O escritor Maurício Gomyde encerra a semana do blog com o conto “Invisível”, que compõe a audiossérie “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, publicado pela primeira vez em texto na coluna de Narrativas. Nesse conto, Gomyde dá voz a um gari que celebra o fim da quarentena com seu filho.
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Invisível
Maurício Gomyde
Hoje é o primeiro dia do novo mundo.
São seis da manhã, acabo de ouvir no radinho de pilha que não tem mais perigo e a travessia finalmente terminou. Acabaram com a, como é mesmo o nome dela? Quarentena, né? Quarentena é um nome bonito, me lembra quaresma. Mas eu gosto do que significa quaresma e não do que significa quarentena. Ainda bem que tem quaresma todo ano e eu peço a Deus pra não ter quarentena nunca mais.
A casa toda é seis por seis e nela moram três: eu, meu filho e o feioso. Ainda deitado, olho pro garoto do meu lado, na única cama que a gente tem. Ele é lindo, dorme sorrindo, sempre dormiu. Isso é bom, porque criança não nasceu pra preocupar com coisa que Deus não fez pra criança preocupar. Meu filho acredita que a travessia foi uma quaresma, porque eu fui esperto e expliquei que, só dessa vez, Deus pediu pra gente ficar a quaresma dentro de casa. Não podia sair pra nada, nem pra escola, que ele já não gosta muito, nem pra igreja, que ele gosta até demais. É um menino obediente, sabe?
Perdi a noção do tempo durante a travessia. Logo a segunda começou a parecer a terça, que parecia a quinta e o sábado, e tudo igualzinho ao domingo. Isso porque eu saía todo dia, imagine só pra quem ficou em casa. “Por que você também não fica?”, o garoto me perguntou. “Não conta pra ninguém, mas eu faço parte do time que vai salvar o planeta”, respondi. Ele passou a me olhar de um jeito arregalado, achando que eu sou tipo os heróis que tão na merendeira nova, presente do último Natal. Tem o Batman, o Super-Homem, a Mulher-Maravilha e um verde lá que não sei o nome. E agora tem eu. Meu filho quis saber qual é o meu superpoder e eu não menti: o poder de ser invisível. Ele acreditou na hora. É um menino obediente, sabe?
O motorista Antônio diz que nosso trabalho é essencial. O Antônio conhece palavras bonitas. A gente sempre aprende, tudo na vida tem um lado bom. Acho que até eu comecei a acreditar que sou mesmo o herói que vai combater um inimigo que também é invisível. São dois jeitos diferentes de ser invisível e o meu é ser um vírus da sociedade. Se me enxergassem, as pessoas colocariam máscara e luva, porque o medo de contagiar é maior do que qualquer outra coisa. Mas isso eu já sabia antes da quarentena.
Minha infância não foi boa que nem é a do meu filho. Um pouco antes do meu pai ser baleado na cabeça, quando eu tinha, sei lá, quando eu era menino, ele me deu de presente um tanque de guerra de plástico. Me disse que eu ia fazer uma coisa muito importante na vida, que eu ia lutar numa guerra. Mas eu nunca imaginei que isso fosse acontecer de verdade. Meu pai sempre gostou de armas, eu não. Hoje é o primeiro dia do novo mundo. Pendurado no tanque de guerra de metal, e usando meu superpoder de ninguém me ver, cruzo de novo a cidade. Tem muita gente nas ruas, uma quantidade que eu não via desde quando a travessia começou. O sol tá mais amarelo, o céu mais azul e a grama bem mais verde. Parece que todo mundo sorri mais, abraça mais, dá mais as mãos. Faz tudo mais. Tem música tocando pra todo lado.
O Antônio encosta o tanque e eu começo a ouvir aplausos. Demoro a entender que são pra mim, quem nunca foi aplaudido estranha. Vêm de um monte de gente nas janelas de um condomínio que eu sempre via as madames levando os cachorrinhos pra passear. Um deles um dia fez xixi no meu pé e a madame reclamou. Comigo. A gente nunca levou o feioso pra passear. O feioso vai e volta sozinho. É um cachorro obediente, sabe? Ele vive solto, ninguém quer ele. Meu filho já foi chamado de feioso na escola. Ele é tipo um vira-lata, como todos os que estudam lá. Mas vira-latas são resistentes e sobrevivem a qualquer travessia, não são como os cachorros das madames. Tudo na vida tem um lado bom.
A madame do cachorrinho mijão sai pelo portão do condomínio. Ela puxa conversa comigo pela primeira vez. Eu não entendo muito bem um monte de palavra, porque a madame é muito mais sabida que o Antônio. Ela termina com um muito obrigada por tudo e eu sorrio. Acho que perdi meu superpoder de ser invisível. Pego todos os sacos de lixo amontoados no chão, jogo na traseira do tanque de guerra. Eu me penduro, bato na lataria e o Antônio acelera. Ainda temos um dia cheio pela frente. Mas como o herói que volta pra casa depois da batalha e tem uma recompensa esperando, amanhã vou sair com meu filho e fazer tudo o que ele quiser: tomar picolé, ir na missa e andar pela cidade. Vamos levar o feioso.
A partir de hoje, ninguém mais é feio. Ninguém mais é invisível. Tudo na vida tem um lado bom.
É um novo mundo, eu sinto isso.
