LEGITIMAÇÃO DA AUTOAJUDA E A VINGANÇA DE LYA

Em 2022, NARRATIVAS & DEPOIMENTOS alternará nas sextas-feiras, religiosamente, textos inéditos de clientes e autores amigos com traduções do que VB&M viu e considerou o de melhor publicado sobre livros e cultura na mídia internacional aberta, que muitas vezes não chega aos grandes jornais brasileiros. Um serviço de curadoria para os seguidores da agência; e a coluna abre o ano com um artigo de The Guardian que esclarece sérios equívocos de compreensão do que é a literatura de autoajuda.

Anna Katharina Schaffner mostra em seu artigo que o ensaio filosófico ou psicológico que propõe maneiras de autoaperfeiçoamento é um gênero milenar que não deve ser confundido com a literatura barata repleta de clichês e propostas de soluções fáceis, que ultimamente tem tomado o rumo principalmente das editorias de negócios. Ela faz uma maravilhosa lista de 10 melhores livros de autoajuda de todos os tempos misturando os seguintes autores: Marco Aurélio, David D. Burns, Russ Harris (esse, não conhecemos na VB&M, nem é publicado no Brasil), Lao Tzu, Eckhart Tolle, nosso querido monge Matthieu Ricard (o livro citado é da Palas Athena, da mestra e editora Lia Diskin), Henry David Thoreau, a psicóloga Angela Duckworth e Dante Alighieri, além da epopeia de Gilgamés.

No Brasil, dirimir esse equívoco é ainda mais urgente do que em outros países. À ignorância literária que implica a incompreensão de determinados ensaios e memórias se acresce a inveja de toda literatura que, sendo boa e honesta, é também facilmente assimilada pelo leitor e bem-sucedida em números de vendas no mercado. O três i(s) que nos matam: ignorância, incompreensão e inveja. Quase qualquer livro que encante o leitor é chamado por uma crítica especializada e elitista, mas em geral burra, ou de autoajuda ou de ficção best-seller. Por exemplo, agora, as preciosas memórias de Lori Gottlieb, TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUÉM.

Aproveito o espaço e o gancho (eu, Luciana Villas Boas) para recordar a escritora Lya Luft, que deu tchauzinho para a gente nas últimas horas do ano passado. Lya odiava muito ser tachada de autora de autoajuda, o que passou a acontecer depois do sucesso estrondoso de PERDAS & GANHOS, em 2003. Odiava também participar de mesas de debates com outros autores em bienais. Eu arrumei para ela uma arapuca da qual me arrependo até hoje e tento me redimir aqui, embora tarde demais.

A Bienal do Rio insistiu comigo, sua editora na Record, que convencesse a autora a participar de uma mesa naquele Café Literário com um grande professor e crítico de nomeada, mas autor basicamente de textos incompreensíveis. Eu então fui lá dizer a Lya que seria bom para a carreira de seus livros que participasse dessa vez, porque o interlocutor era um intelectual de muito prestígio, aquela história toda. Para quê.

Lya muniu-se de toda simpatia que tinha dentro de si, o que, convenhamos, não era nela um traço sempre presente, para sair de seu conforto em Porto Alegre e enfrentar a muvuca da Bienal no Rio. Mas encontrou um homem frio, antipático, que a cortou o tempo todo na mesa e ao final, sem lhe dirigir o olhar, começou a discorrer sobre essas escritoras de ficção que, de repente seduzidas pelo vil metal, aceitam uma encomenda da editora e passam a escrever livros de autoajuda.

Ninguém na plateia duvidou de que ele estava falando dela para ela, que, jamais podendo imaginar e se preparar para tal agressão, ficou muda. Eu estava assistindo ao “bate-papo” de fora da sala do café, através de um vidro. Mesmo que a timidez não me paralisasse como sempre acontece em situações públicas, seria muito difícil atravessar as cadeiras todas, a sala cheia de gente, para dizer que aquela história era uma mentira infame. Quando acabou o tempo, Lya se levantou e foi embora, e o intelectual cujos livros vendiam 300 exemplares (sei porque eu o havia publicado também, até o publisher Sergio Machado me mandar parar com aquilo) havia criado uma lenda do mercado editorial sem qualquer base nos fatos e provocado um verdadeiro trauma numa escritora, já com alguma idade naquela época, que simplesmente acreditava no que escrevia.

Eu contratara a obra completa de Lya para a Record com a inclusão de um livro novo em processo de escrita, que esperava ser um romance. Quando a autora entregou PERDAS & GANHOS, fiquei muito aborrecida, porque se tratava de um ensaio, seria comercialmente difícil de trabalhar e assim um início não auspicioso para a entrada dela no catálogo da Record. Lya insistiu que aquele era o livro que tinha querido escrever e poderia entregar naquele momento, e PERDAS & GANHOS saiu com uma tiragem de, considerando as perdas da impressora, menos de 3.000 exemplares.

PERDAS & GANHOS começou a encontrar seus leitores no boca-a-boca até que um dia galgou uma posição na então muito influente lista de mais vendidos da Veja, e o resto é história: a autora ganhou em um par de anos cerca de R$ 2 milhões em royalties de direito autoral, isso quase duas décadas atrás. Mas nunca se livrou da pecha de autora de autoajuda que aceita encomendas de livrecos da editora. Mas vamos ao artigo de Schaffner que, ao reivindicar a relevância literária da autoajuda, vinga nossa Lya.

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Os 10 melhores livros sobre auto-desenvolvimento

Por Anna Katharina Schaffner

Tradução por Yasmin Ribeiro

É fácil desprezar livros e leitores de autoajuda. Mas não só a autoajuda séria é necessária, como também devemos levá-la mais a sério. Estimado em 11 bilhões de dólares em valor de mercado ao redor do mundo, esse gênero é uma gigantesca indústria global. Tanto reflete como gera muitas de nossas ideias predominantes sobre nós mesmos e sobre as culturas em que vivemos. A indústria da autoajuda não somente busca moldar a maneira como pensamos, sentimos e nos comportamos, mas também fornece muitas das metáforas nas quais nos baseamos para falar sobre nossas vidas interiores. Muitas dessas metáforas, inclusive aquela que diz que a mente é um computador que pode precisar de reprogramação, podem, na pior das hipóteses, serem inúteis.

Os críticos da autoajuda acreditam que sua atual popularidade faz parte de um imperativo neoliberal onipresente para maximizar a eficiência. Eles a veem como um plano sinistro a fim de direcionar toda a responsabilidade pelo nosso bem-estar para nós mesmos. A autoajuda, segundo esses críticos, retrata todos os nossos problemas como pessoais, e nossas falhas como fruto da falta de força de vontade e de resiliência, quando de fato são causadas pelas políticas do capitalismo. Mas se isso pode ser verdade acerca de alguns títulos do gênero, a ideia do autodesenvolvimento tem uma história longa e rica, que remonta a longínquas tradições do saber e do conhecimento. O desejo de melhorar a si mesmo está ligado à necessidade de autoconhecimento, para a mestria e a transformação. É um desejo atemporal e uma parte essencial do que nos torna humanos.

Há alguma literatura de autodesenvolvimento que realmente pode nos ajudar a nos tornar pessoas melhores. Quero dizer “melhores” não no sentido competitivo, mas ético: o “eu” aperfeiçoado é mais capaz de direcionar a atenção para fora, para projetos, para outras pessoas e as comunidades das quais fazemos parte.

1. “Meditações”, de Marco Aurélio
O imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio (121 – 180 d.C.) acreditava que todo o sofrimento está em nossas mentes. O sofrimento é causado não por eventos externos, mas pelas nossas reações a esses eventos – por julgamentos falhos e expectativas não realistas. Uma vez que a maioria dos eventos externos estão além do nosso controle, Aurélio argumenta em suas “Meditações” que se preocupar com eles é inútil. Nossas avaliações desses eventos, por outro lado, estão completamente dentro do nosso controle. A consequência dessa visão é que nossas energias mentais deveriam ser direcionadas para nosso interior, visando a controlar nossas mentes. A chave para uma vida feliz, portanto, está em ajustar nossas expectativas, porque “somente um louco procura por figos no inverno”.

2. “Antidepressão: a revolucionária terapia do bem-estar”, de David D. Burns (1980)
A ciência que embasa o livro de Burn pode não ser mais de ponta, mas o cerne de sua mensagem permanece fortemente relevante. Uma versão mais prática do estoicismo, o livro é baseado nas premissas da terapia cognitivo-comportamental (TCC). “Antidepressão”, originalmente intitulado “Feeling good: The new mood therapy”, ilustra como nossas ideias moldam nossos sentimentos e oferece algumas boas técnicas de treinamento de nossas mentes para questionar os pensamentos negativos que temos sobre nós mesmos e os outros.

3. “The Happiness Trap” (A armadilha da felicidade), de Russ Harris (2007)
Nós não somos, obviamente, criaturas puramente racionais. Às vezes, as tentativas de controlar nossos pensamentos podem se revelar contraprodutivas. Nesse livro, o psicólogo australiano Harris explica os princípios da terapia de aceitação e compromisso (TAC). Ele convida o leitor a não tentar controlar os pensamentos negativos ou os sentimentos desconfortáveis, mas simplesmente se dissipar deles, aceitá-los e então deixá-los ir. Assim, temos mais energia para nos comprometer com ações baseadas em valor.

4. “Tao Te Ching”, de Lao Tzu
O auto cultivo espiritual pela arte do desapego e do deixar ir é o tema central de “Tao Te Ching” (o estudo clássico de “O Caminho e a Virtude”, normalmente datado de VI a IV a.C.). No taoismo, deixar ir se concentra na ideia de não resistir à ordem natural das coisas. Isso promove uma maneira sofisticada de submeter nossa vontade às forças cósmicas pela aceitação do que as coisas são e pelo desapego dos nossos desejos e expectativas de resultados específicos. O Tao sugere que nós podemos melhorar se retornarmos a um modo de viver mais simples, autêntico e intuitivo. Um conceito chave é wu wei – “não ação” ou “ação sem esforço”. Wu wei pode ser melhor descrito como um estado espiritual marcado pela aceitação do que existe e a ausência de desejos egoístas.

5. “O poder do agora: Um guia para a iluminação espiritual”, de Eckhart Tolle (1998)
Não somos nossos pensamentos, argumenta Tolle em seu best seller. A maior parte dos nossos pensamentos, ele escreve, giram em torno do passado ou do futuro. Nosso passado nos fornece uma identidade, enquanto o futuro traz “a promessa de salvação”. Ambos são ilusões, porque o presente é tudo que realmente temos. Portanto, precisamos aprender a ser presentes, como “vigias” de nossas mentes, observando nossos padrões de pensamento em vez de nos identificar com eles. Dessa maneira, podemos reaprender a viver verdadeiramente no agora.

6. “A revolução do altruísmo”, de Matthieu Ricard (2015)

Em muitas teologias e tradições de sabedoria, o altruísmo é o mais alto valor espiritual e moral. Mais recentemente, psicólogos mostraram que ações altruístas não beneficiam somente a quem as recebe, mas também proporcionam mais felicidade a quem as realiza. Além disso, praticar o altruísmo, segundo o monge budista francês, é a chave não só para a felicidade pessoal, mas também para resolver os principais problemas sociais, econômicos e ambientais. O altruísmo nos capacita a “conectar harmoniosamente os desafios econômicos a curto prazo, qualidade de vida a médio prazo, e o futuro ambiental a longo prazo.”

7. “Walden”, de Henry David Thoreau (1854)
O filósofo transcendentalista americano Thoreau ficou famoso por ter se retirado e isolado numa cabana na floresta perto do lago Walden, em Concord, Massachusetts, onde buscou viver simples e “deliberadamente”. Foi lá que ele desenvolveu a interessante noção de “custo da vida” – o antídoto perfeito para desconstruir o materialismo e a tóxica ética do trabalho protestante à qual tantos ainda estão aprisionados. Muitos de nós considera normal trocar nossa vida por bens materiais, acreditando que a produtividade e o sucesso são sinais seculares de graça. Thoreau entendia o trabalho pago como um mal necessário ao qual devemos dedicar o mínimo tempo possível. Sua meta era não gastar um único minuto a mais do que o necessário para garantir suas necessidades e despesas básicas, passando todo o restante do tempo a fazer o que ele mais valorizava.

8. “Garra: o poder da paixão e da perseverança”, de Angela Duckworth (2017)
De acordo com a psicóloga Angela Duckworth, a garra sempre se sobrepõe ao talento. Isso é música para os ouvidos de qualquer um inclinado a se identificar mais com a pesada tartaruga da fábula de Esopo do que com a rápida lebre. “Nosso potencial é uma coisa. O que fazemos com ele é outra,” ela escreve. Aqui, a garra é a força para melhorar a habilidade e o desempenho pelo esforço consistente. Pessoas de garra estão sempre dispostas a aprender e são guiadas por uma paixão duradoura. Elas aprendem com seus erros, têm senso de direção e levam vidas mais coerentes.

9. “A divina comédia”, de Dante Alighieri (1308–21)
Esse poema do século XIV é a crônica da superação do cansaço espiritual do poeta Dante ao chegar exausto à meia-idade. Guiado por seu mentor Virgílio, ele viaja do Inferno ao Paraíso, onde finalmente reencontra sua amada Beatrice. A epopeia pode ser lida como uma fábula de advertência cristã ou como uma longa fantasia de vingança na qual muitos dos inimigos pessoais de Dante recebem horríveis castigos por seus atos. Mas também pode ser lida como uma história arquetípica de crescimento espiritual e auto-superação. O descrente Dante é sistematicamente reeducado por seus muitos encontros no Inferno, Purgatório e Paraíso. Os habitantes do Inferno mostram a ele como não viver a vida e o preço das más escolhas. Ao final, purgado de suas próprias fraquezas, Dante alcança um plano espiritual mais elevado e contempla o divino.

10. “A Epopeia de Gilgamés” (entre 2100 e 1200 a.C.)
Quase todas as formas de autodesenvolvimento lembram uma missão ou jornada heroica. Essas narrativas mostram o herói ou a heroína se aventurando pelo desconhecido – uma floresta sombria, um reino subterrâneo ou as entranhas de uma criatura. Lá, eles encontram obstáculos e têm de lutar contra um inimigo ou uma tentação. Ao superar esses desafios, eles retornam de suas aventuras transformados e prontos para dividir as lições que aprenderam a fim de ajudar os outros. A mais antiga narrativa desse tipo descreve como o egoísta Gilgamés, rei da Mesopotâmia, retorna de sua jornada com a planta da vida eterna. Mas, ao invés de comê-la sozinho, ele divide a benção com seu povo.