Na coluna Narrativas, um trecho de lindo conto de Edgar Garbelotto encerra a semana do blog VB&M. Escrita originalmente em inglês e recém-publicada na revista The Common como “A Fourteen-Hour Lesson In Theosophy”, a história curta recria os últimos momentos de Clarice Lispector numa prosa de fisicalidade intensa, tão bela quanto a da própria escritora e personagem protagonista. Edgar, residente nos EUA, é também tradutor magnífico. Sua tradução de LORDE, de João Gilberto Noll, está entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti de Melhor Livro Brasileiro Publicado no Exterior.
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A FOURTEEN-HOUR LESSON IN THEOSOPHY
Edgar Garbelotto
14:22: O trânsito está parado pelos lados de Copacabana. A tarde estática a segura, adia, e ela não acha isso nada ruim. Uma mãe atravessa a rua com os dois meninos pelo braço a caminho da praia, como ela fazia quando os filhos eram pequenos. Era diversão garantida bater as pernas dentro d’água, deixar o corpo se erguer na formação das ondas. Depois deitar na areia deixando o sol sugar a água gelada do corpo até que restasse na pele uma poeira fina de sal. Em casa, bebiam Coca-Cola doce e preta na varanda, adiando o banho de chuveiro o mais que possível, estendendo a estadia do mar nos corpos. As crianças dormiam tão bem naqueles dias de praia. O mar balançava no sangue a noite inteira. O Rio nos anos 50 era outro, não havia essa gente toda fumando maconha na praia com biquínis minúsculos. Naquele tempo, chapava-se com o próprio gás da vida.
14:25: Sinal verde, o taxi não anda. Ela assiste o mundo lá fora como se estivesse num aquário. E isso é o que mais a revolta: o mundo continuará a existir e se transformar sem ela, que é dispensável e desnecessária. Sim, esse é um pensamento egoísta, mas a sua luta na vida sempre foi uma de apropriação do Tempo. E agora ela tem que aceitar esse descolamento do mundo? Perder a sucessão de décadas. Os anos 80, tão próximos, tão cheios de promessas de mudanças. Os anos 90, quando tudo será automatizado, robotizado. Os anos 2000, cada pessoa em seu próprio disco voador, dando voltinhas na Lua, em Marte.
14:27: Ela precisa de um cigarro, aquecer-se de fumaça azul e nicotina. Abaixa o vidro do carro. A primeira tragada é sempre de prazer. Destranca a fumaça fina do peito. O vento guloso traga a fumaça e a dissolve no ar da rua. Ela abaixa a mão com o cigarro travado entre os dedos, arranha com as unhas o tecido do vestido sobre a coxa. Inspeciona a pele repuxada da mão e braço direitos. Jamais se acostumou com a pele assim derretida, deformada. Nocauteada pelas pílulas, dormiu com o cigarro aceso… Sim, culpada, culpada. Mas para que se lembrar daquilo tudo agora? O que importa é que sobreviveu para poder chegar nesse momento, quando oferece seu corpo parcialmente queimado para o fogo do sacrifício final. Isso não é a pira olímpica aonde se chega esperançoso de vitória. Isso é um câncer cretino e silencioso lhe calçando nas veias. E ela chega arfando esbaforida dessa maratona com obstáculos: vida: espetáculo. O estádio todo uiva, aplaude e vaia a entrada da atleta fumante.
15:03: O taxi entra em Ipanema pela quadra antes da praia. Tráfego pesado. Desse jeito, vai levar duas horas pra chegar ao hospital. Ela abaixa mais a janela do carro. O ar fresco do mar canaliza entre os prédios e a golpeia nas narinas. Ela traz o rosto bem perto da janela e inspira o ar marítimo do Rio. Uma profusão de odores a domina. Ou é a memória dos odores, já que seu senso olfativo está comprometido. A memória reconhece o odor dos corpos das meninas voltando da praia: biquíni molhado, loção protetora, restos de perfume de xampu misturados ao sol, água e vento. Fumaça de ônibus, fumaça dos carros, fumaça de cigarro na língua, frituras de peixe e batata, feijão refogado, café bem passado, o abacaxi está cheirando amarelo na banca de frutas, a cerveja derramando gelada nos bares, a poeira assentando nas toalhas de plástico das mesinhas da calçada, nas folhas das árvores ao longo da avenida. A poluição tem um cheiro. A portaria dos prédios tem um cheiro. O sangue fluindo nas veias tem um cheiro. Tudo envelopado pela maresia. Tudo é o Rio o tempo todo: complexo, completo, sufocante. Tudo é a cidade amalgamada dentro de si.
15:15: Avançam, enfim, por ruas densamente habitadas. E assistindo à raça brasileira desfilando nas calçadas, ela se perdoa. Não por ter sido egoísta — ela teve que ser, muitas vezes, por sobrevivência — mas por não ter dado mais de si. Sim, ofereceu ao mundo algumas frases e estórias que tocaram ou tocarão alguém um dia, mas que não mudaram ou mudarão nada ou ninguém. Que diferença fará ao mundo se as pessoas a lerem ou não? Se perderem os trabalhos que ela não conseguiu terminar ou os que foram destruídos pelo fogo? Ela trocaria mil representações da vida por alguns minutos a mais da vida em si.