Por Maria José Silveira
Primeiro dia Céu e sol exuberantes, vou caminhar. Poucas pessoas nas ruas e me vejo tentando passar longe delas. Um cara vindo oposto a mim aperta o nariz; mudo de calçada. À frente, mulheres conversam; distancio-me. Um senhor de máscara atravessa a rua; outra vez mudo de calçada. Quatro velhinhos conversando ao ar livre; outra mudança. Que ziguezague constrangedor! E que graça tem caminhar como em terreno minado onde as minas são, para mim, os outros, e para eles, eu? Não quero ser essa pessoa-mina. Melhor ficar em casa.
Oitavo dia Anda inesgotável minha ânsia por notícias, embora sejam todas exasperantes. Amanheço com o celular na mão. Tomo café olhando para ele. Faço algumas coisinhas e volto para ele. Escrevo duas, três frases à toa, e volto. Almoço, e outra vez olho. Vou para o computador, e volto para ele. A cada volta, lá se vão 20, 40 minutos. A tarde inteira assim. Antes de deitar, outra vez ele. Agora cansei. Arremesso-o longe, e venho me postar de onde não sairei até, digamos, dez minutos?
Décimo dia Estive lavando as frutas que Felipe comprou. Todas com cascas que podem ser lavadas e esfregadas com água e sabão. Goiabas esverdeadas. Peras em matizes de verde, exibindo manchas douradas ou avermelhadas. Mamões começando a mostrar seus amarelos, prestes a adquirir o mostarda da madurez. Mangas em combinações diferenciadas de verde escuro e claro, amarelo claro escurecendo para chegar aos vermelhos que vão do rosado ao carmim: lindas. Limões sem maiores graças, tons de verde esmaecido. Laranjas alaranjadas, fiéis a sua cor, no que fazem muito bem. E os kiwis? Olho pra cara deles. Lavo ou não essas feiurinhas peludas? Como não? Por que discriminá-los? Água e sabão neles.
Décimo-segundo dia Carreatas bolsonaristas pedindo o fim do confinamento me abalaram. A ignorância suicida e assassina, que empesteia nossas cidades como um segundo vírus, é sinal do aprofundamento de uma loucura à solta que povoa de sombras nosso presente e futuro. Em momentos assim, como escrever? Melhor por roupa na máquina para lavar e fazer faxina na cozinha. Cansar o corpo, tirar a mente do desamparo e focá-la na ordem e limpeza da casa. Pelo menos isso ainda se pode fazer.
Vigésimo dia Assim que acordei – longe de ser muito cedo, ando acordando bem mais tarde do que antes. Assim que acordei, senti o silêncio. Abri a janela. Rua vazia, calçada vazias. Nenhum barulho de carro, nenhuma risada de criança, nenhum cachorro latindo. Os números de mortos e infectados aumentam todos os dias. Mortos que soltam seus ais! na solidão e são enterrados sem velórios. Terá, por fim, minha rua compreendido que nossa única proteção é nossa casa?
Vigésimo primeiro-dia Cientistas constataram: a Terra está tremendo menos. As vibrações provocadas pela circulação nas ruas e estradas diminuíram, a crosta terrestre se mexe menos. A poluição também diminuiu – algo que se percebe a olho nu nas cidades, e se comprova com fotos dos satélites. Parece contraditório – o coronavírus ataca a respiração dos humanos, mas a Terra está respirando melhor. Tem beleza e um recado nisso.
Vigésimo sétimo dia A escrita como tábua de salvação. Acho triste. A escrita não deveria ser isso. No entanto, é. Da janela, a rua deserta. O verde escuro da castanheira da esquina contrasta com o perfil da cidade e o céu luminoso. Faz sol no friozinho aconchegante de outono. Na varanda do prédio à frente, a moça de biquíni deita-se no tapete estendido e toma sol; no andar de baixo, a mãe põe a banheirinha de plástico azul para seu bebê; mais abaixo, a senhora e a máquina de costura na varanda para sua dose de vitamina D. Faço minha a graça desse cotidiano apaziguado. Não tenho varanda, mas à tarde, quando o sol vier bater do meu lado, me estenderei no sofá e me farei parte da boa-vontade da minha rua.
Trigésimo dia A cada dia, novo recorde de pessoas mortas e pessoas infectadas. É recorde, também, o número de pessoas saindo de casa. Não por necessidades prementes. Ou porque estão sem teto. Falo dos milhares que saem porque acreditam no que o presidente diz. Cegueira contagiante de manada que segue o chefe. É fácil ser manada. É fácil seguir um chefe. Sempre tivemos pessoas assim, mas eis nossa própria parcela de cegueira: não percebemos que tínhamos vizinhos, amigos, parentes assim. Tínhamos. Temos. Milhões capazes de eleger um ser execrável para o governo. E então nos espantamos: de que chão brotaram? Do nosso mesmo chão, queridos. Do nosso próprio chão. Foi cegueira nossa não tê-los vistos antes.
Quadragésimo-terceiro dia Entra um vento frio, e sei que basta me levantar e fechar a janela. Mas não faço isso. Leio um livro cansativo, mas não o abandono. Por quê? Falta de ânimo para me erguer e pegar outro? Não só. Algo ainda me prende nele. Não a vontade de saber para onde vai me levar, o autor já mostrou que seu livro é um círculo que vai me fechar em um mesmo lugar. Por quê, então? Por um fiozinho de curiosidade que ainda me pega; seja como for, hoje termino. Mas antes, please, um barra de chocolate 60% de cacau, se não for pedir muito.
Quadragésimo-quinto dia Notícias da nossa destruição como país: jovens negros assassinados por um nada; genocídio dos indígenas avançando como se estivéssemos outra vez no passado, dando a exata medida de nossa insanável selvageria; desmatamento na Amazônia cresceu 51% desde março, a tragédia anunciada se realizando; mulheres assassinadas em casa, quase o dobro; a taxa de confinamento cai no mesmo ritmo em que sobem a das mortes. Até hoje, 5.017 pessoas morreram mas sem nem piscar o olho, Bolsonaro abre a boca para expelir sua declaração histórica: “E daí? Vou fazer o quê?”
Quadragésimo sétimo dia Dia de saber que centenas de paulistanos ficaram nas filas da Caixa Econômica Federal, durante a madrugada, para receber os 600,00 reais do auxílio emergencial prometido e atrasado, enquanto o Senhor Detergente Onyx diz que isso se deve à “natureza e cultura” dos brasileiros; dia de ler que o ministro zumbi da saúde, com mais de duas semanas de sonolento exercício, teve que receber dicas dos governadores sobre onde comprar respiradores. Dia também de lavar roupar e higienizar frutas. Dia que o Felipe acordou às 6 da manhã e não conseguiu mais dormir. Vejamos o que nos trará a tarde.
Quadragésimo-oitavo dia: Perguntaram à Margaret Mead, uma dos fundadores da Antropologia, qual teria sido o primeiro sinal de civilização. “Um fêmur cicatrizado de 15 mil anos”, foi a resposta. Antes, quem quebrasse uma perna não tinha condições de cuidar de si mesmo. Não sobreviveria. Se um fêmur foi cicatrizado é porque alguém cuidou dessa pessoa. Não a abandonou. “O que nos distingue como civilização é cuidar uns dos outros.”
Quadragésimo nono dia O menino de rua passa cantando. Não é a primeira vez que o escuto, voz já grossa, bonita. Hoje, quando atinei, ele estava no final da rua. Extraordinário seu canto solto ao vento. Tomara que eu volte a escutá-lo.
Quinquagésimo segundo dia Como se conta o tempo quando os dias são feitos com a matéria indiferente do isolamento? Das distâncias entre os corpos? Das máscaras, luvas, calças e mangas compridas mesmo em um momento em que, na rua, o único corpo humano seja o nosso? Das noites vazadas na frente de uma tela com imagens em movimento neste momento de movimentos impossíveis? Do cotidiano que ficou lá atrás sem poder entrar aqui dentro? Da chegada de um futuro que talvez seja pior do que o desnaturado presente? Como se conta o tempo quando os dias são feitos com a matéria obsedante das mesmas notícias, dos mesmos assuntos, e quando o amanhã não será outro dia mas outra vez o mesmo dia, com as notícias falando, ainda que de formas diferentes, da mesma necropolítica dos sempre inacreditáveis atos e afirmações desse desgoverno?
Quinquagésimo quarto dia Hoje o dia começou mal. Um corpo de mulher estendido na calçada, e ninguém a seu lado. Moradora do prédio na frente do meu, mais à direita, e ninguém a seu lado. O corpo já coberto com um tipo de papel metalizado prata, de onde emergia a mãozinha inerte, e ninguém a seu lado. Na calçada, três policiais cercaram o espaço, ali ficaram até o corpo ser recolhido, e ninguém a seu lado. Na pandemia, morre-se também de solidão.
Quinquagésimo sexto dia Domingo e o sino da igreja próxima me desperta. Não me queixo. Gosto do bimbalhar de um sino. Traz uma emoção de infância, suponho. O cachorro da vizinhança late alto e isso, sim, é irritante. Paciência, não perderei meu humor. Converso com filhos e netos pela ligação com vídeo, a alegria. Depois, lá vou eu por roupa na máquina. Sem pressa. Felipe fará uma pasta a putanesca, tomaremos nosso drinque, e depois veremos o que a tarde nos trará.
Quinguagésimo sexto dia Aldyr Blanc escreveu antes: “O Brazil está matando o Brasil.” E Sergio Sant´Anna, em seu último post no Facebook: “O Brasil é um filme de terror.”
Quinquagésimo oitavo dia Ontem choveu. Chuvinha fraca. Céu nublado. Dia bom para ficar em casa, pensei, se tivesse a opção de sair. Sem opção, até um dia aconchegante é vão. Já hoje é um belo dia do outono. Penso: esse grandioso céu puro azul de São Paulo que em maio costuma ser o céu de um dia comum, na pandemia também é vão. Não, penso em seguida. Mesmo vista de uma janela, a beleza nunca é vã. Admire-a ou não, ela está lá. Melhor logo reconhecê-la e fazer dela algo também seu.
Quinquagésimo nono dia A cada absurdo, a expectativa acelera: ele cai agora? Já fizemos essa pergunta tantas vezes que não deveríamos alimentar ilusão nenhuma. A panela queima como capim seco no fogo, e os cozinheiros se justificam: enquanto a coisa não se alastrar pela casa toda, aguentemos. E a vida confinada segue. Meu cabelo cresce e me agrisalha. Caso não exista o verbo agrisalhar, relevem minha falha. Num confinamento é preciso relevar tanta coisa, que mais uma terá menos que o peso de uma pluma.
Sexagésimo quarto dia Hoje quis escrever um conto. Não deu. Minha imaginação não consegue atravessar a muralha de mais de 16 mil mortos e 240 mil infectados. Na parte de dentro do tórax, algo dá um nó. Até agora, é verdade, estive trabalhando em um romance. Mas é que ele estava praticamente pronto, portanto o universo do que estou contando já estava lá. Nesses dias de confinamento, fiz a parte talvez mais tranquila da sua escrita: trabalhar sobre o que está escrito. Burilar, acrescentar, tirar, pintar de outra cor. Abrir uma janela, aumentar a varanda, dividir o quarto em dois, pequenas reformas na casa construída. No pequeno mundo já contido ali. Começar algo novo, aí que são elas. Neste momento, parece quase impossível. A rigor, já tenho a primeiríssima ideia do que pretendo fazer no meu próximo romance – o momento primal da coisa -, e pelo menos posso começar a pesquisa. Essa pequenina ideia requer pesquisa até para saber se é viável ou não. Hora, então, de arregaçar a manga, menina. Você tem a manhã à sua frente.
Sexagésimo sexto dia Ontem, mais de mil mortos em 24 horas, por covid. E ainda ontem, no Rio, a polícia matou João Pedro, 14 anos, negro, dentro de sua própria casa.
Sexagésimo oitavo dia Esses dias luminosos de maio me sobem à cabeça. Debruço-me um pouco na janela. Fosse eu a bailarina que sonhei ser quando menina convocaria os bailarinos de meu bairro. Fones de ouvido ligados na mesma música, máscaras nos rostos, e lá iríamos nós inventando um balé pelas ruas, alegrando o povo que se aproximasse das janelas.
Septuagésimo dia Chegamos a esta marca dos 70 dias com 1.001 mortes em 24 horas e 330.890 infectados (dados oficiais e subnotificados). Chegamos com o vídeo da miséria humana dos componentes ministeriais em sua reunião. Chegamos aqui tristíssimos. E hoje, sábado chuvoso, o jornal chegou encharcado e foi direto para o lixo. Não me importo. Sei que as notícias são as piores possíveis. Ontem Felipe fez o supermercado e passei bons momentos entre as frutas e os legumes. Uso “bons momentos” aí como expressão irônica, mas acho bom poder usar o adjetivo bom em alguma coisa. E para falar verdade, apesar de tudo, tem muita coisa boa por aí e por aqui. Bons filmes, bons livros, boa comida no final de semana, boas conversas. Um bom dia também quando o trabalho rende. Coisas boas também acontecem, meu povo. Coletivas ou particulares. Coisas boas. Acontecem.
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Maria José Silveira é romancista, tradutora e editora. Escreveu MARIA ALTAMIRA (Instante) e A MÃE DA MÃE DE SUA MÃE E SUAS FILHAS (Globo Livros), entre outros romances.