HOMENAGEM A TRANSGERINA

MADAME TANGERINA, de Walcyr Carrasco, é a linda Narrativa que fecha a semana da VB&M e dá sequência ao projeto de publicar pela primeira vez em forma escrita os contos que autores da agência escreveram para a áudio-série “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, lançada em abril com o propósito de ajudar a aplacar os pavores provocados pela pandemia de Covid-19. A história emocionante de uma galinha da cor da tangerina, salva da panela para uma vida de madame, foi inspirada numa ave do próprio autor. Curioso é que, depois de escrito o conto, na vida real, descobriu-se que Madame Tangerina era na verdade um galo, apelidado então de Transgerina. Recentemente, devido a uma doença contagiosa, ele faleceu. Fica aqui nossa homenagem.

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MADAME TANGERINA

Walcyr Carrasco

Cresci com minhas irmãs galinhas numa granja, ao ar livre. Quando uma galinha começa a tomar corpo, já sente o coração apertado. Sua mãe, se já não tiver virado canja, sobe para o poleiro entristecida. A filha do dono da granja, que é humana, ficou feliz ao encorpar. Já queria arrumar namorado, e viver uma longa vida. Mas eu, ai de mim, quanto mais ganhava banhas, quanto mais minhas carnes macias se distribuíam sobre os ossos, mais claramente podia prever um futuro ensopada, frita ou no forno, recheada. Có có có, que lástima. Galinhas engordam para serem devoradas, eis tudo.

Não deu outra. Chegou o dia em que, quando eu ciscava tranquilamente, alguém me agarrou pelos pés. Bati as asas, cacarejei pedindo socorro. Minhas irmãs gritavam de volta, em grande alvoroço. Mas sem esperanças. Só diziam, no prático linguajar das galinhas: “adeus, adeus…não sabemos se há outra vida, mas nesta aqui você já era. Que a panela lhe seja leve!”

Fui levada a um galinheiro pouco povoado, onde só viviam mais duas irmãs penosas, da minha espécie, outras duas pintadinhas, de Angola, e um galo mal humorado. Era numa casa, com jardim e árvores, em um condomínio perto da floresta, como vim a saber. Logo vi. Galinheiro tão pequeno só se destinava a nos engordar. Havia mais perigos, como logo descobri. Uma irmã de Angola, atrevida, voara para fora do galinheiro, no desejo de conhecer melhor o mundo. Havia uma raposinha à espreita, vinda da floresta… e nhact… a devorou! A cachorra da casa, que eu vira de relance, era branca e bonita. Mas não amiga. Sempre tentava entrar em nossa residência, atacar os poleiros.

Eu nunca via o dono da casa. Só sabia, pela conversa do caseiro, segundo ele acreditava, nós, galinhas caipiras, éramos mais saborosas que as criadas em granjas fechadas. Mais saudáveis. Óbvio que mais saudável para ele. Ser depenada e fervida não me parecia nem um pouco saudável. (Também tenho horror de ser chamada de galinha caipira. Minhas penas alaranjadas e ocres, com toques rubros, me tornam muito sofisticada). Esperei, conformada, meu destino. Iniciei um relacionamento tempestuoso com o galo. Botei ovos, que eram arrebatados pelos humanos. Sonhava chocar e ver nascer meus pintinhos. Mas…cóhhhhh… esse dia nunca chegaria. A cada fim de semana, eu aguardava o momento de ser agarrada, depenada. Só tinha curiosidade sobre meu destino final. Seria ensopada? Frita no azeite fervente?  Particularmente, preferia ser assada. Em meu último momento, recheada, com as perninhas erguidas, ainda seria bela!

Mas houve um dia, no galinheiro, em que uma das de Angola, mais fofoqueira, veio com a notícia. Os humanos estavam apavorados. Havia um vírus perigoso, e para se resguardar, as pessoas tinham que ficar em casa, de quarentena. Pensei: “essa notícia só vai me prejudicar, pois sentirão mais fome e nem haverá sábado ou domingo, porque esses gordos vão ficar trancados, comendo o dia inteiro”. E me preparei para o pior.

O condomínio mergulhou no silêncio. Não se via mais ninguém na rua. Mas, para minha surpresa, o dono da casa (soube depois que era ele), veio nos alimentar no dia seguinte. Sei bem o que era: tédio. Jogava o milho, se fazia de amiguinho. Mas ao mesmo tempo avaliava: “esta aqui está mais gordinha”. Cóhhhh… a mais gordinha era eu!

Vinha sempre com um menino, que queria me pegar no colo. Eu fugia. Não por medo. Mas se pretendiam roer meus ossos, não ia fingir que era amiga. Só que, um dia, o humano mais velho disse: “deixa que eu pego a galinha pra você”. E me perseguiu. Eu corri, tentei voar, mas minhas asas só me permitem alguns rasantes. Ele me pegou. Tentei bicar, mas ele estava de casaco. Quando me abraçou, senti seu corpo quentinho, e me acalmei. Chamou o menino: ” vem cá, bota a mão nas penas dela”. O menino me acariciou e senti seus dedos me tateando com carinho. Até gostei. O garoto pediu: “Dá ela pra mim”. O pai me avaliou, certamente pensando na minha carne macia. Espertamente, eu fiz cohhh…cohhh… humanos sempre são seduzidos por gestos de carinho de um bicho, ainda mais de uma galinha bonita. Decidiu: “É sua”. Arrepiei as penas: o que significava tudo isso? O menino perguntou: “Qual é o nome dela?” O pai avaliou minhas penas e respondeu: “Tangerina”. O menino gritou: “Tangerina!”

E me levaram embora daquele galinheiro. A quarentena pra mim fez bem. Só por causa dela, me conheceram pessoalmente. Agora vivo na sala, em sofás macios, muito melhores que aqueles poleiros duros. Sem medo de raposas. E a cachorra assassina está proibida de entrar em casa. Sou uma galinha do lar! Nunca mais irei para a panela.

Sou Madame Tangerina!