Por Domingos Pellegrini
Folheio a Bíblia, que rapazola li em voz baixa do Gênesis ao Apocalipse, para ouvir o ritmo versicular que então me encantava, só começando a realmente atentar aos fatos a partir de Jesus. Depois leria a biografia Jesus, de Leminski (Editora Brasiliense) e saberia que Jesus foi o único famoso do seu tempo, como se diria hoje, a merecer quatro biografias, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, sem ter pago para isso ou sustentado escribas, como faziam os poderosos.
Mais extraordinário é que os quatro evangelhos foram escritos por homens que não conheceram Jesus, entre 65 e 90 anos depois de sua morte. Tornou-se figura tão lembrada e falada que mereceu ter sua vida contada como uma grande aventura de anunciação, transformação e redenção. Anunciou e mostrou uma nova vida aqui mesmo, cada um amando o próximo como a si mesmo, o que é muuuito difícil, e praticando condutas tais que há que concordar com Ghandi: todos os problemas da Humanidade estariam resolvidos se todos simplesmente seguissem os ensinamentos de Jesus.
Como se perderam ou foram perdidos os textos originais, a Bíblia que conhecemos é tradução portuguesa da tradução latina da tradução grega do aramaico, copiadas por monges escribas sonolentos à luz de vela. É o que aponta Stephen Mitchell em O Evangelho Segundo Jesus (Imago Editora), revelando equívocos como João Batista comer gafanhotos, que em aramaico tem grafia semelhante a alcachofras… Além desses equívocos pontuais, a Bíblia também recebeu adulterações, supressões e inserções. Por exemplo a frase “Pedro, tu és pedra e sobre ti erguerei minha igreja”, dita por quem só pregou a céu aberto e não falou de igreja, além de Pedro/pedra ser seu único trocadilho, muito conveniente para quem seria o primeiro papa.
Comparando as traduções grega e latina, com precisa e preciosa análise estilística dos textos, Mitchell mostra que também são grandes inserções na narrativa original a fuga de Maria e José para o Egito, o nascimento na manjedoura e os reis magos. Até José teria sido criado para honrar a gravidez da moça Maria mãe de um gênio. Os doutores do Templo decerto adotaram o menino que um dia os emudeceu, daí porque os evangelhos nada contam de sua vida desde a visita ao Templo, ainda menino, até surgir dizendo-se filho de Deus e nos dizendo irmãos.
Em A Ressurreição de Jesus Cristo (Editora Record), Og Mandino aponta: porque a Guarda do Templo não reagiu quando Jesus expulsou a relhadas e pontapés os vendilhões que eram grande fonte de renda dos sacerdotes? Porque ele tinha saído do próprio Templo para então ser quem era, praticar seu “sou o que sou”:
O primeiro a separar igreja e Estado: – Dai a César…
O liberador: – O sábado foi feito para os homens…
O pioneiro feminista: – Atire a primeira pedra…
O psicólogo: – Mal é o que sai da boca…
O poeta: – Olhai os lírios do campo…
O supremo político: – Pai, perdoai-os pois não sabem o que fazem…
Depois de apontar enxertos e distorções na Bíblia, Mitchell porém considera que as parábolas e a conduta de Jesus são tão intensamente criativas e originais que não é preciso mais provas, além das estilísticas, de que ele existiu e foi extraordinário, mesmo que não tenha feito milagres. Estes são sempre invocados, pelos negacionistas da existência de Jesus, como evidências de que terá sido não um homem mas um mito.
Quando homem maduro reli na Bíblia sua vida, só o cheiro de arroz integral queimado, que eu deixara cozinhando, me fez largar o livro dos livros. Agora, relendo as parábolas e revendo a conduta de Jesus, salta de seus atos e palavras sua luminosa integridade apesar de quaisquer distorções e inclusive atuais distorções, pois continua a ser usado para enriquecimento de igrejas e lutas religiosas. E só essa integridade já é um milagre.
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Domingos Pellegrini é jornalista, romancista, poeta e autor de MULHERES ESMERALDAS e O CASO DA CHÁCARA CHÃO.