Anna Luiza Cardoso e Luciana Villas-Boas
Aracy de Carvalho, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo entre 1934 e 1942 e responsável pelo salvamento e emigração de centenas de judeus perseguidos pelo Nazismo para o Brasil, única mulher do serviço diplomático da época a receber o título de Justa do Museu do Holocausto em Israel, vai se tornar enfim conhecida de um grande público internacional a partir de 2022. Duas fortes produções audiovisuais – uma série dramática da TV Globo em parceria com a Sony, em inglês, tendo Sophie Charlotte como protagonista, e um documentário alemão do canal Arte, a ser distribuído em toda a Europa – jogarão luz sobre o legado humanista de Aracy e a história dessa mulher admirável. Por trás desse movimento, está a biografia JUSTA (Civilização Brasileira, 2011), de Mônica Raisa Schpun, pesquisadora brasileira baseada em Paris, que Conversa Com (A)Gente sobre o que a levou a Aracy de Carvalho, sobre o especial interesse que sua trajetória desperta nos dias de hoje e a interseção dessa trajetória de vida com suas pesquisas nos campos das migrações internacionais e histórias urbana e de gênero. Como presidente da ABRE, a Associação de Brasilianistas na Europa, a professora Mônica falou ainda do Brasil, das atuais perspectivas para o país no cenário internacional e da preocupação crescente dos pesquisadores e estudiosos europeus com o que vem acontecendo por aqui: “[…] se pensarmos nos grandes problemas que o mundo vem enfrentando, o governo brasileiro está não somente andando contra a corrente, como fora do foco de qualquer prioridade. O gigante da América Latina, com sua economia pungente, seus diplomatas bem formados, aparece agora como um anão a quem ninguém quer estender a mão”.
VB&M: Dois grandes projetos audiovisuais estão programados para em 2022 jogar luz sobre Aracy de Carvalho, a JUSTA (Civilização Brasileira, 2011). Coincidência ou o momento histórico conduz à curiosidade em torno de uma figura como ela, à necessidade mesmo de conhecê-la e fazê-la conhecida do público?
MS: De fato, em 2022 deve ser lançada uma série feita pela Globo em associação com a Sony Pictures Television. Será uma série falada em inglês, com uma distribuição internacional, baseada no meu livro, cujos direitos foram cedidos. Além disso, a Arte alemã lançará um documentário sobre Aracy de Carvalho; nesse caso, fui solicitada para uma entrevista. Sendo uma cadeia franco-alemã, ligada à União Europeia, o filme será transmitido na Alemanha e na França em primeiro lugar e, em seguida, traduzido em várias línguas, do português ao polonês, para os cidadãos dos demais países da EU que poderão acessá-lo pelo site da Arte. Graças ao programa de ficção da Globo/Sony e ao documentário da Arte, Aracy de Carvalho, heroína do meu livro, será conhecida por um grande público entre o Brasil, os Estados Unidos e a Europa.
Desde que o livro foi lançado, em 2011, fui solicitada por algumas pessoas interessadas em produzir obra audiovisual sobre Aracy de Carvalho, mas nenhum projeto, antes desses dois, chegou a se concretizar. O momento chegou enfim, e tenho imenso prazer em imaginar que essa história será conhecida em uma dimensão muito maior do que a capacidade de um livro publicado no Brasil. Os responsáveis da Arte que me contataram sublinharam o fato de que, para eles, o desconhecimento dessa história na Alemanha é não só grande como incompreensível.
É difícil encontrar uma explicação para essa convergência do interesse despertado, para além da mera coincidência. Podemos supor que em tempos de crise, nos quais as injustiças sociais tendem a se acentuar, como no momento atual, que carrega consigo sua dose de desgaste coletivo e de desesperança, uma personagem como Aracy traz um contraponto radical. Aracy foi testemunha direta de fatos de extrema gravidade. Em nenhum momento deixou-se abater ou, ainda menos, conduzir-se com indiferença. Pelo contrário.
O que a moveu para ajudar os judeus alemães a emigrarem para o Brasil, em um período em que as diretivas do governo varguista eram contrárias a isso? De um lado, um profundo sentimento humano, uma empatia com aqueles que estavam sendo perseguidos e eram tratados com indiferença pelo mundo afora. De outro, em um falso paradoxo, uma crença na humanidade, apesar de tudo. Foi assim que Aracy agiu contra a corrente e usou do espaço de que dispunha para agilizar a partida para o Brasil de judeus hamburgueses. O título de Justa, que ela recebeu do Museu do Holocausto de Israel, em 1982, a faz pertencer a um grupo restrito de pessoas que não aceitaram ser cúmplices. Com 6 milhões de judeus exterminados pelos nazistas, os cerca de 22 mil Justos reconhecidos são poucos. Mas, como diz a frase do Talmud que deu origem ao reconhecimento daqueles, não judeus, que se arriscaram para salvar judeus da perseguição hitlerista, “quem salva uma vida, salva a Humanidade”.
O fato de não compactuar e, também, de não se contentar em olhar para o lado e seguir cuidando somente da sua própria existência, diferenciou Aracy de seus contemporâneos. Ela sabia que diante de uma política de morte social, a neutralidade não existe. Seu exemplo ecoa fortemente hoje, quando vemos o número crescente de países dominados por governantes sanguinários, por elites políticas prontas a sacrificar suas populações, por ditadores sem escrúpulos e seus asseclas. Aracy representa a força de quem sabe quando deve desobedecer, em nome da dignidade humana. Dentre os cerca de 30 Justos que pertenciam ao pessoal diplomático naqueles anos, Aracy é a única mulher. Esse fato salta também aos olhos e atraiu logo meu interesse. Pois se ainda hoje devemos lutar sem relaxar para que a igualdade entre homens e mulheres nos diversos âmbitos da sociedade seja afirmada e respeitada, isso era ainda mais agudo naqueles anos. Uma mulher tinha que enfrentar mais barreiras para agir no espaço público do que um homem em igual posição. E Aracy não ocupava um cargo diplomático de primeira linha. Mas agiu com maior determinação do que seus superiores hierárquicos, todos homens, cuja margem de manobra era claramente maior do que a sua.
O Brasil vive tempos sombrios. Aracy de Carvalho, que infelizmente não pude encontrar, mas que defino como uma mulher resoluta e destemida, é sem sombra de dúvidas uma luz.
VB&M: O que a levou a Aracy de Carvalho e como se desenvolveu a escrita da biografia? Quantos anos foram necessários para a escrita e a publicação de seu livro?
MS: Descobri o nome de Aracy de Carvalho ao esbarrar em uma referência curta enquanto preparava aulas sobre as migrações judaicas. A menção, muito sucinta, chamou minha atenção e fui buscar mais informações. Isso foi em 2004 ou 2005. Fiquei sabendo então que a família dela acabara de depositar seus arquivos pessoais no Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP), junto aos arquivos de João Guimarães Rosa, seu segundo marido, que já estavam nessa instituição. O material não estava organizado e demorei para ter acesso, o que retardou a pesquisa, que deixei de lado por um certo tempo, por falta de fontes. Em 2008, com o centenário de nascimento de Aracy, fui contatada pela jornalista Eliane Brum, que trabalhava na revista Época e estava preparando uma matéria grande sobre a ação de Aracy. Eu tinha publicado dois artigos, mas o trabalho andava muito lentamente. Ela me entrevistou e publicou um box de uma página sobre o que conversamos, em particular sobre a amizade de Aracy e Margarethe Levy, uma das pessoas que Aracy ajudou a emigrar, em 1938, tema do qual gostara especialmente, segundo me disse na ocasião.
Aracy e Margarethe se reencontraram no Brasil em 1942 e a amizade durou até a morte de ambas, distanciada de uma dezena de dias, em 2011, quando meu livro estava no prelo. Interessei-me desde o início da pesquisa por essa longa amizade feminina, entre duas mulheres com perfis e origens sociais extremamente contrastantes, que nunca teriam se conhecido e ainda menos ficado amigas se não fosse o contexto tão particular da perseguição nazista aos judeus. Margarethe foi ao consulado brasileiro de Hamburgo solicitar vistos para emigrar com o marido, e ali conheceu Aracy. Trata-se, também, de uma amizade atravessada pelas migrações: de Aracy, que foi para a Alemanha em 1934, separando-se do primeiro marido; de Margarethe, que encontrou refúgio no Brasil; de Aracy, novamente, que voltou ao Brasil oito anos mais tarde, já em uma configuração de vida muito diferente, ao lado de João Guimarães Rosa, que conhecera em Hamburgo. A história dessa amizade não se esgota na ajuda dada por Aracy, o que comporia uma relação de reconhecimento, de gratidão, mas não de amizade, que exige simetria. Esta existia, segundo afirmou Margarethe durante nossos encontros: Aracy lhe fizera confidências de amiga, que ela “levaria para o túmulo”. Foi aí que desenhei o fio condutor da pesquisa e do livro que escrevi: sua estrutura é dada pelas migrações cruzadas e pela amizade entre Aracy e Margarethe.
Foi o que interessou Eliane Brum. E dali, por conta de leitores da reportagem dela, cheguei à editora que publicou o livro, consegui ter acesso aos arquivos pessoais de Aracy e saí em busca dos arquivos alemães e brasileiros que compõem a massa de fontes explorada no livro. Trabalhei nisso de modo mais intenso, depois de um início pouco produtivo, entre 2008 e 2010, até o livro ser publicado em 2011. Nesse período, convivi mentalmente com minhas heroínas e com os demais personagens que compõem essa história. Entrevistei muita gente, recolhi depoimentos e documentos, no Brasil, na Alemanha, em Israel, na Polônia, nos Estados Unidos. O livro trata de um número pequeno de pessoas, pois optei por valorizar a “micro-história”, isto é, por me concentrar em percursos individuais, que iluminam processos maiores, enxergando a história através de uma lupa. O resultado, me parece, é vivo e dinâmico, rico em ensinamentos sobre como cada um reage às determinações históricas, encontrando brechas e agindo com inteligência, dentro de uma margem de manobras muitas vezes limitada, nem sempre suficiente, como no caso dos judeus na Europa ocupada pelos nazistas. E, nesse caso, alguém como Aracy fez toda a diferença.
VB&M: Como pesquisadora na École des Hautes Études en Sciences Sociales e diretora da revista Brésil(s). Sciences humaines et sociales, você investiga há décadas as migrações internacionais, a história urbana e de gênero. Qual a origem de seu interesse por essas temáticas, que ganharam tanta relevância nos últimos cinco a oito anos?
MS: Defendi minha tese em 1994 na Universidade Paris 7 (sob orientação de Michelle Perrot). Trata-se de um trabalho sobre as relações de gênero nas elites paulistanas durante os anos de 1920, de grandes transformações urbanas. Tentei mostrar como as relações entre os homens e as mulheres dessas elites regionais se transformaram durante o processo de forte urbanização e de transformação da esfera pública e, também, dos equilíbrios sempre tensos entre as esferas pública e privada. E, inversamente, como essas transformações das dinâmicas de gênero deixaram suas marcas no espaço urbano, nas formas de ocupação da cidade. Publiquei uma versão reduzida na França e, no Brasil, um livro diferente, com uma parte da tese (Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos vinte).
Depois do doutorado, trabalhei alguns anos em um outro projeto, de cunho biográfico, amplificando meu interesse pelas questões de gênero. Debrucei-me sobre o itinerário de Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982), de uma família das elites paulistas que eu já havia estudado na tese. Ela foi, nos anos de 1930, a primeira deputada federal do Brasil, tendo assinado a constituição de 1934 ao lado dos seus 252 colegas, todos homens. Isso depois de ter se formado médica, em 1926 – profissão que exerceu durante décadas. Publiquei uma série de artigos sobre diferentes aspectos da vida e da carreira de Carlota Queiroz, passando pela misoginia que enfrentou, pela sua entrada na política, pelas relações com as feministas da época, lideradas por Berta Lutz no Rio de Janeiro. Publiquei uma antologia intitulada Masculinidades, na qual inclui um texto sobre essa pesquisa, pois Carlota incomodava particularmente seus contemporâneos por ser inclassificável, atravessando incessantemente as fronteiras entre o feminino e o masculino. Contrariamente ao que se costuma pensar, essas fronteiras são porosas, apesar de resistentes. E ela tinha uma certa consciência dessa porosidade – e desse incômodo. Apesar de não dispor de inteira liberdade diante das sobre-determinações históricas, enquanto mulher do seu tempo, ela jogou como pôde, a seu favor, com essa linha tensa, mas móvel, entre as duas esferas. E, assim, ocupou, como pôde, mas não sem conflitos, os espaços masculinos da medicina e da política.
Nesse período, fui morar na Itália, tendo trabalhado por cinco anos na Universidade de Milão. Foi ali que a temática da imigração se apresentou com força. A história da emigração italiana é incontornável, tendo em vista a dimensão temporal e espacial dessa diáspora. Alguns dos maiores historiadores italianos dedicaram-se ao tema, que é uma área forte dentro da historiografia do país. Fui convidada a fazer um pequeno livro de difusão científica (Brasile-Italia: cosa abbiamo in commune) para o qual escolhi, como fio condutor, a imigração italiana para o Brasil. E abordei a questão nos cursos que estava dando na época.
Desde então, venho estudando as migrações internacionais, sempre no que toca ao espaço urbano: como os imigrantes se inserem nas cidades, no tecido social, no mundo do trabalho, segundo quais temporalidades, enfrentando quais desafios, fazendo-se mais ou menos visíveis (ou invisíveis). E como as cidades se transformam diante dessa presença, de forma mais ou menos brusca, mais ou menos conflituosa. São Paulo é meu campo de reflexões principal, tanto para o período dito da “grande imigração”, na virada do séc. XIX para o XX, quanto para o período varguista, marcado pelas restrições migratórias e pelo controle acentuado da permanência de estrangeiros no país. Mas tenho também estudado Paris no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. E nunca perdi meu olhar sensível ao gênero, pois as experiências migratórias dos homens e das mulheres são diferentes e, sobretudo, os desafios impostos pelo percurso migratório transforma profundamente a ordem do gênero. Assim, diante do projeto migratório, a divisão habitual de tarefas e responsabilidades dentro de uma família ou de um casal, por exemplo, se alteram de forma mais ou menos durável.
No fundo, foi dessa intersecção entre questões migratórias, urbanas e de gênero, que nasceu meu livro Justa. Ele representa, para mim, uma espécie de ponto de chegada de cerca de 20 anos de pesquisas nesses campos. Tendo como foco central a ação de Aracy de Carvalho, pude seguir os percursos migratórios entre Hamburgo e São Paulo de um grupo de 16 refugiados judeus, desde a chegada de Hitler ao poder, em 1933, com o início da “morte social” dos judeus alemães, o estrangulamento econômico e o ostracismo social, até que todos conseguem um visto para o Brasil e partem. Na outra margem do Atlântico, segui seu processo de inserção na nova sociedade em todos os níveis, até estarem integrados, o que foi diferente para cada um, sendo que alguns imigraram sozinhos, outros em casais, outros já em família, configurações que implicaram relações diferentes com a sociedade local e exigências de adaptação também diversas.
Atualmente, preparo um livro sobre os nipo-paulistanos durante o Estado Novo (1937-45) e a Segunda Guerra Mundial, com um foco bem particular sobre o bairro étnico da Liberdade. No cruzamento entre história das migrações e história urbana, o bairro étnico é uma intersecção ideal, que eu ainda não tinha estudado de modo mais detalhado: como se constitui, como perdura, como adquire uma aura simbólica dentro da cidade… E, dentre os bairros étnicos das grandes metrópoles contemporâneas, a Liberdade é um exemplo paradigmático, a começar pela sua longa duração.
Tenho grande paixão pelos temas que acabo de descrever. Todos apresentam uma relação profunda com nossa atualidade: como tornar nossas cidades (e nossas sociedades) mais hospitaleiras aos forasteiros que nos procuram por não poderem mais viver dignamente em seus países de origem? São questões que devem nos interrogar a todos, pois sendo mais hospitaleiros, nossa própria vivência, social e urbana, sairá engrandecida. Abrindo espaço a esses “outros”, criamos para nós mesmos a chance de aprendermos com a bagagem que carregam, com um olhar menos ensimesmado sobre nós mesmos. Nunca é demais lembrar que compartilhamos com todo e qualquer estrangeiro uma humanidade comum. Aracy de Carvalho nunca duvidou disso, foi sempre uma acolhedora convicta, contra ventos e marés.
VB&M: Você é presidente da Associação de Brasilianistas na Europa (ABRE). Como os brasilianistas europeus entendem o presidente Bolsonaro e o fenômeno do bolsonarismo?
MS: Os brasilianistas estão extremamente preocupados. A situação nas universidades brasileiras e das instituições de pesquisa, cartão de visitas internacional do Brasil por várias décadas, inquieta profundamente a vasta rede de pesquisadores europeus que frequentam o Brasil, que ensinam sua história e as diversas faces de sua sociedade. Cada país europeu tem uma tradição própria de relações universitárias com o Brasil, o que torna o brasilianismo europeu extremamente rico e variado. Mas a preocupação com os rumos da pesquisa, do seu financiamento, da autonomia universitária, da liberdade de pensamento, e de nossos colegas brasileiros, nos reúne. Como no Brasil, os europeus também vêm se dedicando a estudar o fenômeno da “nova direita”, a extrema direita bolsonarista, o retorno dos militares ao poder, a crise que o país vem enfrentando desde meados da década passada e que se acentuou fortemente com a chegada de Bolsonaro ao poder e, há cerca de um ano, com a pandemia que vem revelando, tristemente, de modo extremamente custoso, a que veio esse governo. A Amazônia, que já conta com uma longa tradição de pesquisas na Europa, é outro foco de preocupações da parte dos pesquisadores europeus, assim como outras problemáticas cuja agravação salta aos olhos: violência policial, violência de gênero, feminicídios, racismo, vulnerabilidade dos grupos minoritários, indígenas em particular, escravidão contemporânea, etc. A lista é longa e os pesquisadores europeus estão atentos, conectados com seus colegas e com as equipes brasileiras.
O congresso de 2019 da ABRE, que me coube organizar, em Paris, contou com a presença de 530 participantes, de 23 países diferentes, especialistas de temas e disciplinas os mais variados. O próximo, que acontecerá em setembro próximo, está sendo organizado pelos colegas de Praga. Será online, mas também promete ser um encontro muito rico.
Se a pesquisa tem sua temporalidade própria, que responde a exigências de rigor e de comprometimento com a verdade, ela também participa da esfera pública, dos debates da atualidade, respondendo aos novos desafios que se apresentam. Contudo, vale dizer, o pensamento e a pesquisa universitária não se limitam e não devem limitar-se à conjuntura, por mais assustadora que seja (e ela o é no Brasil de hoje). Os temas são amplos e variados, a temporalidade da reflexão ultrapassa de longe – o que é um alento – a influência e o poder da extrema direita: esta vai passar mais rápido do que a sólida tradição de pesquisas europeias sobre o Brasil. Assim, podemos e devemos continuar lançando um olhar de longo prazo sobre o país e suas populações, suas artes, suas expressões, suas práticas, em toda a sua complexidade, social, política, temporal e espacial. O que tanto nos apaixona, há tanto tempo.
VB&M: O cataclisma político no Brasil somado ao drama da pandemia aumenta ou diminui o interesse pelo país no exterior?
MS: O Brasil oficial está em baixa no exterior, em todos os sentidos, não há dúvida. Mas a preocupação é forte e generalizada quanto ao que está acontecendo com o país e sua população, o caos que vem custando tantas mortes, tantos sacrifícios, a crise que se aprofunda, por conta de uma gestão catastrófica da pandemia.
Se a diplomacia brasileira chegou a contar internacionalmente no passado, não é mais o caso. Atualmente, o Brasil é o parceiro que nenhum governo quer ter, inclusive economicamente, por conta da destruição na Amazônia e de outros abusos. As viagens recentes de Raoni pela Europa e a recepção que lhe foi dada pelos responsáveis políticos deixaram clara a falta total de credibilidade do governo brasileiro junto às lideranças europeias. E a crise econômica causada pela pandemia (e a incapacidade da área econômica do governo em enfrentá-la) só jogou mais uma pá de cal sobre qualquer possibilidade de novas parcerias e investimentos. Vimos as multinacionais que vêm fechando fábricas e deixando o país. Outro exemplo, o acordo da UE com o Mercosul, que beneficiaria o Brasil em primeira linha, conta com grandes resistências na Europa. A questão saiu dos radares com a pandemia e outros problemas vividos pelos 27 países. Mas a assinatura do texto já parecia comprometida. A derrota eleitoral de Trump isolou ainda mais Bolsonaro na cena internacional e mesmo das Américas. Em termos de imagem internacional, a situação não poderia ser pior. Na ONU, o Brasil aliou-se aos países mais retrógrados em termos de direitos humanos e das mulheres, os discursos do ministro das relações exteriores se não provocam risos, embaraçam. Ou seja, se pensarmos nos grandes problemas que o mundo vem enfrentando, o governo brasileiro está não somente andando contra a corrente, como fora do foco de qualquer prioridade. O gigante da América Latina, com sua economia pungente, seus diplomatas bem formados, aparece agora como um anão a quem ninguém quer estender a mão. O que só reforça a preocupação geral com o que estão vivendo os brasileiros neste momento, tendo que enfrentar uma crise multifacetada que se prolonga e aprofunda a cada dia.
MS: De fato, em 2022 deve ser lançada uma série feita pela Globo em associação com a Sony Pictures Television. Será uma série falada em inglês, com uma distribuição internacional, baseada no meu livro, cujos direitos foram cedidos. Além disso, a Arte alemã lançará um documentário sobre Aracy de Carvalho; nesse caso, fui solicitada para uma entrevista. Sendo uma cadeia franco-alemã, ligada à União Europeia, o filme será transmitido na Alemanha e na França em primeiro lugar e, em seguida, traduzido em várias línguas, do português ao polonês, para os cidadãos dos demais países da EU que poderão acessá-lo pelo site da Arte. Graças ao programa de ficção da Globo/Sony e ao documentário da Arte, Aracy de Carvalho, heroína do meu livro, será conhecida por um grande público entre o Brasil, os Estados Unidos e a Europa.
Desde que o livro foi lançado, em 2011, fui solicitada por algumas pessoas interessadas em produzir obra audiovisual sobre Aracy de Carvalho, mas nenhum projeto, antes desses dois, chegou a se concretizar. O momento chegou enfim, e tenho imenso prazer em imaginar que essa história será conhecida em uma dimensão muito maior do que a capacidade de um livro publicado no Brasil. Os responsáveis da Arte que me contataram sublinharam o fato de que, para eles, o desconhecimento dessa história na Alemanha é não só grande como incompreensível.
É difícil encontrar uma explicação para essa convergência do interesse despertado, para além da mera coincidência. Podemos supor que em tempos de crise, nos quais as injustiças sociais tendem a se acentuar, como no momento atual, que carrega consigo sua dose de desgaste coletivo e de desesperança, uma personagem como Aracy traz um contraponto radical. Aracy foi testemunha direta de fatos de extrema gravidade. Em nenhum momento deixou-se abater ou, ainda menos, conduzir-se com indiferença. Pelo contrário.
O que a moveu para ajudar os judeus alemães a emigrarem para o Brasil, em um período em que as diretivas do governo varguista eram contrárias a isso? De um lado, um profundo sentimento humano, uma empatia com aqueles que estavam sendo perseguidos e eram tratados com indiferença pelo mundo afora. De outro, em um falso paradoxo, uma crença na humanidade, apesar de tudo. Foi assim que Aracy agiu contra a corrente e usou do espaço de que dispunha para agilizar a partida para o Brasil de judeus hamburgueses. O título de Justa, que ela recebeu do Museu do Holocausto de Israel, em 1982, a faz pertencer a um grupo restrito de pessoas que não aceitaram ser cúmplices. Com 6 milhões de judeus exterminados pelos nazistas, os cerca de 22 mil Justos reconhecidos são poucos. Mas, como diz a frase do Talmud que deu origem ao reconhecimento daqueles, não judeus, que se arriscaram para salvar judeus da perseguição hitlerista, “quem salva uma vida, salva a Humanidade”.
O fato de não compactuar e, também, de não se contentar em olhar para o lado e seguir cuidando somente da sua própria existência, diferenciou Aracy de seus contemporâneos. Ela sabia que diante de uma política de morte social, a neutralidade não existe. Seu exemplo ecoa fortemente hoje, quando vemos o número crescente de países dominados por governantes sanguinários, por elites políticas prontas a sacrificar suas populações, por ditadores sem escrúpulos e seus asseclas. Aracy representa a força de quem sabe quando deve desobedecer, em nome da dignidade humana. Dentre os cerca de 30 Justos que pertenciam ao pessoal diplomático naqueles anos, Aracy é a única mulher. Esse fato salta também aos olhos e atraiu logo meu interesse. Pois se ainda hoje devemos lutar sem relaxar para que a igualdade entre homens e mulheres nos diversos âmbitos da sociedade seja afirmada e respeitada, isso era ainda mais agudo naqueles anos. Uma mulher tinha que enfrentar mais barreiras para agir no espaço público do que um homem em igual posição. E Aracy não ocupava um cargo diplomático de primeira linha. Mas agiu com maior determinação do que seus superiores hierárquicos, todos homens, cuja margem de manobra era claramente maior do que a sua.
O Brasil vive tempos sombrios. Aracy de Carvalho, que infelizmente não pude encontrar, mas que defino como uma mulher resoluta e destemida, é sem sombra de dúvidas uma luz.
VB&M: O que a levou a Aracy de Carvalho e como se desenvolveu a escrita da biografia? Quantos anos foram necessários para a escrita e a publicação de seu livro?
MS: Descobri o nome de Aracy de Carvalho ao esbarrar em uma referência curta enquanto preparava aulas sobre as migrações judaicas. A menção, muito sucinta, chamou minha atenção e fui buscar mais informações. Isso foi em 2004 ou 2005. Fiquei sabendo então que a família dela acabara de depositar seus arquivos pessoais no Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP), junto aos arquivos de João Guimarães Rosa, seu segundo marido, que já estavam nessa instituição. O material não estava organizado e demorei para ter acesso, o que retardou a pesquisa, que deixei de lado por um certo tempo, por falta de fontes. Em 2008, com o centenário de nascimento de Aracy, fui contatada pela jornalista Eliane Brum, que trabalhava na revista Época e estava preparando uma matéria grande sobre a ação de Aracy. Eu tinha publicado dois artigos, mas o trabalho andava muito lentamente. Ela me entrevistou e publicou um box de uma página sobre o que conversamos, em particular sobre a amizade de Aracy e Margarethe Levy, uma das pessoas que Aracy ajudou a emigrar, em 1938, tema do qual gostara especialmente, segundo me disse na ocasião.
Aracy e Margarethe se reencontraram no Brasil em 1942 e a amizade durou até a morte de ambas, distanciada de uma dezena de dias, em 2011, quando meu livro estava no prelo. Interessei-me desde o início da pesquisa por essa longa amizade feminina, entre duas mulheres com perfis e origens sociais extremamente contrastantes, que nunca teriam se conhecido e ainda menos ficado amigas se não fosse o contexto tão particular da perseguição nazista aos judeus. Margarethe foi ao consulado brasileiro de Hamburgo solicitar vistos para emigrar com o marido, e ali conheceu Aracy. Trata-se, também, de uma amizade atravessada pelas migrações: de Aracy, que foi para a Alemanha em 1934, separando-se do primeiro marido; de Margarethe, que encontrou refúgio no Brasil; de Aracy, novamente, que voltou ao Brasil oito anos mais tarde, já em uma configuração de vida muito diferente, ao lado de João Guimarães Rosa, que conhecera em Hamburgo. A história dessa amizade não se esgota na ajuda dada por Aracy, o que comporia uma relação de reconhecimento, de gratidão, mas não de amizade, que exige simetria. Esta existia, segundo afirmou Margarethe durante nossos encontros: Aracy lhe fizera confidências de amiga, que ela “levaria para o túmulo”. Foi aí que desenhei o fio condutor da pesquisa e do livro que escrevi: sua estrutura é dada pelas migrações cruzadas e pela amizade entre Aracy e Margarethe.
Foi o que interessou Eliane Brum. E dali, por conta de leitores da reportagem dela, cheguei à editora que publicou o livro, consegui ter acesso aos arquivos pessoais de Aracy e saí em busca dos arquivos alemães e brasileiros que compõem a massa de fontes explorada no livro. Trabalhei nisso de modo mais intenso, depois de um início pouco produtivo, entre 2008 e 2010, até o livro ser publicado em 2011. Nesse período, convivi mentalmente com minhas heroínas e com os demais personagens que compõem essa história. Entrevistei muita gente, recolhi depoimentos e documentos, no Brasil, na Alemanha, em Israel, na Polônia, nos Estados Unidos. O livro trata de um número pequeno de pessoas, pois optei por valorizar a “micro-história”, isto é, por me concentrar em percursos individuais, que iluminam processos maiores, enxergando a história através de uma lupa. O resultado, me parece, é vivo e dinâmico, rico em ensinamentos sobre como cada um reage às determinações históricas, encontrando brechas e agindo com inteligência, dentro de uma margem de manobras muitas vezes limitada, nem sempre suficiente, como no caso dos judeus na Europa ocupada pelos nazistas. E, nesse caso, alguém como Aracy fez toda a diferença.
VB&M: Como pesquisadora na École des Hautes Études en Sciences Sociales e diretora da revista Brésil(s). Sciences humaines et sociales, você investiga há décadas as migrações internacionais, a história urbana e de gênero. Qual a origem de seu interesse por essas temáticas, que ganharam tanta relevância nos últimos cinco a oito anos?
MS: Defendi minha tese em 1994 na Universidade Paris 7 (sob orientação de Michelle Perrot). Trata-se de um trabalho sobre as relações de gênero nas elites paulistanas durante os anos de 1920, de grandes transformações urbanas. Tentei mostrar como as relações entre os homens e as mulheres dessas elites regionais se transformaram durante o processo de forte urbanização e de transformação da esfera pública e, também, dos equilíbrios sempre tensos entre as esferas pública e privada. E, inversamente, como essas transformações das dinâmicas de gênero deixaram suas marcas no espaço urbano, nas formas de ocupação da cidade. Publiquei uma versão reduzida na França e, no Brasil, um livro diferente, com uma parte da tese (Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos vinte).
Depois do doutorado, trabalhei alguns anos em um outro projeto, de cunho biográfico, amplificando meu interesse pelas questões de gênero. Debrucei-me sobre o itinerário de Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982), de uma família das elites paulistas que eu já havia estudado na tese. Ela foi, nos anos de 1930, a primeira deputada federal do Brasil, tendo assinado a constituição de 1934 ao lado dos seus 252 colegas, todos homens. Isso depois de ter se formado médica, em 1926 – profissão que exerceu durante décadas. Publiquei uma série de artigos sobre diferentes aspectos da vida e da carreira de Carlota Queiroz, passando pela misoginia que enfrentou, pela sua entrada na política, pelas relações com as feministas da época, lideradas por Berta Lutz no Rio de Janeiro. Publiquei uma antologia intitulada Masculinidades, na qual inclui um texto sobre essa pesquisa, pois Carlota incomodava particularmente seus contemporâneos por ser inclassificável, atravessando incessantemente as fronteiras entre o feminino e o masculino. Contrariamente ao que se costuma pensar, essas fronteiras são porosas, apesar de resistentes. E ela tinha uma certa consciência dessa porosidade – e desse incômodo. Apesar de não dispor de inteira liberdade diante das sobre-determinações históricas, enquanto mulher do seu tempo, ela jogou como pôde, a seu favor, com essa linha tensa, mas móvel, entre as duas esferas. E, assim, ocupou, como pôde, mas não sem conflitos, os espaços masculinos da medicina e da política.
Nesse período, fui morar na Itália, tendo trabalhado por cinco anos na Universidade de Milão. Foi ali que a temática da imigração se apresentou com força. A história da emigração italiana é incontornável, tendo em vista a dimensão temporal e espacial dessa diáspora. Alguns dos maiores historiadores italianos dedicaram-se ao tema, que é uma área forte dentro da historiografia do país. Fui convidada a fazer um pequeno livro de difusão científica (Brasile-Italia: cosa abbiamo in commune) para o qual escolhi, como fio condutor, a imigração italiana para o Brasil. E abordei a questão nos cursos que estava dando na época.
Desde então, venho estudando as migrações internacionais, sempre no que toca ao espaço urbano: como os imigrantes se inserem nas cidades, no tecido social, no mundo do trabalho, segundo quais temporalidades, enfrentando quais desafios, fazendo-se mais ou menos visíveis (ou invisíveis). E como as cidades se transformam diante dessa presença, de forma mais ou menos brusca, mais ou menos conflituosa. São Paulo é meu campo de reflexões principal, tanto para o período dito da “grande imigração”, na virada do séc. XIX para o XX, quanto para o período varguista, marcado pelas restrições migratórias e pelo controle acentuado da permanência de estrangeiros no país. Mas tenho também estudado Paris no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. E nunca perdi meu olhar sensível ao gênero, pois as experiências migratórias dos homens e das mulheres são diferentes e, sobretudo, os desafios impostos pelo percurso migratório transforma profundamente a ordem do gênero. Assim, diante do projeto migratório, a divisão habitual de tarefas e responsabilidades dentro de uma família ou de um casal, por exemplo, se alteram de forma mais ou menos durável.
No fundo, foi dessa intersecção entre questões migratórias, urbanas e de gênero, que nasceu meu livro Justa. Ele representa, para mim, uma espécie de ponto de chegada de cerca de 20 anos de pesquisas nesses campos. Tendo como foco central a ação de Aracy de Carvalho, pude seguir os percursos migratórios entre Hamburgo e São Paulo de um grupo de 16 refugiados judeus, desde a chegada de Hitler ao poder, em 1933, com o início da “morte social” dos judeus alemães, o estrangulamento econômico e o ostracismo social, até que todos conseguem um visto para o Brasil e partem. Na outra margem do Atlântico, segui seu processo de inserção na nova sociedade em todos os níveis, até estarem integrados, o que foi diferente para cada um, sendo que alguns imigraram sozinhos, outros em casais, outros já em família, configurações que implicaram relações diferentes com a sociedade local e exigências de adaptação também diversas.
Atualmente, preparo um livro sobre os nipo-paulistanos durante o Estado Novo (1937-45) e a Segunda Guerra Mundial, com um foco bem particular sobre o bairro étnico da Liberdade. No cruzamento entre história das migrações e história urbana, o bairro étnico é uma intersecção ideal, que eu ainda não tinha estudado de modo mais detalhado: como se constitui, como perdura, como adquire uma aura simbólica dentro da cidade… E, dentre os bairros étnicos das grandes metrópoles contemporâneas, a Liberdade é um exemplo paradigmático, a começar pela sua longa duração.
Tenho grande paixão pelos temas que acabo de descrever. Todos apresentam uma relação profunda com nossa atualidade: como tornar nossas cidades (e nossas sociedades) mais hospitaleiras aos forasteiros que nos procuram por não poderem mais viver dignamente em seus países de origem? São questões que devem nos interrogar a todos, pois sendo mais hospitaleiros, nossa própria vivência, social e urbana, sairá engrandecida. Abrindo espaço a esses “outros”, criamos para nós mesmos a chance de aprendermos com a bagagem que carregam, com um olhar menos ensimesmado sobre nós mesmos. Nunca é demais lembrar que compartilhamos com todo e qualquer estrangeiro uma humanidade comum. Aracy de Carvalho nunca duvidou disso, foi sempre uma acolhedora convicta, contra ventos e marés.
VB&M: Você é presidente da Associação de Brasilianistas na Europa (ABRE). Como os brasilianistas europeus entendem o presidente Bolsonaro e o fenômeno do bolsonarismo?
MS: Os brasilianistas estão extremamente preocupados. A situação nas universidades brasileiras e das instituições de pesquisa, cartão de visitas internacional do Brasil por várias décadas, inquieta profundamente a vasta rede de pesquisadores europeus que frequentam o Brasil, que ensinam sua história e as diversas faces de sua sociedade. Cada país europeu tem uma tradição própria de relações universitárias com o Brasil, o que torna o brasilianismo europeu extremamente rico e variado. Mas a preocupação com os rumos da pesquisa, do seu financiamento, da autonomia universitária, da liberdade de pensamento, e de nossos colegas brasileiros, nos reúne. Como no Brasil, os europeus também vêm se dedicando a estudar o fenômeno da “nova direita”, a extrema direita bolsonarista, o retorno dos militares ao poder, a crise que o país vem enfrentando desde meados da década passada e que se acentuou fortemente com a chegada de Bolsonaro ao poder e, há cerca de um ano, com a pandemia que vem revelando, tristemente, de modo extremamente custoso, a que veio esse governo. A Amazônia, que já conta com uma longa tradição de pesquisas na Europa, é outro foco de preocupações da parte dos pesquisadores europeus, assim como outras problemáticas cuja agravação salta aos olhos: violência policial, violência de gênero, feminicídios, racismo, vulnerabilidade dos grupos minoritários, indígenas em particular, escravidão contemporânea, etc. A lista é longa e os pesquisadores europeus estão atentos, conectados com seus colegas e com as equipes brasileiras.
O congresso de 2019 da ABRE, que me coube organizar, em Paris, contou com a presença de 530 participantes, de 23 países diferentes, especialistas de temas e disciplinas os mais variados. O próximo, que acontecerá em setembro próximo, está sendo organizado pelos colegas de Praga. Será online, mas também promete ser um encontro muito rico.
Se a pesquisa tem sua temporalidade própria, que responde a exigências de rigor e de comprometimento com a verdade, ela também participa da esfera pública, dos debates da atualidade, respondendo aos novos desafios que se apresentam. Contudo, vale dizer, o pensamento e a pesquisa universitária não se limitam e não devem limitar-se à conjuntura, por mais assustadora que seja (e ela o é no Brasil de hoje). Os temas são amplos e variados, a temporalidade da reflexão ultrapassa de longe – o que é um alento – a influência e o poder da extrema direita: esta vai passar mais rápido do que a sólida tradição de pesquisas europeias sobre o Brasil. Assim, podemos e devemos continuar lançando um olhar de longo prazo sobre o país e suas populações, suas artes, suas expressões, suas práticas, em toda a sua complexidade, social, política, temporal e espacial. O que tanto nos apaixona, há tanto tempo.
VB&M: O cataclisma político no Brasil somado ao drama da pandemia aumenta ou diminui o interesse pelo país no exterior?
MS: O Brasil oficial está em baixa no exterior, em todos os sentidos, não há dúvida. Mas a preocupação é forte e generalizada quanto ao que está acontecendo com o país e sua população, o caos que vem custando tantas mortes, tantos sacrifícios, a crise que se aprofunda, por conta de uma gestão catastrófica da pandemia.
Se a diplomacia brasileira chegou a contar internacionalmente no passado, não é mais o caso. Atualmente, o Brasil é o parceiro que nenhum governo quer ter, inclusive economicamente, por conta da destruição na Amazônia e de outros abusos. As viagens recentes de Raoni pela Europa e a recepção que lhe foi dada pelos responsáveis políticos deixaram clara a falta total de credibilidade do governo brasileiro junto às lideranças europeias. E a crise econômica causada pela pandemia (e a incapacidade da área econômica do governo em enfrentá-la) só jogou mais uma pá de cal sobre qualquer possibilidade de novas parcerias e investimentos. Vimos as multinacionais que vêm fechando fábricas e deixando o país. Outro exemplo, o acordo da UE com o Mercosul, que beneficiaria o Brasil em primeira linha, conta com grandes resistências na Europa. A questão saiu dos radares com a pandemia e outros problemas vividos pelos 27 países. Mas a assinatura do texto já parecia comprometida. A derrota eleitoral de Trump isolou ainda mais Bolsonaro na cena internacional e mesmo das Américas. Em termos de imagem internacional, a situação não poderia ser pior. Na ONU, o Brasil aliou-se aos países mais retrógrados em termos de direitos humanos e das mulheres, os discursos do ministro das relações exteriores se não provocam risos, embaraçam. Ou seja, se pensarmos nos grandes problemas que o mundo vem enfrentando, o governo brasileiro está não somente andando contra a corrente, como fora do foco de qualquer prioridade. O gigante da América Latina, com sua economia pungente, seus diplomatas bem formados, aparece agora como um anão a quem ninguém quer estender a mão. O que só reforça a preocupação geral com o que estão vivendo os brasileiros neste momento, tendo que enfrentar uma crise multifacetada que se prolonga e aprofunda a cada dia.