Miguel Sanches Neto é autor de uma vasta obra que inclui os romances A BÍBLIA DO CHE e A MÁQUINA DE MADEIRA (Companhia das Letras), UM AMOR ANARQUISTA e CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA (Record), e também Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná.
VB&M: Esses tempos de pandemia e quarentena mudaram sua visão da atividade e da carreira de escritor?
MSN: A atividade de escritor é a mesma, pois há décadas dedico todo o meu tempo disponível à leitura e à escrita. Escrever se tornou uma forma de ser, muito por conta de uns diários que mantenho desde 2007, minha ração literária básica. Os projetos de escrita são contínuos, e talvez agora até mais literários, porque mudou, e isso, sim, mudou muito, a produção de textos para jornais, revistas, sites e editoras. Então, aquela atividade mais profissional do escritor, no meu caso, minguou ao ponto de eu poder fazer da produção literária propriamente dita a minha única atividade de escrita. Com a pandemia, sem um aceno do mercado editorial, eu tenho feito da literatura (escrita e leitura) uma forma de segurança psicológica. Aquelas horas nesse universo me limpam das tensões do momento, ao mesmo tempo em que me ajudam a compreender melhor tudo o que está acontecendo. Do ponto de vista da essência do literário, a pandemia intensificou uma crença no humano que já estava em meus livros. Esta crença, que era um tanto desalentada, fez-me mais positiva.
VB&M: Como você vem atravessando esses meses devendo combinar em home office sua função de Reitor na Universidade Estadual de Ponta Grossa, a atividade literária e a família?
MSN: A atividade presencial da Universidade está mantida nas suas áreas cruciais. Temos o maior hospital da região, muitas licitações e processos em aberto, então há uma equipe mínima que mantém a rotina. Eu faço parte dessa equipe. Vou todos os dias e tenho reuniões na esfera administrativa e governamental. Mas quase não há mais atendimento a público, muitas atividades são remotas, e seguimos todos os procedimentos de segurança recomendados pelos órgãos de saúde. O gestor público neste momento não pode se afastar das suas responsabilidades. Já minha atividade de escritor acontece, como sempre aconteceu, entre 4h e 8h da manhã, e isso não foi afetado. O mais prejudicado foi o convívio familiar, pois ficou mais virtual a minha presença afetiva. Quando estou em casa, estou com os livros ou em videoconferências de trabalho. A literatura, para um escritor que se desdobra em outras atividades, nasce de um tempo precioso roubado de sua vida pessoal.
VB&M: Algum aprendizado desse período?
MSN: Muitos aprendizados como ser humano, sobre a descoberta da grande aventura da vida cotidiana, da viagem que fazemos ao redor de nossos espaços de ser, da importância do outro na nossa existência. Mas o principal deles foi um espírito de solidariedade que estava socialmente amortecido. Como instituição, recebemos ajuda espontânea de multinacionais, mas também de pessoas anônimas, e muitos professores e alunos da universidade e pessoas da comunidade se engajaram em projetos para enfrentar a pandemia. Este talvez seja o grande legado deste período dramático da humanidade: um maior sentimento de doação. Renasceu em vários grupos o conceito de dádiva. Mais do que doar algo, doar-se para algo, para que a sociedade funcione mesmo no quadro de descalabro político nacional.
VB&M: Qual esperança lhe é mais cara e você mais acalenta?
MSN: Que a ciência seja mais forte do que o obscurantismo medieval que nega um saber construído por séculos de civilização, e que este saber possa ser materializado rapidamente em uma vacina que funcione tanto contra o vírus quanto contra a ignorância de certos setores. E que aprendamos com a pós-pandemia a construir um cotidiano menos injusto, mais voltado para a nossa vida interior e para um consumo mais local a fim de valorizar a geração de renda ao nosso redor.