Ficcionista, tradutora, ensaísta e antropóloga, Maria José Silveira brilha nas listas das mais importantes premiações literárias brasileiras com o romance MARIA ALTAMIRA (Instante), semifinalista do prêmio Oceanos e finalista do São Paulo de Literatura. A coluna NARRATIVAS & DEPOIMENTOS traz hoje o magistral capítulo de abertura de um romance inédito de Maria José, provisoriamente intitulado CÉU BRANCO, suspense psicológico político e feminista ambientado em Brasília. A obra se desenvolve a partir do assassinato de uma mulher, esposa do Secretário de Meio-Ambiente de Brasília, vítima da chantagem de um empreiteiro visando a atingir o marido dela, que tem travado uma negociata em torno de área de preservação ambiental nos arredores da cidade. A investigação paralela do crime é conduzida pela prima da vítima, jornalista investigativa e sua melhor amiga, associada ao viúvo, que alterna entre o luto e a ira destemperadamente, profundamente. É a história de um crime, mas principalmente uma narrativa sobre as nuances das relações humanas, conjugais e de amizade, diante da competição e do poder.
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“Foram como os três cavaleiros. Três, Júlia, percebi agora. Nem que meu nome fosse Terezinha e não Lilian. Pode rir, estou rindo também. É que os três apareceram próximos um do outro, por isso digo que foram três. A coincidência.
O primeiro foi aquele que te contei logo. O da academia. O jovem musculoso que resolveu se exibir para mim, desses morenões que só têm músculos, olhos felinos, e se acham o sal da terra. Ficou insuportável, e aproveitei para mudar para pilates, que há tempos eu andava planejando. Sei que agora você está dando sua risada: Moreno de olhos felinos! São os quarenta anos, querida. Não há idade melhor para uma mulher. Li em algum lugar. É nosso auge, aproveite!
O segundo foi na quadra atrás daquele restaurante aonde gostamos de ir, aquele ao lado da quadra com árvores de copas generosas. Quando vi o pneu arriado, fiquei surpresa, e antes que pudesse ver no porta-luvas o telefone do seguro, um rapaz se aproxima e se oferece para trocar o pneu, ‘Não é preciso, obrigada’, respondo, ‘já vou chamar o pessoal do seguro’, ele insiste, ‘Em um minutinho resolvo isso,’ e de fato resolve, gentil, educadíssimo, o tempo todo erguendo olhos e sorriso. Bonito, bem vestido – reparei porque pensei se não seria o caso de oferecer uma gorjeta, mas depois de acomodar pneu e macaco no porta-malas, ele me pergunta se pode me oferecer um café. ‘Ah!, muitíssimo obrigada por tudo,’ foi minha vez de sorrir, agradecida, ‘mas acabo de tomar um cafezinho’. E ele, então, acredita?, me pediu o telefone. Meu telefone, Júlia! ‘Eu gostaria de te ver outra vez’, e eu, pensando no que você disse sobre os quarenta anos da mulher, soltei minha risada, ‘Menino, eu poderia ser sua mãe!’ E mesmo assim ele insiste e num estalo me dei conta de que já tinha visto esse cara antes. Perguntei, atônita: ‘Foi você quem esvaziou o pneu do meu carro?’, e ele, bobo, bobo, alto, loiro, esplendorosos olhos negros, confessa, ‘Foi, sim, eu te vi e te gosto, entende? Queria falar com você’, e eu, juro que não sei se fiquei furiosa apenas com o português que me fez arrepiar ou com o absoluto mau gosto de tudo aquilo. Entrei no carro, bati a porta e, dessa vez, nem disse tchau. E daqui escuto sua risada, Juju.
E o terceiro, esse eu não conto agora. Só quando você voltar, só pessoalmente, só para ver seu assombro, que nem de longe será como o meu, que estou assombrada até agora, e ficarei para sempre. Às vezes tenho a impressão de que fiquei louca, Júlia.”
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Esses eram os alegres parágrafos da carta que Júlia lia e relia em seu voo para Brasília, para o velório de Lilian.
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Mal tendo consciência dos passos que a levam do aeroporto direto para o cemitério, Júlia chega ao velório. Contava ver seu rosto, abraçá-la, sentir o frio do seu corpo, e talvez assim finalmente acreditar que a notícia levada pelo telefone à tarde, no seu quarto de hotel, tinha realmente acontecido.
Mas não havia corpo a ser visto no caixão fechado na sala fúnebre de neutralidade exagerada imposta para cercar a dor dos outros. Um Ernesto de pálpebras inchadas, olhos vazios e de pé, postava-se ao lado do lustroso caixão de madeira escura. O estado do corpo determinara a descida da tampa do caixão.
A queda do oitavo andar direto em pedras empilhadas para uma reforma deixou seu corpo como pedaço de carne esmagado, ossos quebrados. Sangue escorrera pelos orifícios naturais e pelos criados pela violência da queda. O crânio pressionado deixara sua cabeça e seu rosto brutalmente deformados, o olho direito pendendo da órbita para um lado, o preto do cabelo espalhado, cobrindo-o em parte. Fragmentos de ossos dos quadris e da clavícula haviam rompido a pele, e se projetavam horrendamente para fora.
Ernesto fora o único a vê-la ainda no asfalto, uma das pernas para fora das pedras. A imagem do que vira o perturbara de tal maneira que seus joelhos se dobraram sobre ela, apagando o real e o tempo. Não sabe como saiu dali, para onde foi, como foi. O que recorda é já o dia seguinte, o dia do velório, quando agradece a compaixão de quem ordenara que fechassem o caixão. Não deixaram que a morte terrível levasse também a dignidade de sua mulher, e ele só podia agradecer por isso.
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No enterro silencioso, rápido demais, a descrença de todos era presença pesada e paralisante. O pai de Lilian, o velho Tarquínio, familiares e amigos, e o grande, absurdo, inesperado e violento vazio.
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Existe a morte quando a vida simplesmente abandona um corpo. Ao ir com ela, em seu lugar a pessoa deixa o espaço oco. Quando a morte é violenta, não. Atrás de si, a pessoa deixa também um rastro.