Na coluna Narrativas de nosso blog, sugerimos a leitura dos dois primeiros capítulos do ainda inédito e divertidíssimo novo romance de Márcio Paschoal, JOÃO ANTÔNIO E OS BEE GEES, homenagem ao célebre autor de “Malagueta, Perus e Bacanaço”.
COBERTURA 702
Era uma tarde igual a tantas outras, 31 de outubro de 1996. Fazia já quase um mês que ele sumira. Os amigos e a família mostravam preocupação. De acordo com o irmão, ele costumava agir assim de vez em quando, embora esse silêncio prolongado estivesse causando estranheza, mesmo para um cara excêntrico como ele.
Em Copacabana, na Praça Serzedelo Correia, os moradores do edifício número 15 A começaram a sentir o mau cheiro que vinha da janela do apartamento do sétimo andar, cobertura 702. Depois de tocarem com insistência a campainha e baterem na porta, a polícia foi finalmente chamada.
Após o arrombamento, a delegada da 12ª DP de Copacabana pôde constatar o óbito. O cadáver, de um homem branco, aparentando sessenta anos, camiseta velha, um jogging surrado, pés descalços e deitado sobre a cama de um dos quartos, encontrava-se em adiantado estado de putrefação. Como a janela estivesse aberta, alguns pombos haviam entrado, enquanto as moscas se amontoavam sobre o corpo em decomposição. Até na hora da morte, ele fugia da rotina e passava a sensação de que morrera sem ter morrido como de costume, igual a uma cena inacabada de um filme de terror.
Mais tarde, com o reconhecimento da família, a imprensa notificou o falecimento do escritor sumido. Os peritos confirmaram sua morte ocorrida há mais de vinte dias. Na funerária, antes do enterro, havia alguns esquifes dispostos junto ao do escritor. Os familiares reconheceram o caixão dele pelo forte odor, já que seu corpo estava em processo de esqueletização. Nada mais importava ou chocava, o que sobrara era espiritual.
Se ele ainda estivesse vivo, iria se sentir menos sozinho e abandonado. Era um autor que focalizava as histórias da periferia da cidade, sofredora de sempre com a segregação social. Uma de suas questões: denunciar na sua literatura marginal todos os marginais possíveis. O escritor falecido era do tipo que amava ou odiava com igual intensidade, não havendo concessões. Quem pudesse conviver com ele e entender o jeito estranho e peculiar, certamente viveria dando menos valor aos patetismos da vida.
LAVÍNIA
– Hoje à tarde vou estar sozinha em casa.
Lavínia tinha péssimas intenções. Seu casamento andava em crise, me confidenciara. Lavínia tinha um corpaço, eu não ia desprezar.
Duas da tarde lá estava eu. Razoavelmente bem vestido e de banho tomado. Perfume, não. Melhor cheiro de sabonete. Lavínia abriu a porta, de camisola curta, cabelos presos. Linda de morrer. Foi tudo muito rápido e previsível. Ela colocou uma música lenta e me chamou para dançar. Eram os Bee Gees. “Massachusetts”. Alguns passos de dança desajeitados e um beijo de língua. Mãos nos peitos, roupas arrancadas e ali mesmo trepamos, no tapete da sala.
– Tem certeza de que seu marido não vai aparecer?
– Esquece isso, continua, gostoso…
Aquele “gostoso” me animou. Sou movido a incentivos. Fiquei excitado. Mais depressa do que o meu normal. Na certa, Lavínia havia esperado por mais ação e o meu gozo precoce deve tê-la deixado decepcionada. Puta. Eu até poderia me justificar: além da sensação de perigo, havia a desculpa universal da primeira vez, quando o tesão é incontrolável. Ainda assim, Lavínia não se queixou.
– Vou no banheiro e volto já, gostoso.
Agora não sabia se aquele “gostoso” era irônico. Coloquei a cueca e subi as calças. Tinha acabado de me ajeitar quando ouvi barulho de chave na porta. Entrava alguém. Era o marido traído que me olhava, surpreso, no meio da sala. Ao fundo os Bee Gees, “To Love Somebody”.
– Quem é você?
Fiquei sem resposta. Melhor calado que gago. Hesitei o suficiente para ficarmos os dois constrangidos.
– Vim ver a Lavínia!
Menos mal que não respondi, sincero: “Vim comer a Lavínia”…
Ao escutar a voz do marido, Lavínia já chegava na sala com a desculpa pronta.
– Este é o rapaz que veio ver o nosso computador.
– Ué, ele está ruim?
– Pois é, era eu que não estava sabendo ligar. Vergonha…
Eu só queria sumir. O marido traído fez cara de incrédulo. Lavínia prosseguiu, com a naturalidade de quem não havia cometido nenhum deslize.
– Aproveita que você chegou e paga o rapaz. Quanto foi mesmo o serviço, moço?
Inacreditável. Ainda ia receber grana. Entrei no clima.
– Foi nada, não, respondi. Servicinho à toa…
Sempre fui modesto e possuía autocrítica, faltou-me coragem para cobrar pelo trabalho. Era demais. Mas o marido insistia.
– Faço questão, trabalho é trabalho.
Lavínia ainda comentou que combinara vinte pratas a visita…
Agradeci, guardei o dinheiro e saí calado, ainda com as pernas trêmulas.
Enquanto ia pela calçada, tentava entender. Já perto da esquina, avistei Reinaldo Caveirinha, velho amigo, tomando uma gelada no bar Café Benfica.
– Rapaz, você não vai acreditar…
Reinaldo ouviu a história meio descrente, dando uns goles e achando engraçado. Penso que não acreditou numa palavra. Eu também não me levaria a sério. Conversa de bar. Deve ter imaginado que eu havia inventado aquilo só para bancar o fodão, mas que, no fundo, não comia ninguém. Eu, se ouvisse aquela história de outro, também acharia.
Como Reinaldo sabia da minha vontade de ser escritor, mudou de assunto e me falou de um autor que aparecia sempre no Banco. Reinaldo Caveirinha era caixa do Banco do Brasil.
– Como é o nome dele?
Quando ele me disse que era um tal de João Antônio, minhas pernas, que haviam parado de tremer há pouco, recomeçaram a bambear.
– O quê!? João Antônio, o do “Malagueta, Perus e Bacanaço”?
Reinaldo nunca ouvira falar no nome dele, só sabia que era conhecido. Os meus amigos do Café Benfica me consideravam o “intelectual” da turma. Puro deboche. Ainda assim, eu gostava. Ou fingia gostar. No Benfica tinha de tudo: pessoas cultas, indigentes, solitários, solteiros, casados, chatos, ricos, pobres, a maioria bêbada ou atrás de um porre. Além de encher a cara de vez em quando, eu também almejava me tornar um autor renomado. Do calibre de João Antônio. Ele era foda, tinha lido dois livros dele: além de “Malagueta…”, um outro de contos “Leão de Chácara”. Um cara que escrevia sobre marginalidades de um jeito que levava a gente a querer se tornar outsider, de alguma forma. O submundo que ele narrava festejava a periferia, glorificava as prostitutas, salvaguardava biscateiros, mendigos, bichas, pivetes, gente dos botecos e favelas. Eu, particularmente, me identificava com os tais malandros da sinuca. Malagueta era um sinuqueiro desses, malabarista do jogo da vida.
– Malagueta, jogador de sinuca? Nunca ouvi falar…
Não importava, eu tinha a exata noção de quem era João Antônio, modelo de autor rebelde, desvinculado dessa máfia malsã de literatos, um fora da lei, proscrito da escrita, Charles Anjo 45 das letras… e que coincidência, o cara ali, perto de mim, correntista da agência do Banco do Brasil. Ainda brinquei com Caveirinha:
– Pra você o João Antônio é só um correntista, para mim, o maior contista que já li.
Pedi-lhe para me apresentar a ele. Implorei. Como eu poderia fazer para falar com ele?
– Você não tem algumas histórias escritas? Tira uma cópia, me dá que eu levo pro Banco para quando ele aparecer por lá.
Quem sabe o João visse em mim um novo talento. Depois da trepada com Lavínia, já estava acreditando em tudo. Até mesmo que consertava computadores.
Chegando em casa, recado da Lavínia: que eu voltasse lá amanhã, o computador voltara a apresentar defeito. Mulher insaciável, maquiavélica. Ou melhor, somente maquiavélica, não poderia estar saciada com a nossa transa rapidinha, duração de uma ou duas músicas dos Bee Gees.
Não tinha cabeça agora para ela. Foco na preparação dos textos para o Caveirinha mostrar ao João.
Tive a ideia de escrever um especialmente para ele, que falasse da corriola da sinuca e da periferia. A dificuldade era minha falta de intimidade com o jogo. Jogava mal, inclusive. Nenhuma paciência para ficar a mirar aquelas bolas. Era o rei das quinas, não entrava uma na caçapa. Talvez escrevesse sobre um jogador horroroso que contava com a ajuda de um anjo da guarda. Isso. Mistura de marginal e místico. O problema era João Antônio não ter afinidade com misticismos. Ao menos era o que eu imaginava.
O dia inteiro tentando, algumas frases boas, mas nada que me encorajasse a colocar-me à prova com João. Era mesmo uma baita responsabilidade. Novamente Lavínia me chamava, cobrando minha presença.
– Amanhã vou te esperar, gostoso. Estarei sozinha… Advinha a música que estou ouvindo agora…
Ao colocar “Massachusetts” no telefone para que eu escutasse, me veio a certeza: Lavínia era uma tarada. Não por mim, claro, pelos Bee Gees.