DITADURA NUNCA MAIS

Nesta dura semana em que precisamos, mais uma vez, reiterar que ditadura nunca mais, a coluna Narrativas traz um trecho de ANISTIA, romance inédito do escritor, tradutor e professor de Estética e Filosofia da Arte na UFF, Pedro Süssekind, cuja representação literária temos o orgulho de anunciar. Autor de extensa obra composta de contos, um romance, “Triz” (Editora 34) e ensaios e livros de não-ficção, Pedro mergulhou nos porões da ditadura para escrever ANISTIA, que se passa no Rio de Janeiro em 1979, às vésperas do decreto da Lei da Anistia. Romance de formação sucinto e sensível, o livro narra a busca de Emílio, jovem estudante de História, por seu pai desaparecido durante os anos de chumbo. A busca é entrelaçada às suas relações com a mãe, espécie de Penélope moderna, com os amigos militantes e com a namorada ativista, e com as memórias que tem do pai. Uma jóia literária que sonda as raízes do Brasil contemporâneo.

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Pedro Süssekind

O bondinho que rumava para o Morro da Urca passou tão perto, por cima da cabeça de Emílio, que dava para enxergar os rostos alegres dos turistas. Na praça com nome de algum general, ele chegou ao monumento com esculturas de soldados e porta-bandeiras que sustentam o pedestal encimado por uma espécie de anjo. Já conhecia a inscrição “Aos heróis da Laguna e Dourados”, mas só recentemente tinha estudado aquele episódio da Guerra do Paraguai na faculdade. Ótima ideia um monumento a um erro militar, ocorreu a Emílio diante da expressão de sofrimento no rosto de uma das figuras esculpidas. Lembrou da descrição que seu professor fez, da retirada forçada de milhares de soldados, que foram morrendo sob os ataques da cavalaria paraguaia. Mas também de tifo e cólera, isolados do resto do exército, passando fome. Os grandes feitos do exército brasileiro, ele disse a si mesmo. Heróis? Voluntários da Pátria, os pobres? Os escravos alforriados mandados para morrer?

Foi na Guerra do Paraguai que começou a coisa toda, no fundo, toda essa longa história de golpes autoritários que é a política brasileira, Emílio pensou ao parar na Praia Vermelha, onde barracas e cadeiras coloridas ocupavam a pequena faixa de areia, diante do mar calmo, azul escuro com reflexos prateados do sol. Seguiu pela beirada do calçadão, empurrando a bicicleta em direção ao final da prainha. Mas não se pode negar que eles escolheram o lugar mais bonito da cidade, constatou em seguida, diante das torres e casas do Círculo Militar, com as janelas voltadas para a vista da faixa de mar entre os paredões de pedra do Morro da Babilônia e do Morro da Urca. A bandeira do Brasil tremulava ao vento, hasteada numa extremidade do muro.

Depois de equilibrar sua bicicleta num canteiro, Emílio sentou-se na beira do calçadão, de frente para o Pão de Açúcar, contemplando a pirâmide cinza que, com seus ângulos e arestas, erguia-se abrupta do morro verde. Lembrou de repente da cara de tacho do Bruno na noite anterior, no fim da festa, porque do nada sua mãe tinha começado a falar do marido desaparecido, do que ele teria dito, da falta que ela sentia, essas coisas. De vez em quando ela fazia isso, e era estranho porque deixava as pessoas em volta constrangidas, sem saber o que responder. Parecia esquecer suas falas na peça ensaiada e, sem se dar conta, abandonar completamente a personagem da perfeita anfitriã simpática.

Quando Emílio era criança e foi passar uma temporada com o avô em Petrópolis, logo depois que seu pai foi embora, o apartamento deles da Rua Paissandu foi vasculhado por soldados, que apreenderam pilhas e pilhas de papéis, pastas, livros e documentos. Na verdade, segundo sua mãe, todos aqueles papéis eram só o tipo de coisa que um professor guarda: roteiros de aulas, textos mimeografados (poemas em grego antigo!), trabalhos e provas de alunos em pilhas de papel almaço. Se não tivesse desaparecido, seu pai ainda estaria dando aulas sobre Homero e Platão para estudantes que, como o Mendes tinha dito na noite anterior, não foram doutrinados pela Educação Moral e Cívica que os militares puseram no currículo escolar.

Um grupo de oficiais fardados que saíram do Círculo Militar o fez lembrar do sujeito que lhe fez perguntas uma vez, quando era criança, na casa de Petrópolis do avô. O homem da sua lembrança parecia saído de um filme de guerra. Era um gigante, mas era até simpático, porque sorria e conversava sobre seu pai como se ele estivesse só fazendo uma viagem e fosse voltar em breve. Foi bem mais tarde, quando já era adolescente, que o avô um dia lhe contou sobre os interrogatórios pelos quais a mãe dele tinha passado. O que a salvou de consequências mais graves foi a intervenção de um dos tios dela, que era comandante da Marinha. Sem isso, talvez ela tivesse desaparecido também. Ninguém teria notícias dela.

Era possível acreditar naquela ideia trazida por alguém vindo de tão longe? – Emílio se perguntou olhando os morros à distância, no outro lado da Baía de Guanabara. Quem sabe os documentos suspeitos, tirados do apartamento tantos anos atrás, à espera de quem os decifrasse, tivessem sido guardados num daqueles prédios, bem ali depois do Pão de Açúcar, na Escola Superior de Guerra, ele especulou enquanto observava, lá no alto da pirâmide de pedra, a pequena estação que parecia uma nave espacial. Como sua boca metálica de tempos em tempos era alimentada por um dos bondinhos cheios de turistas, ele se deu conta que estava com fome e se levantou para pegar a bicicleta.