de ser, de pensar e de agir conforme as próprias convicções e, para isso, enfrentar o mundo e seus consensos conjunturais. Para Rogéria, a liberdade de ser ela mesma estava acima de qualquer tentação pelo aplauso fácil. Ícone gay, Rogéria sempre apoiou a luta pelos direitos homossexuais, mas nunca aceitou se moldar às regras, valores ou dogmas da militância. Ela não queria representar coletividades, porque sua energia estava dirigida à representação de si mesma, à construção de uma vida para a qual enfrentou ditaduras e também democracias politicamente corretas. Ela sempre se recusou a entrar na caixinha. Qualquer caixinha, mesmo a do politicamente correto ou do movimento LGBTQI+.
VB&M: Sua trajetória é marcada pela luta pela liberdade de expressão, seja em sua atuação acadêmica, seja como jornalista ou em sua produção audiovisual. Em todas essas áreas, quais os maiores desafios enfrentados nessa luta?
MD: O jornalismo me realizou por muito tempo, desde que eu era um jovem de 17 anos que entrou para o movimento estudantil na Universidade Federal da Bahia e começou a trabalhar em jornal quando ainda havia censura à imprensa no final dos anos 1970. Naquela época, a liberdade de expressão, uma das bandeiras centrais da luta contra a ditadura militar, era a minha luta e também a minha vida. Foi um período em que, pouco tempo depois, o então presidente Geisel iniciou a chamada abertura política, acabando com a censura à imprensa e revogando o AI-5 e toda a legislação de exceção criada pela ditadura. Então, a minha carreira floresceu com o fim da censura, e segui a profissão até o momento de modernização do jornalismo, quando as matérias tiveram de diminuir de tamanho a fim de tornar os jornais mais agradáveis visualmente. Quando um dia me pediram para fazer a crítica de um filme em seis linhas, decidi que precisava de muito mais que isso. Fui fazer mestrado, escrevendo uma dissertação de mais de 100 páginas sobre o Olodum, e o doutorado, na França, com uma tese de mais de 200 páginas, tendo como tema o fenômeno cultural, político e de afirmação racial, além de mercadológico, dos blocos afro, com a conquista do mercado musical brasileiro pelo samba-reggae, criado pelo maestro Neguinho do Samba, no Olodum, que revelou ao Brasil Margareth Menezes e explodiu em sucesso com Daniela Mercury, no início dos anos 1990. Eu brincava dizendo que não era um autor de contos ou poesia, mas um romancista. Na verdade, eu estava trazendo para o mundo acadêmico esse fenômeno impactante e transformador, através de um olhar histórico, social, antropológico, político e mercadológico. Foi aí que a vida acadêmica definitivamente me conquistou, e eu prestei concurso para professor/pesquisador.
VB&M: A vida acadêmica ainda dá prazer? Qual é o maior aprendizado que você deve a seus alunos? Qual o maior desafio para o professor em sala de aula hoje em dia?
MD: A vida acadêmica é um bálsamo. Foi na academia que eu realmente aprofundei o meu crescimento intelectual. Já perto de me aposentar como professor, tive oportunidade, nos últimos seis, quase sete anos, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, de participar da criação de um novo centro, o CECULT – Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas – e também de um novo curso chamado Política e Gestão Cultural, que me conduziram de volta à minha eterna paixão, o cinema, mas também à música, à literatura, às expressões artísticas, à cultura popular, à Economia da Cultura. Além disso tudo, me sinto cumprindo uma missão histórica, dando aula numa universidade que tem 83% de negros, de classe C, com a média de renda familiar mais baixa de todas as universidades brasileiras, onde os alunos entram com déficit de conhecimento e saem direto para o mestrado. Há três, quatro anos, UFRB foi a primeira colocada no ranking brasileiro de alunos recém graduados que entram direto em mestrados. Isso me dá um orgulho muito grande e o sentimento de que, como brasileiro de classe média baixa que fui, como aluno que sempre estudou em escolas e universidades públicas, estou, nos últimos anos, mais do que nunca, como cidadão, retribuindo as oportunidades que eu tive. Fico emocionado com cada aluno que supera dificuldades na formação anterior com tamanha inteligência, foco, tenacidade, esforço, olhar aguçado para o mundo e, principalmente, sede de conhecimento, um conjunto de qualidades que gosto de chamar de a luxúria de aprender. Também como alguém que sempre lutou pelos direitos dos homossexuais, me sinto completamente integrado na UFRB, que foi uma das primeiras universidades do Brasil a regulamentar a permissão aos alunos do uso do nome social, incluindo transexuais, travestis e qualquer diversidade de gênero possível, sem exigir nenhuma decisão judicial autorizativa, antes mesmo que a legislação brasileira tivesse consagrado esse direito, através do STF. Isso tem a ver com Rogéria e o meu empenho em fazer da sua história uma caixa de ressonância para essa luta, as conquistas e garantias de direitos, mas principalmente para mostrar o valor da nossa humanidade.
VB&M: Você atua na indústria audiovisual como crítico, roteirista ou diretor há muitos anos. Como define o momento atual e quais os caminhos para a superação das dificuldades impostas pelo governo Bolsonaro à produção cultural?
MD: Acho uma estupidez econômica, ainda que entenda que a motivação é política, a tentativa de calar vozes incômodas. A ditadura censurava o nosso cinema, mas contraditoriamente criou a Embrafilme, responsável por grande estruturação e profissionalização da indústria cinematográfica. Para decepção de tantos, como eu, que achavam que a democracia representava a conquista de um objetivo histórico, um fim em si mesmo, caímos do cavalo logo no nosso primeiro governo civil eleito pelo voto direto. Collor fechou a Embrafilme, e o Brasil, que era um dos maiores produtores de cinema do mundo, desceu ao ponto de realizar um único filme em determinado ano, o “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati. Foi uma lição amarga, mas valiosa: percebemos que a democracia é um meio e não um fim. Temos que lutar por ela e por seu aperfeiçoamento todos os dias da nossa vida. Foram quase duas décadas para conseguirmos reestruturar o audiovisual brasileiro, com leis e incentivos os mais modernos, abrangentes e bem-sucedidos, só comparados aos da França, país referência para o mundo em proteção e incentivo ao audiovisual nacional. Tudo isso foi interrompido de forma agressiva e traumática, e estamos correndo o risco de voltar à estaca zero novamente. Mas existem brechas e possibilidades aqui e ali, para mantermos vivo o setor. Acredito que o projeto da série ROGÉRIA representa um daqueles casos em que o Brasil precisa, o mundo precisa que essa história seja contada: ela é única e sua vida, espetacular, reunindo talento artístico singular, carisma irresistível e personalidade apaixonante, capaz de transgredir todas as regras, enfrentar todos os preconceitos e se tornar, como ela mesma dizia, o “travesti da família brasileira”. Um feito que tem tudo para conquistar as plateias do Brasil e do mundo.