DURAS MEMÓRIAS DE MIRIAN GOLDENBERG

NARRATIVAS & DEPOIMENTOS traz um capítulo do memorial acadêmico da escritora e antropóloga Mirian Goldenberg, apresentado à banca examinadora em maio de 2015 com vistas à Progressão para Professora Titular da UFRJ. Elaborado com o objetivo de detalhar sua trajetória acadêmica, o documento preparado por Mirian subverte a linguagem do meio com um tom extremamente pessoal para narrar sua relação com a literatura, que começou ainda na infância, ao explorar a biblioteca do pai. Um primor de leitura que deveria estar em livro, e estará, acessível ao público geral. Criada no seio de uma família violenta, a antropóloga hoje reúne inúmeras pesquisas sobre grupos marginais: “Acredito que não foi por acaso que, como antropóloga, passei a me interessar por grupos e comportamentos considerados socialmente desviantes, pelos ‘diferentes’. Compreender o sofrimento por ser diferente, por ser excluído, tornou-se minha principal questão como pesquisadora.”

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Vida familiar e o mundo dos livros

Fui uma menina muito magra, apelidada de Olívia Palito. Aprendi a ser invisível para me proteger das constantes surras que levei do meu pai e dos meus três irmãos. Com seis anos, eu lia e escrevia. Aos dez, havia devorado todos os livros de Monteiro Lobato. Ainda menina, li e reli todos os livros da biblioteca do meu pai, que gostava de história e de psicanálise. Li muitas biografias, inúmeros livros sobre a história do povo judeu e o Holocausto, muitos livros de psicanálise, romances etc. Lembro de ter lido, aos doze anos, Herman Hesse, Sartre, Freud, Melanie Klein, Erich Fromm. Com quatorze, li “Treblinka” e “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, entre tantos outros livros nada recomendáveis para crianças. Encontrei nos livros o refúgio para me proteger de um mundo de muitas discussões, brigas e violência.

Meu pai, nascido na Romênia, apesar de muito violento, era um homem inteligente e culto. Minha mãe, nascida na Polônia, contribuiu decisivamente para que o meu pai fizesse o curso de Direito. Meu pai logo se tornou o advogado trabalhista mais famoso de Santos, o vereador mais votado da cidade e logo em seguida Secretário da Fazenda do Município.

Minha mãe, que não pôde concluir o curso ginasial, tinha uma enorme frustração por não ter conseguido estudar. Desde muito cedo teve que trabalhar muito em uma padaria para ajudar os pais e as três irmãs. Depois, já casada, trabalhou na loja “Esplanada: moda fascinante” para sustentar a casa, o marido e os quatro filhos. A tristeza no seu olhar, ao examinar os meus livros, me faz chorar até hoje. Tenho certeza de que muito do que sou é fruto do seu desejo de estudar.

Desde muito cedo eu queria ter uma vida diferente. Minha sorte foi que, aos 16 anos, fui para São Paulo com o pretexto de estudar e consegui me distanciar, mesmo que não completamente, do que considerava ser um verdadeiro inferno.

Ler todos os livros de Simone de Beauvoir, especialmente “O segundo sexo” antes dos 18 anos, me ajudou a construir uma vida muito diferente da de minha mãe. Ingressar em um grupo de estudos, em 1974, onde li e discuti Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Mandel, Rosa de Luxemburgo foi libertador. Passei quatro anos em São Paulo militando, lendo e debatendo em grupos de estudo, muito mais do que nas salas de aula. Fui diretora do Diretório Acadêmico da PUC de São Paulo e ativa militante estudantil. Estava na PUC quando ela foi invadida pela Polícia Militar, em 1977, e testemunhei a prisão e o espancamento de vários colegas. Passei alguns meses escondida na casa de uma amiga e depois na casa do advogado Marcelo Cerqueira, no Rio de Janeiro.

Foi nesta época que comecei a escrever diários, hábito que me acompanha até hoje. Além de registrar cada detalhe do meu cotidiano, meus cadernos são o meu lugar de autoconhecimento e de conforto. Aprendi a resolver os meus problemas escrevendo neles. Tenho centenas de cadernos cuidadosamente guardados com meus registros diários. Posso sair de casa sem chave, sem dinheiro, sem celular, mas nunca saio sem caneta e algumas folhas de papel. Escrevo em todos os lugares e em todos os momentos. Escrevi as mais de 600 páginas da minha tese de doutorado sentada na grama do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Acordo de noite e registro um sonho, caminho na praia e escrevo minhas ideias para um artigo, escrevo até mesmo no banheiro.

Em “Cartas a um jovem poeta”, Rainer Maria Rilke escreveu:

“Investigue o motivo que o impele a escrever: comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se morreria caso fosse proibido de escrever. Pergunte a si mesmo, na hora mais silenciosa da madrugada: ‘Preciso escrever?’. Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade”.

Já perguntei a mim mesma, nas horas mais silenciosas das madrugadas das minhas inúmeras noites de insônia: “Preciso escrever?”. Sim, eu preciso. Eu não conseguiria viver sem escrever. Posso passar dias sem comer, sem dormir ou sem falar com qualquer pessoa, mas, desde adolescente, não passei um dia sequer sem escrever. É o que dá significado à minha vida.

Acredito que a combinação destas experiências – a violência familiar, o sofrimento da minha mãe, a leitura precoce, a militância política e, especialmente, a escrita compulsiva – foi a forma que encontrei para sobreviver e, por incrível que pareça, para ser uma mulher razoavelmente feliz. Algumas vezes sinto até certa gratidão pela violência verbal e física do meu pai e dos meus três irmãos que me fez sair de casa aos 16 anos e nunca mais voltar. E fico feliz de, poucos anos antes do meu pai morrer, aos 67 anos, termos nos aproximado. Durante a sua doença, câncer no pâncreas em função do alcoolismo, não desgrudei um só minuto dele. Perdi dez quilos em pouco mais de três meses – fiquei com 42 kg –, reforçando ainda mais minha imagem de Olívia Palito. No dia da sua morte, sonhei com ele me dizendo que eu deveria publicar um livro com o título “Cem dias de lágrimas”. Minha mãe morreu seis anos antes, aos 62 anos, depois de lutar mais de dois anos contra um câncer nos seios. Meu irmão do meio morreu, aos 50 anos, de cirrose alcoólica. Cuidei dos três. Consegui sobreviver.

Além do ambiente familiar violento, outra experiência marcou-me na minha infância e foi determinante para a minha trajetória: a vergonha de ser diferente. Ser diferente sempre foi, e continua sendo, o meu maior problema existencial.

Desde muito cedo, descobri que ser diferente era algo que poderia causar muito sofrimento. Ser diferente significava ser excluída do grupo dos “normais”, daqueles que eram (ou pareciam ser) felizes e amados por todos. Eu era muito magra, frágil e tímida, com uma família violenta, e, pior ainda, era judia, em Santos, uma cidade com pouquíssimos judeus. Eu não ganhava presentes de Natal e tinha uma enorme vergonha por não ter, depois das festas, um brinquedo para exibir para as outras crianças. Meus pais só falavam ídiche em casa para os quatro filhos não entenderem os motivos das suas constantes brigas. Também tinha muita vergonha dos nomes dos meus pais: Sura e Benjamin. O meu próprio nome causava estranheza na escola. As professoras sempre engasgavam no sobrenome e eu achava horrível o meu primeiro nome. Queria ser “normal”, queria ser “igual” às Monicas, Patrícias, Anas e Marias. Sentia-me completamente excluída, dentro e fora de casa.

Acredito que não foi por acaso que, como antropóloga, passei a me interessar por grupos e comportamentos considerados socialmente desviantes, pelos “diferentes”. Compreender o sofrimento por ser diferente, por ser excluído, tornou-se minha principal questão como pesquisadora.

Em quase todas as minhas publicações, analiso mulheres que vivem situações de transgressão e desvio. Pesquisei e continuo pesquisando mulheres que são estigmatizadas por serem diferentes, mulheres que sofrem por serem invisíveis, mulheres que vivem relações amorosas e sexuais que fogem do modelo tradicional, mulheres que estão fora do padrão de corpo valorizado na cultura brasileira.

Analisei a trajetória de Leila Diniz, um mito de mulher transgressora e revolucionária, estudei mulheres militantes políticas, mergulhei na discussão sobre a construção social do corpo feminino e os padrões culturais de beleza e de juventude, e, atualmente, estou pesquisando o significado do envelhecimento e os “casamentos invertidos” (casamentos em que as mulheres são muito mais velhas do que os maridos). Minha linha de reflexão e pesquisa sobre gênero e desvio começou, em 1990, com o estudo de mulheres que são amantes de homens casados: AS OUTRAS.