UM CHOPE COM O MUSSA

Miguel Sader

Alberto Mussa não acredita que a pandemia da Covid-19 afetará drasticamente o futuro do Rio de Janeiro e sequer aceita que nosso olhar sobre a cidade mudou. “O passado é mito, não muda”, disse, em Entrevista ao blog da VB&M, o autor de uma das mais originais obras da literatura brasileira contemporânea, confirmando que, sempre que ele dividir suas visões com o público, o leitor será iluminado por uma perspectiva totalmente nova da história humana. A produção literária do Mussa é extensa e diversificada, apesar de girar sempre ao redor de seus temas centrais, a saber, crime, adultério, mitologia e, na maior parte dos textos, o Rio de Janeiro. Em outros tempos teríamos ouvido o autor numa mesa de bar cada um com seu chope na mão, mas dessa vez não foi possível. Ainda assim, é imenso o prazer de conhecer suas ideias sobre o Rio à luz das circunstâncias atuais, sua análise das dificuldades etimológicas de ser brasileiro e o comentário sobre próximos projetos – o ensaio literário A ORIGEM DA ESPÉCIE, em torno do mito do roubo do fogo, a sair pela Editora Record no próximo ano, e o romance que vem planejando escrever, a se tornar a primeira narrativa contemporânea em todo o conjunto de seu trabalho literário.

VB&M: Sabemos que a pandemia da Covid-19 já mudou a maneira como vemos e vivemos o Rio de Janeiro no presente e no futuro. Muda também a maneira como olhamos para o passado da cidade?

AM: Não tenho tanta certeza de que essa experiência vá mudar a cidade, no futuro. Aliás, já consigo perceber uma grande ansiedade pela retomada da vida do jeito que ela sempre foi. No que se refere ao passado, acho que não. O passado é mito. Não muda nunca.

VB&M: A reação do povo carioca à pandemia e às orientações desencontradas das autoridades o surpreendeu ou foi o que você esperava?

AM: Aconteceu precisamente como eu imaginava: só uma pequena parcela da sociedade fez, ou pôde fazer, quarentena. Há vários fatores que influenciam isso: sociais, geográficos, metafísicos.

Socialmente, para que alguém faça quarentena, ou se preserve do contágio, é necessário que outros se exponham: os balconistas das farmácias e supermercados, os lixeiros, os moto-entregadores, os motoristas de caminhão que trazem todos esses gêneros para os pontos de distribuição e consumo, todos os trabalhadores das indústrias (que não podem parar), etc.

Esses, naturalmente, têm menos direito à vida e à segurança. São a confirmação, na verdade, de que vivemos numa sociedade civilizada: os que pensam, legislam e concebem as grandes criações do espírito humano não plantam o trigo do seu próprio pão nem matam a galinha da sua própria canja.

Outro fator é a tipologia dos bairros onde essa população trabalhadora mora. Não é preciso ir muito longe, não é preciso conhecer in loco para saber que é impossível fazer nesses lugares um isolamento social eficaz.

Um terceiro fator, mais complexo, me parece ser certa atitude popular relativamente à iminência da morte. Aceita-se mais facilmente a condição de vítima quando o que a vida oferece é muito pouco; é mais interessante correr o risco (que é percebido como baixo, sendo ou não) porque a miséria é pior que a morte.

Mas a defesa dessa ideia exigiria um ensaio. Ou, quem sabe, um romance.

VB&M: Você é neto de libanês e um de seus livros mais aclamados, o romance O enigma de Qaf, trata da mitologia e do imaginário árabe antigo. Diante das notícias trágicas que chegam do Líbano contemporâneo, suas raízes interferem no seu olhar e agudizam sua dor, ou você lamenta como qualquer pessoa capaz de solidariedade com o sofrimento do outro?

AM: Talvez em momentos como esse eu consiga perceber, e sentir, o quanto sou profundamente brasileiro, no sentido anti-etimológico do termo (já que “brasileiro” é “aquele que negocia com brasil”). Percebo a tragédia libanesa, ou todas as tragédias palestinas (de onde vêm o meu “Mussa”), como vejo qualquer desastre humano: com uma tristeza calma, uma tristeza passiva.

O que realmente me agride e me indigna, o que interfere diretamente na minha vida e açula meu ódio são os assassinatos de marielles, as tragédias dos rios doces, a infindável coleção de crimes que ainda se cometem contra os povos indígenas.

Recebi de pessoas queridas muitos pêsames, sinceros, depois da explosão em Beirute. Compreendo; e agradeço. Mas não consigo deixar de perceber nisso um resquício daquela noção etimológica contida no termo “brasileiro”, de que ninguém é do Brasil, só se está no Brasil. É muito estranha a ênfase nessas identidades exteriores: os detentores do passaporte europeu, a comunidade sírio-libanesa, os que de repente se descobrem cristãos-novos, os afrodescendentes, e por aí afora. Só índio mesmo é que ninguém quer ser. Me parece o sintoma de uma grave doença social.

Beirute irá se reerguer, como sempre. Nós, por nossa vez, ainda não nos demos conta da velocidade em que avança nosso esfacelamento.

VB&M: Seu próximo lançamento, infelizmente adiado pela pandemia para 2021, será um ensaio literário denominado A ORIGEM DA ESPÉCIE sobre o mito do roubo do fogo. É um projeto que você acalenta há muito tempo? Qual foi a motivação para dar uma parada na sua rica produção ficcional e explorar o campo ensaístico com uma reflexão sobre a constituição do humano?

AM: Sou um leitor compulsivo de mitologia e desde muito tempo comecei a notar a incrível universalidade dos mitos do roubo do fogo. O que mais me chamou a atenção nesse grupo de histórias é o fato de o fogo ser, em geral, roubado, enquanto outros bens culturais são doados por deuses ou heróis.

Passei a colecionar versões do roubo do fogo, e de outros mitos sobre a origem do fogo. Era um assunto que me obcecava, tinha uma intuição de que estava lidando com uma história muito antiga, contemporânea do próprio surgimento da humanidade anatomicamente moderna, ou da chamada Eva Mitocondrial, a antepassada comum a toda humanidade atualmente viva.

Só para se ter uma dimensão do que isso significa, me refiro a um fenômeno que se deu há uns 160 mil anos. Falamos, assim, de uma história que se conta há no mínimo 160 milênios. Não é pouco tempo. Há nela uma importância, uma centralidade que não pode ser ignorada.

Quando terminei o COMPÊNDIO MÍTICO DO RIO DE JANEIRO, senti que era o momento de escrever tudo o que eu pensava sobre o roubo do fogo.

Embora possa parecer um ensaio antropológico, trata-se apenas de uma reflexão literária: meu objetivo foi, primeiro, reconstituir o arcabouço do mito original, e depois interpretar seu sentido mais profundo — que é a fundação do próprio conceito de “humanidade”, a definição de suas constituintes elementares, em face dos demais entes da natureza e da sobrenatureza.

VB&M: Que caminhos deve tomar sua litertura a partir de agora?

AM: Não pretendo me afastar dos meus temas: crime, adultério, Rio de Janeiro, mitologia. Mas não posso mais escrever romances históricos cariocas, para não desintegrar a unidade do COMPÊNDIO MÍTICO.

Comecei a planejar um romance contemporâneo, ou seja, um romance passado numa época em que eu já era nascido. Mais precisamente, nos anos 70. Uma história que envolve todos os meus temas, numa trama que incorpora o ambiente das escolas de samba, o jogo do bicho, o esquadrão da morte, a umbanda, os botequins, os morros.

Talvez eu até consiga criar mais um ciclo, que se chamaria “A extraordinária Zona Norte”.