A SOMA DOS TESOUROS DA TERRA

Narrativas & Depoimentos traz “Palimpsesto”, conto inédito de Wagner Barreira, autor de DEMERARA (Instante). Em uma emulação borgeana, o conto narra a descoberta feita por arqueólogos de manuscritos, cartas e pergaminhos antigos ocultos atrás de uma parede falsa no campanário de Dunquerque, um dos poucos monumentos a escapar dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Entre os documentos mais recentes, do século XIX, uma carta do teólogo Hugo Vernier endereçada ao poeta Stéphane Mallarmé. O conteúdo? A chave para viajar no tempo.

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“Palimpsesto”

Por Wagner Barreira

Leonor Acevedo, com quem costumo passar a eternidade em discussões filológicas e semiológicas entre xícaras de earl grey, enviou-me dias atrás longo artigo da Recherche, a revista acadêmica da Fundação Perec, de Calais. A história trata dos avanços e contramarchas de uma pesquisa iniciada no verão de 1978 que se espalhou por incontáveis mundos do saber. Naquela ocasião, arqueólogos da Universidade de Oxford trabalhando em Dunquerque, em busca de artefatos de soldados britânicos abandonados durante a ofensiva nazista de 1939, encontraram uma parede falsa na base oeste do campanário da cidade graças a imagens em raio-X. O monumento do século XV foi dos poucos a escapar dos bombardeios da Luftwaffe e da artilharia dos Panzer na Segunda Guerra, para não citar o fogo aliado.

Atrás da parede falsa havia uma quantidade considerável de manuscritos, mapas e palimpsestos. A maioria do material eram papéis do século XIX, mas também havia pergaminhos em latim e langue d’oïl, a língua que se falava no que hoje é o norte da França, escritos na Baixa Idade Média. Os arqueólogos, então, convidaram linguistas da Sorbonne para estudar os pergaminhos. Entre o material mais recente, a guarda do expressivo maço de cento e quarenta cinco cartas e o diário do teólogo Hugo Vernier foi disputada por cinco universidades europeias. Uma das missivas de Vernier era endereçada ao poeta Stéphane Mallarmé. Em prosa maravilhada, dava conta da descoberta de pergaminhos medievais atribuídos ao monge Bettancourt de La Charroux, prior do monastério de Champmol, na Borgonha. “Antes que continue a leitura é imperativo que se comprometa com o sigilo”, pede o remetente ao poeta na primeira linha da carta. “Acredito que descobri algo mais valioso que a soma dos tesouros da Terra, a chave que nos permite viajar pelo tempo”. Em seguida, passa a descrever o conteúdo dos pergaminhos de De La Charroux. O trecho seguinte desta carta de Vernier foi comprometido pelo mofo, o que impossibilita a leitura. Em sua última folha, legível, traz algo inquietante: “Seu nome, amigo poeta, estava em um dos pergaminhos, assim como poemas de seus primeiros livros. Resolvi escrever-lhe sem demora. Porém, insisto, creio ser prudente manter o segredo entre nós – há muito mais nas letras do velho monge, enviarei novos relatos na próxima correspondência”. O autor do artigo da Recherche teve acesso aos documentos de Mallarmé guardados na Academie de France. Não existe cópia da carta de Vernier – possivelmente ela nunca foi enviada.

Quando os pesquisadores se debruçaram sobre o diário de capa de couro vermelha do teólogo só foram capazes de resgatar poucos fragmentos. Como este: “Lille, 8 de setembro de 1857. Há semanas minha vida definha e se resume a analisar os manuscritos do prior. Cerimônias secretas na sacristia do monastério. Os religiosos evocavam forças para antever o futuro e, pelo que entendi, são capazes de acessar material escrito” (…)

Adiante no diário, sem data, Vernier registra que as anotações de De La Charroux, à margem de um determinado pergaminho, afirmavam que a língua descoberta pelos monges tinha semelhanças com o langue d’oïl e o latim, mas muitas palavras soavam incompreensíveis aos copistas e isso prejudicava a evolução do trabalho – provavelmente, registra Vernier, ele falava do francês moderno. Há cento e quarenta e oito fólios reproduzindo trechos de obras poéticas – sabe-se agora, todos do século XIX, a maioria de autores de pouco sucesso.

O terço final do diário de Vernier permanece relativamente intacto. Ali, o autor anota que dera início a um livro, com o nome provisório de A Viagem de Inverno, com trechos encontrados nos pergaminhos do monastério de Champmol. De acordo com os pesquisadores, existe registro da obra no Catálogo geral de livros franceses e bibliografia da França de 1864, publicado na Inglaterra, mas desconhece-se a existência física de A Viagem de Inverno.

Um grupo interdisciplinar, reunido na Universidade de Villejuif e comandado pelo literato Torreón de Jocar recebeu recentemente a posse dos manuscritos, mas ainda não publicou nenhuma conclusão ou estudo aprofundado, segundo a Recherche. A equipe de Jocar identificou trechos de obras de Verlaine, Bloy e Valade, entre outros simbolistas franceses. Uma fonte da universidade, consultada na semana passada pelo jornal France-Soir – escreveu minha amiga Acevedo na mensagem que acompanhou o artigo –, afirmou acreditar que grande parte dos palimpsestos foi adulterada. “Deve ter sido alguma brincadeira de surrealistas”, disse o anônimo ao jornal. “Um risco a mais, uma emenda a mais no couro.” Ressalvou que a universidade espera a liberação de recursos para, com o uso de ressonância magnética, estudar as camadas raspadas e talvez resgatar textos antigos apagados.

O artigo afirma que ainda não se sabe a razão de o material de Vernier e os palimpsestos estarem guardados em Dunquerque, nem quem os levou para lá. O prior Bettancourt de La Charroux comandou o monastério de Champmol entre 1303 e 1312. Foi preso e julgado naquele ano por pertencer à Ordem dos Cavaleiros Templários e queimado vivo por associação à bruxaria. Documentos referentes a De La Charroux desapareceram dos arquivos da Inquisição e da Igreja regular francesa. Hugo Vernier, nasceu em Vimy, em 1836. Não há registro notarial de sua morte.

Assim que terminei a leitura liguei para Leonor Acevedo e pedi o contato de Torreón de Jocar. Guardo em minha biblioteca várias reproduções de pergaminhos em langue d’oïl que talvez pudessem ajudá-lo. Consternada, a funcionária de Villejuif com quem falei disse que Jocar fora encontrado morto em sua casa naquela manhã.