ALGREN PARA PAIS, MÃES E FILHOS

O texto da coluna Narrativas & Depoimentos de hoje surgiu a propósito de uma dica de presente para o Dia dos Pais, que nos EUA acontece no mês de junho. Trata-se na verdade de uma deliciosa resenha e apresentação da obra do escritor americano quase sempre canônico Nelson Algren – que, por vezes, a depender do momento histórico, cai no esquecimento até nos Estados Unidos. A resenha é assinada pelo escritor e cronista esportivo Ben Fowlkes e saiu na revista Gawker com o título “Get your dad a book by Nelson Algren”, aqui publicada na tradução de Yasmin Ribeiro.

Fowlkes fez uma carta de amor à obra de um dos maiores escritores do século XX, que sobrepuja qualquer categoria de gênero literário. O fato de por uma época ter sido amante de Simone de Beauvoir acabou lhe dando mais notoriedade do que suas histórias sobre a gente pobre norte-americana, boxeadores, assaltantes, prostitutas e outros personagens à deriva pelas ruas de Chicago, retratados por ele com um olhar de rara empatia.

Atualmente, Algren está muito bem publicado nos EUA pela Seven Stories Press, cliente da VB&M. Infelizmente a resenha de Fowlkes não pode funcionar no Brasil como dica para o Dia dos Pais, que vem aí em agosto, porque a obra está completamente fora de catálogo, só encontrada em nem tão boas traduções na Estante Virtual. (Diga-se que entre os pets da VB&M tem uma Simone srd e um Nelson Wheaten Terrier, assim chamados adivinhem em homenagem a quem.)

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Se você é uma pessoa que realmente gosta de livros, ainda mais de ficção de qualquer tipo, há a  possibilidade de ter um escritor favorito que sempre recomenda para pessoas que sequer lhe pediram uma opinião. É um hábito irritante, e você sabe disso, mas por algum motivo se convence de que é relevante para a conversa e lá está, de novo, bêbado na cozinha de alguém à uma da manhã, dizendo para as pessoas que elas têm muito que ler esse autor que você tanto ama.

Esse sou eu com Nelson Algren. Não acho que já tenha perdido uma única chance de dizer a alguém que ele escreveu o melhor texto curto de ficção sobre luta de boxe profissional (A ESCURDIÃO CHEGOU CEDO NAQUELE PAÍS, “Dark Came Early In That Country”), ainda que poucas pessoas pareçam se importar com quem escreveu o melhor texto curto de ficção sobre luta de boxe profissional. Algren é um daqueles escritores que, na primeira vez em que o li, fiquei com raiva do sistema escolar por não ter me contado nada sobre ele. Será que não podiam adivinhar que eu me tornaria um aluno muito mais entusiasmado se tivessem me apresentado a um sujeito que escreveu ficção sobre batedores de carteira e traficantes e prostitutas e lutadores de boxe?

Desde então, tomei como missão me certificar de que ninguém que eu conheça continue vivendo com essa ignorância em particular. Ainda mais agora que nos aproximamos de um dos raros feriados em que as recomendações de livros são realmente úteis: o Dia dos Pais. As pessoas adoram dar livros de presente para seus pais. O problema é que, sendo seu pai um fã de Tom Clancy ou de Lee Child, pais que leem livros não ficam esperando uma ocasião marcada no calendário. É por isso que é tão difícil comprar presentes para os pais. Eles tendem a ter relativamente poucos interesses, em geral muito específicos, e cultivam-nos sozinhos, então o que quer que esteja na lista de leitura dele, seu pai provavelmente já leu antes de chegar o feriado.

É aí que entra a obra de Algren. Por quê? Parcialmente porque é algo um tanto obscuro e muito, muito bom, mas também porque tem uma certa aura de velha guarda, mas sem perder seu poder emocionalmente evocativo como literatura.

Isso funciona também quando o pai em questão não se considera um grande leitor de ficção. Tendo trabalhado como escritor esportivo pelos últimos 15 anos, eu me encontrava com frequência em conversa com homens que gostavam muito de esportes, que todos os dias liam vários sites dedicados a cobrir todos os jogos, mas que diriam que nunca leram muita ficção e não veem por que mudar. O que aprendi nessas conversas foi que se eu tentasse recomendar os clássicos — Hemingway, Steinbeck, Faulkner, etc —  minhas sugestões pareciam um plano de estudo. Sou um grande fã dos romances brilhantes de Madeline Miller, “A canção de Aquiles” e “Circe”, que unem os mitos da Grécia antiga com a arte moderna do page-turner — esses caras preferem esperar pelo filme.

Com Algren, pude indicar a eles um autor que escreveu boa ficção sobre todos os tipos de personagens e assuntos em que eles já se interessavam, e que fez isso com brevidade, eficiência e prosa de boa qualidade. Tudo isso é especialmente nítido em sua ficção sobre lutas, um subgênero que eu amo. Basta ver como ele abre  “Dark Came Early in That Country”:

“Nós vamos deixar você lutar sob a condição de que não nocauteie Reno nos dois primeiros rounds,” o gerente de DeLillo me disse, “depois do segundo, é cada um por si.”

“Palavra de honra?”, perguntei a ele.

“Cem dólares e você paga suas próprias despesas para chegar a Chicago. Palavra de Honra,” ele me disse.

“Devemos aceitar?”, perguntei a Beth.

Vamos”, ela respondeu.

“Eu não tenho como custear as despesas”, disse a ela.

Beth pagou minhas despesas.

A maior parte da ficção sobre luta se encaixa em duas categorias: A Armação ou O Lutador Derrotado Que Ganha Uma Última Chance. A melhor história sobre boxe de Hemingway, “Fifty Grand”, era do primeiro tipo. Filmes como “Rocky” e, mais recentemente, o filme da Halle Berry sobre MMA, “Bruised”, são grandes exemplos do segundo tipo.

Algren veio com um terceiro tipo. Ele escreveu histórias variadas com o sabor de descrições realistas do que era a vida no mundo da luta para aquele tipo de sonhadores feridos e explorados, que tendem a ocupá-lo.

O narrador da história acima, por exemplo, é um boxeador habilidoso mas ainda anônimo que cruza o país lutando por quantias pequenas e esperando por uma oportunidade de alcançar o sucesso mesmo quando vê sua própria paixão pelo esporte desvanecer. Numa noite, durante longa viagem de ônibus, ele reflete sobre a necessidade de permanecer hostil durante a luta. “Mas quando se tem 32 anos e se está nesse negócio há 13, você já gastou toda a sua hostilidade.” Então, ele tenta pegar no sono contando os nomes de todas as arenas em que já lutou: o Marigold em Chicago, o Rainbow Garden em Little Rock, o Armory A.C. em WIlkes-Barre. “Logo antes de adormecer eu sabia todos os nomes dos lugares onde gastei minha hostilidade.”

Essa é uma versão mais eloquente e sucinta de uma coisa que eu ouvi de muitos lutadores profissionais mais velhos na vida real. É a ironia dessa área em particular, que o tempo e a experiência necessários para ser bom na luta também resultem no enferrujamento dos meios, tanto físicos como psicológicos, dos quais você precisa para continuar. Dessa forma, é como a vida e o envelhecimento em geral, exceto pelo fato de tudo acontecer muito mais rápido.

Algren também entendeu as similaridades que existem, tanto naquela época como agora, entre lutadores profissionais e prostitutas. Sua história DEPENDER DA TIA ALLY (“Depend on Aunt Ally”) começa com uma prostituta de meio-período numa pequena cidade do estado de Arkansas sendo presa e eventualmente arrastada para um esquema de golpistas que exigem dela uma taxa de 50 dólares por mês apenas para mantê-la fora da prisão. Isso a força a entrar cada vez mais fundo na profissão, prendendo-a para sempre num trabalho que deveria ser apenas um bico, até que ela conhece e se apaixona por Baby Needles, o “Palhaço dos Ringues”, mas um lutador que a arrebata assim que sua carreira no boxe começa a decolar. 

Quando ele descobre que ela é uma fugitiva com uma dívida imensa a pagar, dá a ela o conselho de voltar para a prisão e concluir sua pena de três anos. Eles podem começar de novo quando ela sair, ele lhe diz sem muita convicção.

“Será tarde demais, Baby,” ela responde. “Você não tem três anos bons sobrando dentro de si. E nem eu.”

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Nelson Algren ganhou notoriedade quando seu romance THE MAN WITH THE GOLDEN ARM (“O homem com o braço de ouro”) venceu o primeiro National Book Award em 1950. Na época, ele era ainda uma novidade para a elite literária americana. Algren escrevia sobre pessoas pobres, problemáticas, viciados e criminosos ocasionais, mas fazia-o com o olhar de uma testemunha que estava a apenas alguns bancos de bar de distância. Uma vez, descreveu o episódio em que foi assaltado no South Side de Chicago e ganhou um cartão da polícia que o permitiria entrar na delegacia e ver as fichas dos presos na esperança de achar o assaltante. Abusou daquele cartão por anos, disse, tudo para ser uma mosca na parede e ouvir as histórias dos homens que foram arrastados das ruas para a prisão por uma alegação ou outra.

“A única coisa que conscientemente tentei fazer foi me colocar numa posição de ouvinte para as pessoas que eu queria ouvir falar, falarem,” ele explicou. Isso era uma das coisas para a qual as fichas da polícia eram boas, e Algren aproveitou esse esquema até o cartão se desgastar e um detetive perguntar se ele ainda estava procurando pelo criminoso sete anos depois. “Respondi: Claro que sim, eu perdi 14  reais, e ele me deixou continuar.”

Algren saiu da faculdade com um diploma de jornalismo durante a Grande Depressão e não conseguiu emprego em jornal algum. Serviu ao exército sem muito interesse ou distinção durante a Segunda Guerra Mundial (gostava de dizer que começou como soldado e terminou da mesma forma, com a busca pelo vinho sendo sua principal preocupação durante todo o conflito). Sua prosa foi por vezes comparada à de Hemingway — se você escrevesse frases relativamente curtas em histórias ambientadas em ringues de boxe e pistas de corrida, isso era praticamente inevitável —, mas Algren nunca foi do tipo que inventava mitos sobre sua própria vida.

Fisicamente, ele era pequeno e irrelevante, uma figura rechonchuda que usava óculos e tinha cabelo ralo e despenteado. Teve um caso já bastante noticiado com Simone de Beauvoir, embora tendesse a diminuir o fato, evitando a pergunta numa entrevista ao simplesmente explicar que ele a conduziu por Chicago para mostrar-lhe sua terra natal: “Levei-a para ver a cadeira elétrica e tudo o mais.”

Politicamente, ele era de esquerda a ponto de preocupar seus editores diversas vezes, mas dizia que não votava e não era particularmente comprometido com qualquer movimento organizado. Ainda assim, foi o suficiente para que o FBI levantasse um dossiê de centenas de páginas a seu respeito, que chegou a interferir com sua solicitação de um passaporte. Após vender os direitos audiovisuais de THE MAN WITH THE GOLDEN ARM, quase imediatamente entrou numa discussão com o diretor Otto Preminger sobre o que via como um desdém pelas personagens e uma tendência a sensacionalizar ao invés de olhar com empatia para elas, e absteve-se de qualquer conexão com o filme, protagonizado por Frank Sinatra. Como Algren colocou mais tarde, seu tempo como roteirista do filme foi severamente limitado, assim como sua compensação pelo sucesso de bilheteria.

“Eu fui lá para receber 1.000 por semana, trabalhei na segunda e fui demitido na quarta-feira,” disse Algren. “O rapaz que me contratou estava fora da cidade na terça.”

Para mim, a melhor obra de Algren é o seu segundo romance, NEVER COME MORNING (“Não chega a manhã”). É uma história brutal e comovente sobre moradores de Chicago que tentam encontrar novas formas de viver com dignidade em meio à estarrecedora miséria urbana, ainda que isso signifique se tornar boxeador, assaltante ou prostituta. É um desses livros com várias cenas que, décadas após a primeira leitura, permanecem gravadas no cérebro tanto no bom como no mau sentido. Uma parte de mim odeia Algren por me fazer passar por essas experiências como leitor, outra parte é grata pela empatia e humanidade que ele conseguiu transmitir ao contar os horrores diários que as pessoas enfrentam um após outro.

Me pergunto às vezes o que o mercado editorial de hoje faria com um escritor como Algren, que resiste à fácil categorização fácil. Seus romances e histórias por vezes contêm crimes, drogas e bebidas, mas definitivamente não são policiais ou desventuras sobre abuso de drogas, como as de Hunter S. Thompson . Há uma certa dureza em suas histórias, é claro, mas também muita fragilidade humana para esse gênero literário habitado por Thompson. O próprio Algren não tinha muita certeza de onde se encaixava. De acordo com Kurt Vonnegut, que lecionou junto a ele no Iowa Writers Workshop, Algren uma vez referiu-se a si mesmo como “a flauta de brinquedo da literatura americana.”

Esse é outro motivo pelo qual sua obra funciona como recomendação ou presente. Mesmo entre leitores vorazes e conhecedores de literatura, muita gente nunca sequer ouviu falar de Algren. Por alguma razão, sua obra não encontrou um lugar permanente no cânone literário americano. Ele não é comumente ensinado nas escolas, e seu nome não aparece entre os gigantes literários dos meados do século XX (embora o próprio Hemingway tenha se referido a Algren como o segundo melhor autor de ficção nos EUA — depois de Faulkner). Mas uma vez que grande parte de sua obra focou personagens levados a extremos pelo moedor de carne econômico que é o capitalismo americano, suas histórias continuam relevantes até hoje.

Talvez por isso eu não consiga largá-lo e ainda me sinta compelido a continuar empurrando seus livros para as pessoas. Isso é tão bom, penso a cada vez que o leio. Mesmo após todas essas décadas, continua bom. O lutador precisa desgastar suas ferramentas ao colocá-las para trabalhar, gastar sua hostilidade, mas o escritor consegue canalizar as suas para algo perene, ao menos ocasionalmente. Tudo o que ele precisa é de alguém que leia sua obra e dê a ela uma chance.