Anna Luiza Cardoso
O poeta, escritor, romancista, ensaísta, tradutor, professor universitário e atual presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, Conversa Com (A)Gente sobre seu novo romance, ADEUS, PIRANDELLO, que acaba de ser publicado pela Rua do Sabão encerrando sua trilogia carioca. Entre reflexões profundas e belíssimas, que merecem mais que uma leitura atenta, Marco discorre sobre seu fascínio pelas línguas, especialmente o português brasileiro _ “Gosto da digital brasileira, das línguas indígenas que a atravessam, das línguas africanas. Gosto dessa forma avassaladora. O português enquanto língua de fronteira” _, sobre a experiência de ser publicado por pequenas editoras independentes e, claro, sobre os “tempos abomináveis” que vivemos no Brasil, quando e onde “a política tornou-se forma de agressão, dirigida sobretudo aos agentes culturais, aos professores, às instituições federais”. Para ele, “entre armas e livros, qual a dúvida? Fome de espírito e de metáfora, não de ódio e sangue”.
VB&M: Qual de suas faces literárias você acredita predominar em sua obra, a do poeta, a do romancista, ou aquela do ensaísta e crítico?
ML: Creio que todas se articulem de modo prismático. Um jogo de espelhos em que as partes se convocam e se entrelaçam. Mas a poesia é o lugar de encontro. O coro de vozes. O começo do processo, o sentimento do mundo e suas intensas ressonâncias. A poesia em tudo. Mesmo quando em outro gênero literário ou endereço. As fronteiras caíram. A busca do silêncio e da profundidade me leva a ruídos e superfícies.
VB&M: ADEUS, PIRANDELLO, seu último romance, acaba de ser publicado pela Rua do Sabão, encerrando uma trilogia ambientada no Rio de Janeiro e composta também por O DOM DO CRIME e O BIBLIOTECÁRIO DO IMPERADOR. O que motivou a escrita dessa trilogia e como se deu a escolha dos protagonistas de cada um dos romances?
ML: Os livros formam uma trilogia carioca, ou fluminense. A cidade do Rio é o centro. Mas nada se limita ao ponto de partida. Uma geografia que cresce para dentro por assim dizer. Minha graduação foi em História. E a paixão da pesquisa me acompanhou durante muitos anos. Mas aqui também o impulso da poesia me capturou. Como disse alguém, fui tomado pelo sentimento do tempo. A poética da memória e das coisas perdidas. Assim, em O DOM DO CRIME, o processo criminal que dialoga com Machado de Assis e uma ideia de infinito, os limites entre literatura e história, e uma difusa questão metafísica sobre a existência de infinitos “Marcos” e de infinitas “Annas” dentro de uma entrevista que não terá fim. Em O BIBLIOTECÁRIO DO IMPERADOR, a dignidade do guardião dos livros de dom Pedro II, Inácio Augusto, que decide morrer, diante do atentado ao patrimônio do imperador, exilado na Europa. A partir de ADEUS, PIRANDELLO, uma discussão mais ampla sobre o amor e a pandemia (hoje) na antiga capital federal, a música de fundo e as flutuações da história, a partir de uma discussão geral sobre o teatro e os dramas internos de Pirandello. Nos três romances, a poesia e a ficção nascem no seio da história para ultrapassá-la. Helena, Inácio e Pirandello são, ao mesmo tempo, amigos e fantasmas.
VB&M: Você sempre foi publicado por grandes editoras. Como foi a experiência de ser editado por uma jovem, pequena e independente editora como a Rua do Sabão?
ML: Excepcional. Publiquei um livro de ensaios, CULTURA DA PAZ (2020), pela editora Oficina Raquel; além de livros de aforismos, poesia e tradução pela editora Patuá, intitulados TRÍVIA (2019), DOMÍNIOS DA INSÔNIA (2019), revisão de meus poemas reunidos, e MARGENS DA NOITE (2021), seleção e tradução de poesias de Ion Barbu. As pequenas editoras ajudam a reconstituir o sistema cultural, num momento dramático. Com ADEUS, PIRANDELLO, posso testemunhar minha alegria com a editora Rua do Sabão. Leonardo Garzaro e sua equipe são dotados de alta sensibilidade e profissionalismo, senso artístico e uma pegada contemporânea, diante de todos os desafios da produção e difusão do livro. Poderiam dar uma aula magistral à equipe econômica. Entre armas e livros, qual a dúvida? Fome de espírito e de metáfora, não de ódio e sangue.
VB&M: Você domina 20 idiomas e até criou uma língua artificial, a “laputar”. Qual sua relação com as línguas e o que o encanta no português brasileiro?
ML: Cara Anna, sou dominado pelos idiomas. É uma característica familiar. Meu avô paterno saiu do campo de concentração de Mauthausen porque aprendeu rapidamente o alemão. E outras línguas. Gosto de todas. Cada língua me fascina. Todas possuem um grau de beleza intransferível. Fujo do estudo de novas línguas, porque procuro horizontes diversos. E quando nego, quando me recuso a estudar outra língua, pronto: me vejo mergulhado nos mecanismos de uma língua que desejo aprender. Mas fujo atualmente. O português e o italiano fazem morada no meu coração. Gosto das raízes antigas da língua (portuguesa), de seu ecumenismo ibérico, do ponto de vista da semântica, uma língua com antigas ligações com o latim, última flor do Lácio, como disse o poeta, mas nem tão recente assim. Gosto da digital brasileira, das línguas indígenas que a atravessam, das línguas africanas. Gosto dessa forma avassaladora. O português enquanto língua de fronteira.
VB&M: Há dez anos você ocupa a cadeira número 15 da Academia Brasileira de Letras, presidindo a instituição desde 2018. Como o convívio com seus pares na ABL interfere na sua criação literária?
ML: Como disse Tristão, entrar para a Academia, sem que a Academia entre em você. Com meus colegas, um aprendizado contínuo entre gerações, entre horizontes plurais, uma escola de delicadeza cultural, aprendo com todos. No entanto, não há continuidade entre o que escrevo e a ABL. Várias decisões tomadas me levaram a uma clara separação. Escrever para mim é um ato solitário. O desafio foi encontrar a solidão. Mas se ela marca a minha vida, pode imaginar que não foi difícil estabelecer essa linha forte.
VB&M: Pode-se dizer que a vivência da ABL, que é uma instituição literária mas com presença forte na sociedade, tornou-o um homem mais propenso à ação? Perguntamos isso pois você tem escrito fortes artigos sobre a atualidade internacional e o momento brasileiro. Parece-nos que, atualmente, mais do que em outros tempos. Qual urgência o faz enfrentar o vil terreno da política, mais vil hoje do que em qualquer outra época?
ML: Uma época tremenda e dolorosa. A crise econômica desde meados da década passada que só fez aprofundar-se, antes e agora, na pandemia. Os tempos de hoje são abomináveis. Caminhamos entre as ruínas morais da República. A política tornou-se forma de agressão, dirigida sobretudo aos agentes culturais, aos professores, às instituições federais. Não foi em virtude da Academia, mas porque somos atacados diariamente por um país que parece outro, um tempo igualmente outro. E vejo isso desde as prisões que visitava antes da pandemia, os quilombos e as nações indígenas. O julgamento da História será implacável. Não será defensável sequer uma divisão entre ingênuos e oportunistas, porque o preço é alto demais.
VB&M: A experiência da pandemia e a reflexão sobre essa tragédia alteraram seu corpo fundamental da ética e das ideias políticas, a sua visão do mundo e da existência?
ML: Não tem sido fácil para ninguém. A fome voltou imensa. E todos nos multiplicamos em não sei quantas ações de cunho social e solidário. A imagem de certo ministro buscando salvar as árvores, abatidas, na selva e a língua atual da República me revoltam. Minha família viveu a Segunda Guerra, a tragédia do fascismo, a fome, numa Itália destroçada pelo conflito mundial e pela guerra civil. O sotaque protofascista é um insulto à memória dos meus familiares. Sem justiça social não pode haver paz. E a vacina terá de vir mais rapidamente e apenas através do Estado, com a defesa do SUS, da Universidade Pública. Mas deixo de responder porque escrevo um romance sobre o tema, Itália e Brasil. E as ideias estarão lá.