JOSÉ ROBERTO WALKER LÊ MÁRIO DE ANDRADE

Concentrado na pesquisa para seu próximo romance, provisoriamente intitulado CAFÉ, o escritor José Roberto Walker disserta sobre sua leitura do segundo livro de poesia de Mário de Andrade, “Pauliceia Desvairada” (Casa Mayença, 1922). Que mestre, o Walker.

Nos últimos meses ando mergulhado no Brasil dos anos 1920, parte do trabalho de pesquisa para um romance, provisoriamente denominado CAFÉ. Nele, a ação está centrada nos vinte e três dias do mês de julho de 1924, quando São Paulo foi tomada por uma revolução e severamente bombardeada, tanto pelos revoltosos, quanto pelo governo de Arthur Bernardes. Resultou em mais de 700 mortes e milhares de feridos. 

Tenho procurado ler com atenção a literatura desse período, coisa que faço há um bom tempo. Já conhecia bem Oswald de Andrade, personagem do meu romance NEVE NA MANHÃ DE SÃO PAULO e muitos dos primeiros modernistas, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchi,  principalmente. Precisava rever o Mário de Andrade, que li há muitos anos.

“Pauliceia Desvairada”, seu segundo livro de poesia, é sob muitos aspectos o marco inicial do modernismo literário e para o autor, sem dúvida, um livro de rupturas. Mário compôs um livro radicalmente diferente do seu de estreia, “Há uma gota de sangue em cada poema”, ainda parnasiano e tradicional. Ou passadista, como eles diziam na época. “Pauliceia” tem um compromisso de rompimento. Quer chocar o leitor comum. 

O livro se abre com o famoso “Prefácio interessantíssimo” uma espécie de tomada de posição e carta de princípios em prosa. A sua menção a Bilac resume um pouco o que ele busca: “Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto.”

O livro, ao romper com a subjetividade típica da poesia parnasiana e adotar um tom épico, faz a cidade de São Paulo expressar as angústias íntimas do autor. O rompimento com o passado produz involuntariamente também um rompimento com o futuro, alguns dos embates dos anos 20 já não têm eco no tempo presente. 

Muitos dos poemas, no entanto, sobreviveram bem e gosto especialmente de:

Noturno

Luzes do Cambuci pelas noites de crime…

Calor!… E as nuvens baixas muito grossas,

Feitas de corpos de mariposas, 

Rumorejando na epiderme das árvores… 

Gingam os bondes como um fogo de artifício,

Sapateando nos trilhos,

Cuspindo um orifício na treva cor de cal….

E também:

Paisagem no. 4

Os caminhões rodando, as carroças rodando,

Rápidas as ruas se desenrolando, 

Rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…

E o largo coro de ouro das sacas de café!…

O modernismo paulista era de fato um movimento de ruptura, centrada principalmente na questão estética. Mas muitos dos seus protagonistas jamais saíram das sombras do poder e do conservadorismo político. Mário, congregado mariano e carola, lutava com isso, mas não conseguiu terminar o seu livro sem um tradicionalíssimo Laos Deo, Deus seja louvado, na última página.