ESTÉTICA PRÓPRIA

Uma coisa boa na vida é descobrir e conhecer gente original, genuína, que rompe as etiquetas que se usam para categorizar pessoas – direita, esquerda, conservador, doidão – com todas as subclassificações que se seguem – religioso, família, nerd, malhador, etc. Eliel Vieira é assim, surpreende o tempo todo. Com diploma em Comércio Exterior e formação em Teologia, é editor, escritor e tradutor. Foi gerente de direitos estrangeiros na Editora Autêntica, depois de fazer traduções para casas de orientação católica, e apaixonado por música, com uma queda por heavy metal, produtor de eventos e turnês musicais, atividade à qual deu basta para poder ficar mais tempo com a mulher e os filhos. Está à frente da Estética Torta, jovem editora que fundou com a esposa e que, com apenas um ano e meio de existência, já publicou 30 títulos sobre música e cultura pop em geral. Nesta Conversa Com (A) Gente, ele comenta sua trajetória peculiar, o desafio de lançar a Estética Torta em plena pandemia com capital inicial de R$ 5.000 (emprestados pela família) e o sucesso alcançado com uma editora de nicho. Fala também dos aprendizados de sua passagem pela Autêntica, de sua experiência como escritor e produtor musical e conta ainda a tragicômica história da turnê brasileira do Dead Kennedys, cujo genial cartaz antibolsonarista que ele encomendou a Cristiano Suarez, fez um sucesso estrondoso em 2019 e culminou no cancelamento da turnê pela banda, levando a produtora do auge ao declínio em poucos dias. Como escritor, Eliel desenvolveu a exitosa biografia do músico Andre Matos, vocalista das bandas Viper e Shaman, falecido em 2019, e agora está escrevendo um livro de análise teológica da música do Iron Maiden, cujas letras são repletas de citações bíblicas, trechos de livros sagrados e citações de teólogos. Tem também uma tese rascunhada descrevendo Jair Bolsonaro como o anticristo profetizado no Novo Testamento, que ele gostaria de lançar no próximo ano, mas lamenta que o livro não caiba bem no catálogo da Estética Torta.

VB&M: Muito antes de abrir a Estética Torta, você passou pelo departamento de direitos estrangeiros da Autêntica, de onde saiu para atuar como produtor de eventos musicais. O que o fez voltar ao mercado editorial?

EV: Fiquei sete anos e meio produzindo shows e turnês de tudo quanto é artista. De shows acústicos pequenos a eventos em arenas; de shows delicados da Sandy a bandas bem extremas e barulhentas, no Brasil e em toda América Latina. Quando minha filha nasceu, em 2017, as viagens constantes passaram a ser uma coisa muito sacrificante. Com a chegada do segundo filho, no final de 2019, encerrei de vez as atividades da produtora de eventos. Acabou acontecendo num timing perfeito, já que todas as produtoras de eventos foram forçadas a parar meses depois, no começo de 2020, por causa da pandemia. Voltar a trabalhar com livros foi uma decisão natural. Eu sempre trabalhei com coisas que eu amo, livros estão no topo dos meus interesses, e eu já tinha trabalhado na área antes, na Autêntica. E antes da Autêntica também, como tradutor para a Paulus. Então foi uma decisão natural.

VB&M: Como produtor musical você quase trouxe ao Brasil a banda punk americana DEAD KENNEDYS, cujo cartaz da turnê brasileira causou tanta polêmica que os integrantes acabaram cancelando os shows no país. Conta essa história pra gente?

EV: Era uma turnê de quatro shows do Brasil. Os shows já estavam anunciados e vendendo bem quando decidimos criar um cartaz exclusivo para a turnê no Brasil, no molde dos cartazes provocadores que o Dead Kennedys tinha nos anos 80. Contratamos o ilustrador Cristiano Suarez e ele criou uma obra de arte: uma família “bozo”, vestida com camisas da seleção brasileira, os filhos com armas na mão, uma favela pegando fogo ao fundo, tanques de guerra e símbolos de extrema direita ornamentando o todo. Foi um estouro e viralizou instantaneamente. Um monte de personalidade compartilhou o cartaz, não apenas na cena musical. (Está publicado nas redes do Fernando Haddad até hoje.) Foi o principal assunto no dia em que saiu e, como consequência, vendemos mais de meio milhão de reais em ingressos em apenas vinte e quatro horas. Só no Facebook, o pôster recebeu 20 mil compartilhamentos em apenas duas horas. Tudo lindo até que a banda exigiu que a postagem fosse retirada do ar. Eles se assustaram com a repercussão e com as ameaças que começaram a receber de seguidores do atual presidente e optaram por cancelar os eventos e não vir ao país. Como produtora, fomos do céu ao inferno, com um prejuízo gigantesco no colo. Esse prejuízo foi determinante para o encerramento de nossas atividades alguns meses depois.

VB&M: A Estética Torta abriu suas portas em fevereiro de 2020 e já tem 30 livros publicados. Como se deu esse empreendimento em plena pandemia?

EV: Sim, a gente começou no primeiro mês de pandemia. Minha esposa (Camila) e eu, sozinhos. Estávamos sem capital nenhum, por termos fechado a produtora, e começamos a editora com um empréstimo familiar de R$5.000. O cenário era muito avesso, e nosso plano era muito modesto: como proprietária do negócio, a Camila cuidaria das finanças, administração e comunicação com os clientes. Eu ficaria com a seleção dos títulos, tradução, edição, marketing, embalagens e todo o resto. Uma empresa familiar, sem muitas pretensões. A gente fazia contas de quanto precisaríamos vender por mês para pagar aluguel, contas e plano de saúde. Mas deu muito certo. Identificamos uma fatia de mercado que não estava sendo explorada por ninguém e, um ano e meio depois, temos 30 títulos lançados, quatro funcionários fixos, vários prestadores de serviços constantes, uma base muito sólida e apaixonada de clientes, que compram nossas pré-vendas diretamente em nosso site, meses antes de os livros ficarem prontos, e um catálogo com títulos muito relevantes.

VB&M: Como você define o catálogo da Estética Torta?

EV: Era um catálogo muito limitado no começo: livros sobre bandas e artistas de heavy metal. Expandimos um pouco para artistas de rock e depois começamos a ter também títulos relacionados a filmes e séries. Se eu fosse definir, diria que é um catálogo que trabalha com paixões das pessoas. Nossos títulos são relacionados a temas pelos quais as pessoas são apaixonadas. Pessoas que tatuam seus ídolos na pele certamente vão se interessar por livros sobre eles.

VB&M: A sua experiência como produtor foi importante para a definição do rumo da editora, ou desde antes havia o sonho de publicar livros sobre música e cultura pop?

EV: Sim, foi bastante importante. Os shows me ensinaram que o público de heavy metal é o mais fiel que existe, e que esse público seria mais propenso a comprar pré-vendas, já que está acostumado a comprar ingressos para shows com meses (às vezes anos) de antecedência. Isso foi fundamental, pois começamos a editora sem um tostão no bolso e dependíamos de pré-vendas bem-sucedidas. A gente faz algumas pré-vendas muito extensas aqui na editora, que dificilmente funcionariam com outros públicos. Por exemplo, estamos trabalhando num quadrinho de uma banda brasileira cuja pré-venda foi anunciada em janeiro, com promessa de entrega do produto no fim deste ano. Foi um sucesso quando anunciamos e continua um sucesso até hoje.

VB&M: Durante seus anos de trabalho com Rejane Dias, você deve ter visto a Autêntica deixar progressivamente seu perfil mais acadêmico para se tornar uma grande editora de temas gerais. O que de mais fundamental difere o trabalho de editar para o público geral de uma atividade focada em nicho, como a da Estética Torta?

EV: Eu não participei desse processo de diversificação do catálogo na Autêntica. Quando eu entrei lá, já havia a Gutenberg e a Nemo para títulos de varejo. Eu também não era editor lá. Minha tarefa era cuidar de contratos e relatórios de direitos autorais. Mas trago para a Estética Torta muita coisa que eu aprendi no tempo que passei na Autêntica. E pessoas também. Três excelentes profissionais que trabalham com a gente na Estética Torta vieram de lá.

Sobre a segunda parte da pergunta, as diferenças entre editar para um público mais geral e para nichos específicos são muitas. Eu não saberia trabalhar com livros de varejo, que eu preciso convencer os leitores a dar uma chance ao livro, ter um preço de capa atrativo (baixo), com uma margem muito pequena, precisando fazer uma tiragem alta para fechar as contas. É um esforço muito grande, com retorno muito longo e muitas chances de fiasco. Trabalhar com nichos minimiza bastante os riscos, não apenas por não precisarmos criar um público para o livro em questão (ele já existe), e por ser mais fácil chegar nele, mas também porque podemos trabalhar com preços de capa maiores, que nos permitem imprimir tiragens mais baixas, e com maior segurança.

VB&M: Você publica o que gosta de ler?

EV: Quando começamos, era mais ou menos isso. Tínhamos que começar de algum lugar, e o catálogo era meio que um raio-X da minha mente e dos meus interesses. Atualmente, nosso leque de publicações está um pouco mais diverso. Por exemplo, acabamos de anunciar um livro de bastidores de Grey’s Anatomy, que é uma série que eu nunca vi. Na parte da música, temos livros de/sobre bandas das quais eu não gosto. Sei separar muito bem isso. A gente pensa muito sobre a relevância dos títulos para o mercado nacional e a capacidade que eles terão de performar nesse mercado tão competitivo, na pior crise que o país já experimentou. E temos tido muito mais acertos do que falhas nessas decisões.

VB&M: Qual livro da Estética Torta deu a você mais prazer durante o processo de edição e lançamento? O seu próprio livro?

EV: Sim! Ser o biógrafo de alguém tão importante como o Andre Matos foi uma honra. Ele era uma pessoa muito querida na cena musical brasileira, e houve uma comoção muito grande com seu precoce falecimento, em 2019. Produzi shows dele algumas vezes, e chegamos a conversar em algumas oportunidades sobre ajudá-lo a escrever um livro de memórias. Isso muito antes da Estética Torta. Se tinha alguém no Brasil que precisava ser biografado, era Andre Matos, porque ele era uma pessoa muito interessante: um metaleiro com dupla formação erudita (regência e piano clássico) e que falava uns sete idiomas. Infelizmente, ele partiu cedo demais, aos 47 anos. Alguns meses após sua morte, e com a Estética Torta já engatinhando, apresentei à família dele a ideia de uma biografia oficial. Eles toparam, eu mesmo escrevi, e foi um sucesso absoluto. Contando a primeira edição (já esgotada), a edição em inglês e a pré-venda de reimpressão que está rolando atualmente, já temos quase 4.000 cópias vendidas, com avaliação 5 estrelas na Amazon, Skoob e outros sites. Nada mau para um livro com preço de capa R$119,90. Editoras na França e Itália estão analisando lançar o livro em seus países, já que o Andre era idolatrado nesses lugares.

VB&M: Foi prazerosa a experiência de escritor? Vai repetir?

EV: Foi um caos escrever um livro de quase 500 páginas em apenas quatro meses, mas foi algo muito gostoso de fazer, e eu tive uma equipe muito boa trabalhando comigo. Atualmente, estou escrevendo um livro com análises teológicas de músicas do Iron Maiden. Embora a base de fãs da banda seja de pessoas totalmente avessas à religião, as letras da banda são repletas de trechos de livros sagrados, citações de importantes teólogos, e bebem bastante de temas religiosos, como céu/inferno, anjos/demônios, sentido da vida etc. Estou elaborando sobre isso, sempre que o tempo me permite. Devemos lançar ano que vem. Tenho uma formação não-concluída em teologia e já traduzi para algumas editoras da área. Aliás, tenho rascunhada aqui uma tese de que Jair Bolsonaro é o anticristo profetizado no Novo Testamento, que também escrevo aos poucos no tempo que sobra. Adoraria lançar ano que vem, por causa das eleições. Mas é um título que não cabe no catálogo da Estética Torta, e não acho que vou conseguir uma editora interessada até lá.

VB&M: Você considera sua formação em Comércio Exterior útil para a atividade de editor? Recomendaria para um jovem que sonhe em se tornar editor?

EV: É uma formação muito útil se a pessoa almeja trabalhar com o lado dos negócios internacionais, como prospecção de títulos de fora para lançamento no mercado doméstico, e vice-versa. Ela vai aprender os fundamentos do mercado de câmbio, sobre contratos e documentos internacionais, a cultura de negócios de determinados países, logística internacional, impostos, etc. Esse tipo de conhecimento foi muito bom para mim como produtor de eventos internacionais, e continua sendo agora, como editor. Se a pessoa almeja trabalhar mais com o texto, uma graduação em Letras seria muito mais adequada. Se pudesse voltar no tempo, seria minha opção.