AS LIÇÕES DOS MESTRES

Quem Conversa Com (A) Gente hoje é Bruno Zolotar, diretor de Vendas & Marketing da Editora Rocco. No bate-papo, ele revela as estratégias adotadas pela editora para superar as adversidades impostas pela Covid-19; fala do reposicionamento da marca, que capitaneou desde sua mudança do Grupo Record para a Rocco no final de 2018; e compartilha aprendizados que fez na sua convivência com dois dos grandes nomes do mercado do livro, Paulo Rocco e Sérgio Machado. Perguntado sobre o pulo do gato para enfrentar a hegemonia dos canais de streaming na indústria cultural, sentencia: “seja qual for o formato, (os livros) precisam estar disponíveis na maior quantidade de telas ou suportes para poder competir”.

VB&M: Você começou 2020 estreando uma nova posição em sua carreira como diretor de Vendas & Marketing da Editora Rocco, depois de décadas no GrupoRecord, com apenas um breve intervalo. Certamente tinha um plano de atuação. Como foi o ajuste desse plano diante da avalanche de desafios que a Covid-19 apresentou?

BZ: Entrei na Rocco em outubro de 2019 com a missão de unificar e liderar as áreas de marketing e vendas. A crise provocada pelo Corona na China já começava a dar os seus sinais, mas eu, assim como boa parte dos executivos no país, fiz para 2020 uma previsão de crescimento em relação a 2019, ignorando os seus efeitos e achando ingenuamente que a onda não chegaria até aqui ou que não faria esse estrago todo. Estava claro que era preciso, além de gerar a sinergia entre marketing e vendas, recuperar o espaço em lojas físicas que a Rocco tinha no passado. Mas o fechamento das lojas físicas em março e abril adiou os nossos planos. Para manter o faturamento, tivemos que direcionar nosso foco para o e-commerce e os sites das livrarias físicas, além dos formatos digitais. Reduzimos, mas não suspendemos os lançamentos e, em marketing, fizemos um redirecionamento do conteúdo publicado nas nossas redes sociais, para que andasse junto com as prioridades do Comercial e gerasse tráfego na internet para os nossos clientes. Também entendemos que, com mais gente em casa, nossas redes sociais teriam um papel mais importante no entretenimento dessas pessoas. Foi uma época de muitas “lives” e vídeos com autores e gente daqui da editora. Até o Paulo Rocco fez “live”.

VB&M: Do alto de seus 46 anos e depois de meses de pandemia, Rocco inicia 2021 enxuta e rejuvenescida, de cara nova. Quais as reflexões e conceitos por trás das novas marcas e selos da editora?

BZ: Quando cheguei à Rocco, o João Paulo Rocco tinha esse projeto de mudar a marca, de fazer o que em marketing chamamos de “rebranding”. A gente se questionava como seria modernizar uma marca que faz parte da memória afetiva de tanta gente sem perder o pé da tradição mas ao mesmo tempo conectando-a com as novas gerações. Também havia o questionamento interno sobre manter ou não os vários selos que a editora tinha. Optamos por fazer uma releitura da marca que não fosse uma ruptura total, mas com uma tipologia mais moderna e arejada. Também chegamos à conclusão de que os selos pouco acrescentavam ao “branding” da editora e que o mais importante nesse momento seria reforçar a visibilidade e os valores da “marca mãe”. Então tudo voltou a ser editado com a marca Rocco, com uso de elementos gráficos para separar faixas etárias e gêneros. Então, por exemplo, o Rocco com estrelas é para livros de fantasia acima de 14 anos, YA, sci-fi e thrillers. As estrelas remetem à mágica de Harry Potter que está no nosso DNA. Para a faixa dos 10 a 14 anos, usamos o sorriso. Já no caso de crianças até nove anos, brincamos e criamos o nome Rocquinho. Outros gêneros como não-ficção, poesia, desenvolvimento pessoal e literatura mais clássica usam a marca renovada, mas sem sinais gráficos. A receptividade do público foi muito melhor do que esperávamos.

VB&M: A Rocco fechou o ano passado no topo das listas de mais vendidos para 2020, principalmente na não-ficção e no infanto-juvenil. A editora cresceu na Covid-19? A pandemia de alguma maneira abriu oportunidades?

BZ: Sim, a editora cresceu e cresceu mais do que o número projetado para 2020 antes da pandemia. Esse resultado veio de vários fatores. O primeiro foi a postura do Paulo Rocco diante da crise. Apesar do fechamento das livrarias e do primeiro baque que foi sentido mesmo no e-commerce, o Paulo teve sangue frio e jamais se apavorou. Ele já passou por muitas crises e sabia que essa era só mais uma. Depois, de novo, o Paulo não se retraiu e teve a ousadia de não frear o projeto editorial comemorativo dos 20 anos da publicação de Harry Potter no Brasil. No final de abril, relançamos os sete livros com capa dura e um box premium. O mercado aceitou bem, e isso trouxe um faturamento importante para a editora, numa época em que quase tudo estava parado. Houve um outro fator importante nessa mesma época. Sem lançamentos em cinema, teatro e poucos livros, a efeméride dos 20 anos teve um espaço enorme na mídia e nas redes sociais, o que deu para a série uma enorme visibilidade, numa hora em que estava todo mundo em casa. Daí para a frente tudo o que era relacionado a Harry Potter, inclusive novos boxes e edições premium, vendeu muito e até o final do ano HP permaneceu no topo das listas. O ano de 2020 foi também o de “Mulheres que Correm com os Lobos”. Com uma nova edição capa dura, no segundo semestre de 2018, a curva do livro já tinha mudado. Depois, muitas influenciadoras começaram a falar dele na internet, divulgamos bastante nas redes sociais, e o livro passou a ser um fenômeno “mainstream”, vendendo tanto na Livraria da Travessa, quanto nas lojas físicas das Americanas. E ainda tivemos o novo “Jogos Vorazes” e o Centenário de Clarice. Realmente, 2020 foi um ano de venda de títulos de catálogo, e nós soubemos aproveitar o potencial da editora.

VB&M: Como reage o diretor de marketing de uma editora de livros à hegemonia na indústria cultural dos canais de TV por assinatura, que, se pontualmente beneficiam a divulgação de algumas obras literárias que geraram audiovisuais, de outra parte sugam o grosso do tempo de lazer dos consumidores de arte e cultura? Qual a estratégia de um editor para lidar com Netflix, HBO, Amazon, Globo-Play, etc, a nova grande indústria do audiovisual?

BZ: Vejo esses debates sobre vendas em livrarias vs. vendas em sites, ou livro digital vs. Físico, e me parece que o X da questão do futuro do mercado não está aí. A verdadeira briga hoje é pelo tempo livre das pessoas, cada vez mais escasso. Tempo que foi tomado delas não só pelo streaming, mas também pelas redes sociais. É curioso como mesmo nas editoras, nos almoços e papos de cafezinho, antigamente se falava de livros e hoje só se fala de séries. É um sinal importante de que as coisas estão realmente mudando. A Nielsen vai fechar 2020 provavelmente com uma maior venda de livros em relação a 2019, mas percebo que, apesar da compra ser maior, menos gente está realmente lendo, porque passa mais tempo assistindo séries e filmes nesses canais de streaming. Outro dia vi uma importante influenciadora de livros propor aos seus seguidores destinar um tempo diário para a leitura, assim como você destina um tempo na sua agenda para fazer ginástica. Numa enquete, boa parte das pessoas no seu perfil do Instagram dizia que não estava conseguindo. O streaming é de fácil acesso, barato e sedutor. A Netflix lança uns 50 conteúdos por mês, investe pesado na divulgação de três ou quatro títulos, gera o “hype” e todo mundo quer participar dele, assistir e comentar o que todo mundo está comentando. Não sei se é coincidência ou não, mas minha percepção é que, à medida que o número de séries cresce, o consumo de livros de ficção cai _ obviamente excluindo-se os livros que deram origem a séries ou filmes do streaming. Não existem soluções mágicas para ir contra isso, mas há dois caminhos que me parecem mais óbvios. Um dos caminhos é aquela máxima de que, já que você não pode ir contra eles, junte-se a eles. Ou seja, se a Netflix ou a Amazon Prime Video vão lançar algum conteúdo de um livro da sua editora ou que fala de um assunto que casa com um livro seu, se prepare para surfar a onda e colar nele da melhor forma possível. Não adianta só ter o título no catálogo, fazer um post nas suas redes sociais e achar que isso resolve. Tem que ter uma estratégia. O segundo caminho é investir de verdade na divulgação dos livros que têm potencial. Nunca na indústria do livro teremos a verba que a Netflix tem para divulgação, comprar esses painéis de 20, 30 metros quadrados nos aeroportos, mas me parece claro que vai ser preciso investir mais e melhor para que o seu livro seja realmente notado. A divulgação vai ficar cada vez mais cara e difícil. Por último, o óbvio. Um dos pulos do gato do streaming é que você assiste um filme ou série onde quiser, então os livros, seja qual for o formato, precisam estar disponíveis na maior quantidade de telas ou suportes para poder competir.

VB&M: Entre muitas conquistas, a Rocco se notabilizou por sempre conseguir atrair de volta, por breves períodos ou para sempre, seus grandes autores que dão uma escapada para a concorrência. Não só brasileiros, estrangeiros também. Aconteceu com Paulo Coelho e Julian Barnes. Em 2020, vocês lançaram PAI EM DOBRO, de Thalita Rebouças, filme que virou livro e está estreando na Netflix, grande retorno da autora, uma revelação da Rocco, mas cujos três últimos trabalhos foram por outra editora. Isso é truque do mago Paulo Rocco. Ele já compartilhou com você o pulo do gato para fazer essa mágica? Para o meio editorial, é uma lição preciosa que só o Rocco pode dar.

BZ: Quando eu fui entrevistado pelo Paulo para a vaga, ele me disse uma coisa que foi muito importante para o meu entendimento do que é a editora: a Rocco se divide em várias Roccos. Tem a Rocco do Harry Potter, a Rocco da Clarice Lispector, a Rocco da Thalita, da Margaret Atwood…. E da mesma forma que Clarice faz parte da história e do DNA da Rocco, a Thalita também faz e, como muitas dessas coincidências mágicas que existem na Rocco, ela completou 20 anos de carreira no mesmo 2020 dos 20 anos de Harry Potter no Brasil. Então eu encaro cada um desses autores como “marcas” que devem ser trabalhadas e lembradas constantemente. O Paulo e o João Paulo têm uma ligação muito forte com a Thalita e para mim e a Ana Lima, que é a gerente editorial, foi um presente fazer parte desse retorno da Thalita à casa. Estamos bem animados com o filme e seus reflexos para o livro.

VB&M: Para finalizar: de outro mestre empreendedor, o presidente e CEO do Grupo Record, Sérgio Machado, com quem você trabalhou de 2007 a 2016, quando ele faleceu, tem alguma lição que o ajudou a enfrentar a pandemia?

BZ: O Sérgio Machado não era de falar muito, mas nas reuniões, algumas delas antológicas, de vez em quando soltava seus axiomas sobre o mundo editorial. Sérgio dizia que o catálogo era uma das maiores riquezas e pilares de uma editora. Em 2020, quando poucos lançamentos realmente funcionaram, quem teve catálogo e soube trabalhar com ele, navegou mais facilmente pelas adversidades. Outra metáfora sábia, que nunca vou esquecer e que Sérgio sempre repetia, é que uma editora é como um banco: quem quer ter editora tem que ter caixa e lastro para financiar a cadeia produtiva, aguentar esperar os longos ciclos de recebimento e ter fôlego para continuar refinanciando a roda. Isso nunca foi tão verdadeiro quanto em 2020.