Fechamos a semana com mais um conto escrito para a série “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, e publicado pela primeira vez em texto na coluna de Narrativas. Em “A maior janela do mundo”, Alessandro Thomé narra as desavenças entre dois vizinhos teimosos em um prédio.
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A maior janela do mundo
Alessandro Thomé
Todos os que eu tinha eram bem poucos. O homem do bar, a moça do mercadinho, os colegas do jogo de damas da praça da esquina, a Chata do Apartamento 32. Sim, até ela, velha, ranheta e insuportável, era uma presença que me dava um norte, pois muitos de meus dias foram planejados levando em consideração a Chata do Apartamento 32.
Para quase todos do prédio, a porta aberta do saguão trazia frescor. Não para a Chata do Apartamento 32. Para ela, a porta aberta trazia poeira. Então, nos dias em que eu acordava tendo como única e suposta missão planejar meu próprio funeral, eu insistia em uma esperança de que a vida valia alguma coisa, e ia caçar briga com a Chata do Apartamento 32. Eu abria a porta do saguão, tirava do quadro de aviso os sulfites com orações que ela pregava ali, colocava Tonico e Tinoco para cantar mais alto do que as rezas na TV da inimiga, soltava o Eustáquio para mijar no corredor.
O Eustáquio, cachorro bacana. Sim, eu tinha também o Eustáquio.
A Chata do Apartamento 32 vivia me dizendo que só mesmo um cachorro pra gostar de mim, que só mesmo um bando de velhos de praça pra gostar de mim, como se ela própria não fosse uma solitária. Em seu apartamento, moravam ela, Deus e todos os santos e anjos. Palavras dela. No meu apartamento, também nas palavras dela, morávamos apenas eu e Eustáquio. “Nem seu filho vem te visitar”, ela me lembrava com frequência, e era triste, para mim, não poder dizer que ela estava errada. As visitas eram uma raridade tão cambriana, que Eustáquio nunca conseguia reconhecer meu filho, e essa verdade era tão dura para mim, que eu nem lembrava à Chata do Apartamento 32 que essa era uma verdade também para ela, que tinha duas filhas, que eram igualmente tão presentes quantos políticos nos lugares em que são necessários.
Agora já faz alguns dias que a porta do saguão não fica aberta, e eu fico aqui enfurnado imaginando se a Chata do Apartamento 32 está lá confabulando com Deus e os santos e anjos a respeito de sua vitória sobre o mal que a porta aberta e o ar fresco representam. As rezas na TV e os hinos de louvor rompem as barreiras que nem o vírus consegue vencer e chegam em meus ouvidos como se fossem a marcha da vitória do exército inimigo a caminhar sobre cadáveres vencidos. Eu olho para Eustáquio, que não entende por que seus passeios cessaram, e penso no fato de eu nunca ter perguntado a ele se gosta ou não de Tonico e Tinoco. Eu respeito muito o Cachorro Eustáquio. Deveria ter me atentado a isso. Não quero ser para ele o que a Chata do Apartamento 32 é para mim.
“E eu nunca te abandonarei, amigão”, digo a ele, porque também não quero ser para ele o que meu filho é para mim.
Aqui do terceiro andar, as árvores da rua limitam a visão da janela, mas é nelas que ficam os pássaros, o que é ótimo. Posso olhá-los e admirá-los. Lá embaixo, na rua, tudo fechado há dias. Nada de carros, nem de gente gritando sua pretensão de vender mais e mais, nem os constantes gritos de “pega ladrão”. De vez em quando, à noite, enquanto os jornais cospem mais e mais mortes em meus ouvidos, ouço um bêbado passando lá embaixo e penso que no dia seguinte irei segui-lo para ver onde ele está conseguindo a bebida. Um pouco de conversa também seria bom, mesmo com um bêbado, que provavelmente tem mais coisas úteis a dizer do que os governantes que ficam na TV estorvando a arquitetura boa que os enquadra.
Durante o dia, Eustáquio e os pássaros na árvore me trazem algum alento. A comida não é muita, mesmo assim, vou testando restos na janela para ver se atraio alguns dos pássaros, uma boa distração. E também um bom treinamento. Não sei até onde essa pandemia nos levará, e talvez, daqui a alguns meses, táticas de caça sejam um conhecimento bastante útil. Mas Eustáquio atrapalha, porque ele late quando um dos pássaros chega atraído pelo meu agrado. Tenho tentado ensinar Eustáquio a latir quando a Chata do Apartamento 32 bota aquela gente do rádio para cantar as glórias ao Senhor no último volume, mas ele deve concordar com todo o restante dos moradores do prédio, que, ao que parece, entendem que nosso Senhor tem problemas auditivos ou que Ele nos mandará para o mais profundo e obscuro dos infernos se questionarmos aqueles que Lhe enviam graças tão magníficas, assim como faz a Chata do Apartamento 32.
A noite vem, os pássaros se vão, Deus aceita o descanso da Chata do Apartamento 32, e Eustáquio fica ao meu lado no sofá enquanto vejo na TV tudo o que há para ver: pandemia. Vou para a cama, e enquanto o sono me trai, o que tem sido corriqueiro, penso em meu filho. Ele tem me telefonado um pouco mais nestes últimos tempos. Quer saber se estou bem, se estou ficando em casa, se tenho comida e tudo o mais necessário. Não pergunta se tenho um abraço, um beijo, alguém para me dizer que tudo ficará bem. O fundamental é fundamental.
Ontem acordei e estranhei o silêncio da Chata do Apartamento 32. Nenhuma reza, nenhum cântico durante todo o dia. Desci ao saguão de entrada do prédio e não vi, no quadro de avisos, a oração que ela pregaria ali. Soltei Eustáquio no corredor, e ele correu pra lá e pra cá, batendo o rabo na parede e na porta da Chata do Apartamento 32. Nada, ela não apareceu para deflagrar a Terceira Guerra Mundial.
À noite, na cama, pensei mais nela do que em meu filho, e a amei por isso.
Pela manhã, as filhas da Chata do Apartamento 32 apareceram e choraram enquanto constatavam a mãe morta. Pelos estranhos e para mim desconhecidos caminhos da modernidade, meu filho ficou sabendo da morte de minha vizinha, e hoje veio me buscar. Está bonito ele com esses primeiros fios grisalhos aparecendo nos cabelos, e gosto de vê-lo assim seguro e imponente enquanto dirige o carro que vai deslizando pelo asfalto liso da rodovia.
Temos seis horas de viagem pela frente, e meu filho vai me contando todos os seus sucessos e falando sobre o quanto está sendo bom eu finalmente aceitar ir morar com ele, minha nora e meu neto.
Como está adulto o meu filho, e como vale a pena continuar lutando para que tenhamos mais filhos assim! Obrigado, Chata do Apartamento 32, por me proporcionar isto.
No banco de trás, Eustáquio tenta comer o vento.