COMO A VIDA NÃO CONTINUA

Essa NARRATIVA de Maria José Silveira, autora dos romances MARIA ALTAMIRA (Instante) e A MÃE DA MÃE DE SUA MÃE SUAS FILHAS (Globo), é um conto primoroso que ela escreveu motivada pela coletânea de histórias que o crítico Henrique Rodrigues organizou para a Editora Record, “O livro branco”. Henrique convidou vários autores a escrever contos inspirados em músicas dos Beatles, titulando o livro em homenagem ao WHITE ALBUM, de 1968, disco lançado quando o Brasil entrava na mais negra fase da ditadura militar. Maria José não integra o elenco da coletânea (pior para o livro, como se verá), mas achou que o conceito era muito instigante e escreveu “Como a vida não continua”, uma história trágica, maravilhosa e até hoje inédita a partir de “Ob-la-di, Ob-la-da”, coincidentemente uma canção do Album Branco. Diga-se que “Ob-la-di-Ob-la-da já foi considerada pelo instituto alemão Max Planck a mais perfeita canção pop de todos os tempos nos termos da combinação de melodia, técnica e estética. Pois bem, VB&M considera “Como a vida não continua” um dos mais perfeitos contos da literatura brasileira em termos de técnica, linguagem e estética.

Como a vida não continua

A janela da casa se abre para o quintal pequeno onde um cajueiro dá flor.

É tarde de mormaço, ar parado, e ele está cansado. Tem ainda um bocado de trabalho pela frente mas depois de horas debruçado sobre a mesa pensa que um pouco de descanso lhe fará bem. Vai até o toca disco, põe o LP que escutou à noite e sobre cuja capa branca deixada na mesa descansa um revólver.

Mal escuta a música. A cabeça fervilha; tem dormido pouco. Não que tenha acontecido nada de extraordinário, nada de concreto, mas quando passa alguns dias sem encontrar ninguém, fica assim, pesado. Sensação de que algo pode acontecer, ou já estar acontecendo.

Chegou há três dias, e não saiu daquela casa. Não se acostuma com o calor pegajoso. Vai até a cozinha minúscula, faz um café e fica um tempo olhando o fundo borrado da xícara. Não imaginou que estivesse tão cansado.

Levanta-se decidido a tomar um banho. Liga o chuveiro, a água o mais quente possível. A água quente engana o corpo que, ao sair, julga o ar mais fresco. Seja como for, o vapor que o envolve o exime de pensar em qualquer coisa, coloca-o dentro de uma nuvem. Cantarola a música que ecoa em sua cabeça. Sente o começo de uma leve animação.

É quando os três entram na casa.

Escutam o barulho da água no chuveiro e a voz cantando obladi, obladá, la lá how the life goes on. Veem o revólver sobre a mesa.

Dois se aproximam da porta do banheiro. Um a chuta com força, o outro entra e atira na nuvem densa e viva.

“O puto tentou fugir”, a voz do que atirou grita do banheiro, antes de entrar no box, fechar a torneira e completar, “Porra! Me molhei.”

O que está vasculhando as coisas da mesa pega o revólver com um lenço e passa para o terceiro que vai até o banheiro e o coloca na mão ainda quente de Ruy.

O que pegou o revólver sobre a capa branca do disco comenta: “Não entendo por que tantos desses caras têm a porra desse disco! Será um tipo de código, ou tão pensando que isso é festa? Não é uma ditadura? Por que diabos eles acham que a gente vai dar moleza?”

O corpo fica lá estirado no box, enquanto os três policiais se espalham pela casa, esperando o dono ou seja lá quem for chegar.