LITERATURA FEMINISTA COMO MISSÃO

Diretora-executiva (interina) de The Feminist Press em Nova York, Lauren Rosemary Hook é responsável pela produção editorial e direitos estrangeiros de uma das primeiras editoras feministas do mundo. A FP acaba de completar 51 anos e ao longo dos anos construiu um catálogo diversificado, altamente politizado e literariamente sofisticado, que conta com nomes de autoras canônicas como Zora Neale Hurston e ativistas proeminentes como Michelle Tea. Lauren, que começou na editora como estagiária há sete anos, CONVERSA COM (A) GENTE sobre sua carreira no mercado editorial e os desafios e recompensas de poder publicar vozes marginalizadas, promovendo a diversidade na literatura americana com títulos como FEBRE TROPICAL (Instante), do colombiano Julián Delgado Lopera, e TASTES LIKE WAR, da coreana-americana Grace M. Cho, finalista do National Book Award a ser anunciado no próximo dia 17. Lauren comenta os livros que a formaram como editora e ativista e sobre seu interesse por literatura estrangeira, tendo publicado autores do Equador, Croácia, Tailândia, Irã, entre outros países: “Eu queria trabalhar com literatura de todas as partes do mundo, ajudar a trazer mais diversidade literária para a língua inglesa e contribuir para dissipar todos os estereótipos que os americanos têm sobre certos países e, ao publicar esses livros, construir pontes e fortalecer conexões.”

VB&M: Quais os desafios e recompensas de trabalhar como Publisher em uma ONG editora sem fins lucrativos com uma missão tão altamente política como a Feminist Press?

LRH: É uma honra ser diretora-executiva interina e editora da Feminist Press, uma das mais antigas casas editoriais feministas do mundo. Acabamos de completar 51 anos este ano. E sim, somos uma “editora sem fins lucrativos 501 C3”, o que significa que nos mantemos não só por meio da venda de livros, mas também por bolsas e doações. Isso nos dá flexibilidade para publicar livros de acordo com a nossa missão e não só com foco na lucratividade. Então, muitas vezes, acolhemos livros que outras editoras poderiam rejeitar por serem “arriscados demais” ou financeiramente inviáveis. Como organização sem fins lucrativos, tudo o que fazemos é baseado na nossa missão, não em tendências de mercado, e as bolsas e doações são fundamentais para esse modelo de negócio editorial. É claro que a condição de ser “não-lucrativo” apresenta desafios, como o ambiente de desenvolvimento em constante mudança, mas as recompensas são muitas. Trabalhar na FP significa ser capaz de publicar consistentemente aqueles autores cujas obras e valores você apoia.

VB&M: Quais foram as experiências que a prepararam para seu trabalho – como editora e/ou diretora de direitos estrangeiros – na Feminist Press?

LRH: Trabalho na Feminist Press há sete anos. Como o tempo voa. Comecei como estagiária e fui promovida ao longo dos anos sob a generosa mentoria de colegas como Julia Berner-Tobin, Jeannan Pannasch, Jennifer Baumgardner e Jamia Wilson. Isso mostra quanto a FP leva a sério os estágios – agora chamados de programa de aprendizes –, e como gostamos de cultivar uma atmosfera familiar entre a equipe e qualquer um que esteja envolvido com a nossa organização. Tive uma sorte incrível não apenas por ter começado minha carreira no mercado editorial na FP, mas por ter crescido na editora e alcançado minha posição atual, agora comprometida a orientar outros que queiram começar nessa indústria.

Falando de maneira mais geral sobre minha trajetória, sou filha de uma leitora voraz e um piloto, o que acredito ter ajudado a me preparar para o trabalho no mercado editorial, particularmente um que envolve tanta literatura internacional e até direitos estrangeiros. Viajar com frequência e ler vorazmente, aprender outros idiomas, me foram muito úteis.

VB&M: Como você define as missões e valores da Feminist Press?

LRH: Primeiro, vou compartilhar nossa declaração de missão: A Feminist Press publica livros que despertam movimentos e transformação sociais. Ao celebrar nosso legado, nós damos destaque a vozes insurgentes e marginalizadas ao redor do mundo para construir um futuro mais justo.

FP começou como um componente editorial crucial para a segunda onda do feminismo. Nossa fundadora, Florence Howe, era professora de inglês da faculdade de Goucher e queria que existissem mais textos literários de autoria feminina para serem lidos nas aulas como parte do florescente movimento de estudos sobre a mulher naquela época. Naquela época, muitas escritoras atualmente conhecidíssimas – Zora Neale Hurston, Paule Marshall, Rebecca Harding Davis – estavam fora de catálogo e não tinham a notoriedade de hoje. Não constavam no currículo do ensino médio nos EUA como agora.

Atualmente, a Feminist Press lança de 12 a 15 livros por ano e é especializada em uma porção de gêneros incluindo ficção de ponta, não-ficção ativista, literatura estrangeira, memórias híbridas, livros infantis e mais.

A FP procura defender trabalhos interseccionais e diferenciados que estimulem o diálogo tão necessário e façam avançar a conversa feminista. As iniciativas editoriais atuais incluem o Prêmio Louise Meriwether para Livro de Estreia, criado para destacar o lançamento de novas escritoras de cor e não-binárias, e a Amethyst Editions, um selo queer fundado por Michelle Tea.

Buscamos não-ficção ativista política e cultural que amplifique nossa compreensão do feminismo interseccional. Gravitamos por histórias orientadas por voz e visão, assim como textos que desafiam seus gêneros literários. Outros tópicos de interesse incluem distopia feminista, justiça ambiental e histórias sobre imigração.

VB&M: Nos últimos anos, muitos títulos sobre questões de raça e gênero foram publicados por grandes editoras americanas, principalmente depois da pandemia. Você percebe esse fenômeno como competição ou como um sinal de vitória próxima? O fato de esse tipo de livro tornar-se comum nas grandes editoras afetaria o foco da Feminist Press?

LRH: O verão de 2020 foi um período de ajuste de contas para o mercado editorial americano, e espero que essas discussões que abalaram a indústria no ano passado continuem a ter impacto significativo por muito tempo. A Feminist Press esteve presente por tempo bastante para atravessar vários ajustes de contas e, ao longo de todos esses anos, nos dedicamos a publicar as vozes mais marginalizadas. Esse mandato deve ser flexível para se adaptar às mudanças do tempo. Aquelas vozes consideradas arriscadas há 10 anos hoje são popularmente aceitas. FP viveu nesse ecossistema por décadas, e conseguimos sobrevivemos por manter nosso foco sempre fora da gente. Independentemente das tendências de mercado e do que as grandes editoras veem como valioso, sempre haverá autores e autoras que por razões sistêmicas enfrentam desafios para ver suas experiências representadas na mídia e conseguir publicar seus livros. É aí que a Feminist Press prospera: nas margens, publicando as vozes mais insurgentes do presente, a fim de inspirar uma nova geração de escritoras feministas.

VB&M: O quão difícil foi o processo editorial de FEBRE TROPICAL, do autor colombiano Julián Delgado Lopera, que venceu o Lambda para Ficção Lésbica e foi publicado no Brasil pela Instante? Nos referimos ao singular espanglês do romance e a ambientação peculiar entre imigrantes colombianos e igrejas evangélicas na Flórida.

LRH: Editar FEBRE TROPICAL foi um prazer. Para ser honesta, foi incrível! Julián Delgado Lopera é um autor brilhante, cuja estrela continua a brilhar, e me sinto muito privilegiada por ter trabalhado com ele, no contexto do selo queer Amethyst Editions fundado por Michelle Tea. Fiquei impressionada com seu uso do espanglês desde a primeira leitura e senti em meus ossos que FEBRE era o futuro da literatura americana. Os EUA têm uma rica história de títulos que fazem uso do espanglês, mas o trabalho de Julián foi além. Felizmente, tenho bom domínio do espanhol, mas meu vocabulário se expandiu imensamente com as gírias usadas pelo Julián. A voz narrativa do romance é singular, como você disse, e inesquecível.

VB&M: Como a Feminist Press descobriu e adquiriu os direitos de TASTES LIKE WAR, de Grace M. Cho, uma verdadeira joia literária que figura na lista curta do National Book Award deste ano?

LRH: Essa história é tão especial. Grace M. Cho enviou seu manuscrito não-solicitado à Feminist Press em 2018, e estávamos no processo de publicação de sua obra em uma edição do nosso jornal acadêmico, WSQ Asian Diasporas. A FP tem como política aceitar manuscritos não-solicitados, e não apenas aqueles representados por agentes, numa tentativa de ajudar a desmantelar a prática homogeneizante da indústria editorial e impulsionar novas vozes feministas. Grace havia publicado um livro acadêmico, HAUNTING THE KOREAN DIASPORA, que ostenta o reconhecimento de várias premiações e uma legião de fãs, mas ainda não fizera uma estreia na literatura comercial. Nos encontramos com Grace pessoalmente e dividimos seu projeto com toda a equipe numa reunião editorial. Todos concordaram que o livro era sensacional e estava alinhado à nossa missão, e o resto é história.

VB&M: Você tem um interesse especial por literatura estrangeira? De quais idiomas e países?

LRH: Com certeza! Entrei no mercado editorial especificamente esperando adquirir e editar literatura estrangeira. Eu queria trabalhar com literatura de todas as partes do mundo, ajudar a trazer mais diversidade literária para a língua inglesa e contribuir para dissipar todos os estereótipos que os americanos têm sobre certos países e, ao publicar esses livros, construir pontes e fortalecer conexões. Trabalhar na Feminist Press me permite combinar minha paixão por ativismo de gênero e por grandes obras da literatura internacional. É um sonho!

Anos atrás, quando fui contratada, a FP publicava apenas um livro estrangeiro por ano, e muitos desses eram escritos por autoras francesas brancas – grandes escritoras feministas cujas obras nos dão orgulho de constarem em nossa lista, mas eu queria expandir o escopo do catálogo. É nossa missão e dever como Feminist Press cavar mais fundo e apoiar obras que vão além do que as pessoas acreditam ser “literatura internacional”.

Agora, nós publicamos cerca de dois ou três livros estrangeiros por ano. Nós já lançamos livros da Tailândia, Equador, Croácia, Irã, Guiné Equatorial, e mais. Conheci tantos tradutores admiráveis ao longo dos anos, e eles sempre trazem os projetos mais interessantes. Para mim, os tradutores são os melhores guardiães da literatura.

VB&M: Quais foram os livros mais relevantes no seu desenvolvimento como editora feminista e ativista?

LRH: Pergunta difícil! Dois livros me vêm à mente, então me limitarei a estes: “This Bridge Called My Back”, editado por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, e “Sister Outsider”, de Audre Lorde. Leituras absolutamente necessárias, são livros aos quais estou sempre voltando.