LONDRES, DEZ ANOS DEPOIS

Anna Luiza Cardoso assina a coluna Narrativas com uma crônica-relato de sua décima participação na Feira do Livro de Londres, onde fez sua estreia em 2012. No texto, traz um balanço de seus dez anos de feiras literárias, incluindo as traumáticas edições pandêmicas, e destaca as principais tendências que percebeu durante o evento deste ano, como a forte presença da literatura feita por e para mulheres sobre maternidade, distúrbios vários e amizade feminina; além da predominância de obras sobre transição de gênero entre as narrativas LGBTQIA+. Anna fala também dos novos clientes que VB&M traz de volta da feira: para o Brasil, a editora feminista canadense Inanna e a editora infantil britânica BookLife. Para Brasil e Portugal, a poderosa editora canadense Québec-Amérique International.

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Este foi meu décimo ano de Feira de Londres, um dos mais charmosos e romantizados eventos literários do circuito editorial internacional. In loco, foram oito, mais as duas edições virtuais pandêmicas que, espero, não se repitam nunca mais. Se tem um trauma que trago da pandemia são os eventos virtuais. Curiosamente, tanto na primeira quanto nesta última vez, fiz a feira sozinha, o que é incomum de forma geral para um primeiro evento desse tipo, e para mim no cotidiano da VB&M há muitos anos. Foi interessante.

De uns anos para cá, quando migrei do olhar extasiado das primeiras feiras para um mais maduro e menos deslumbrado, comecei a compreender melhor seus movimentos, os interesses e tendências que as perpassam, e mais recentemente, seus problemas técnicos. Se os alemães têm se enrolado com a produção e a montagem da Feira de Frankfurt, o que dizer dos ingleses com a de Londres? My goodness, what a mess. A crise dos serviços pós Brexit definitivamente não é ficção. Filas quilométricas, comidas terríveis, o café pior ainda (santa Coca-Cola!), cadeiras mais caras que na praia de Ipanema no auge do verão. Pois assento só tinha quem comprou mesa ou estande e, mesmo assim, não valiam as libras investidas. O wi-fi mal funcionava, tomadas eram escassas, os banheiros escondidos. O Agent’s Center foi espalhado por vários puxadinhos em diferentes andares de um pavilhão belíssimo, porém de circulação nada óbvia e com pouquíssimas escadas, o que torna o ir e vir entre os espaços uma verdadeira sanha. Isso sem falar nos pombos que mais uma vez dividiram o pavilhão conosco, causando pânico_ Amanda Orlando que o diga_ e algumas cenas inusitadas. Desde Poe que pássaros não tinham tamanho protagonismo na cena literária da Inglaterra.

Críticas feitas, vamos às análises. Londres é uma feira menos agitada que Frankfurt, mais curta, no começo do ano_ apesar de já estarmos praticamente no meio dele_, e funciona, a meu ver, como uma abertura de temporada. A maioria dos livros ali apresentados será publicado ao longo do ano, chegando a Frankfurt com vendas de direitos feitas na temporada anterior e já com a recepção a sua publicação em números e mídia. Sinto que Londres é, então, como um aquecimento, o rufar dos tambores. Uma feira de menos resultados imediatos, mais reconhecimento de espaços, momento de plantar as sementinhas do que leremos nos próximos meses os profissionais do mercado, nos próximos anos os leitores finais. É uma feira para se atentar às tendências, que este ano foram bem marcadas.

No geral, mantêm-se os temas que vêm norteando os debates contemporâneos: gênero e raça. No detalhe, porém, percebi nesta feira uma forte presença da literatura feita por e majoritariamente para mulheres acerca dos mais variados assuntos relacionados ao universo feminino, com bastante foco na maternidade em suas mais diversas acepções e pressões, inclusive a não maternidade; em distúrbios os mais distintos advindos da toxicidade de uma sociedade que ainda reifica a mulher em todos os âmbitos possíveis; e nas amizades femininas que ao fim e ao cabo são o que nos sustentam e mantêm de pé.

Alguns exemplos nessa seara, dentre os livros brasileiros, são COMO SE FOSSE UM MONSTRO, de Fabiane Guimarães (Alfaguara), história de uma barriga de aluguel e da relação de duas mulheres com a maternidade; SORTE e EVA, de Nara Vidal, o primeiro passado no Brasil, terra de memórias e ilusão, na primeira metade do século XIX, narra a história de duas mulheres, uma imigrante irlandesa e uma escrava, cujas gravidezes afrontam a sociedade católica opressora em que vivem; o segundo um mergulho reflexivo na complicada relação entre uma mãe e uma filha e suas consequências na vida desta; e A MALDIÇÃO DAS FLORES, de Angélica Lopes, uma história de família e amizade feminina contada através dos pontos de renda.

Dentre os estrangeiros, WHY MUMS DON’T JUMP, de Helen Ledwick, sobre o tabu da incontinência urinária pós parto; DOUX BORDEL, de Andrée-Anne Brunet, monólogo de uma mãe para seu bebê durante seu primeiro ano de vida juntos; o infantil LITTLE LOVE LESSONS, da ilustradora brasileira radicada na Irlanda Tarsila Krüse, diário ilustrado de sua experiência de maternidade para novas mães; (M)OTHERING: AN ANTOLOGY, editada por Anne Sorbie e Heidi Grogan, coletânea de ensaios sobre o que significa gerar um ser humano; e THELMA, de Caroline Bouffaut, breve e poderoso romance sobre auto estima e imagem corporal, história de uma adolescente que supera a anorexia por meio do esporte.

No âmbito da literatura LGBTQIA+, notei uma predominância de obras sobre o processo de transição de gênero, como THE STORY OF MY LIFE ONGOING, auto ficção sobre a juventude não binária e intersexual da premiada escritora Candas Jane Dorsey, de quem aliás representamos praticamente toda a interessantíssima obra literária; e HEAVENLY CONDITIONS, de Henri Maximilian Jakobs.

Há muitos outros títulos que dialogam com essas tendências apontadas e que poderia destacar aqui, mas acabaria por transformar minha reflexão numa listagem de obras interessantes mas inacessíveis ao leitor brasileiro em geral. Poupá-los-ei. Essa lista farei diretamente aos editores que podem querer publicá-los. Ao leitor curioso pelo universo editorial, deixo minhas percepções e a palinha do que se verá nas livrarias nos próximos anos.

Para a VB&M, o principal trabalho em Londres é, de um lado, espalhar a palavra dos nossos livros e autores brasileiros; de outro, pinçar o que há de mais especial nos catálogos de nossos clientes. O bônus é sair da feira com novos contratos de representação de editoras e agências estrangeiras. Este ano o bônus foi triplo: voltamos de lá com dois novos clientes para representação no Brasil e um para representação no Brasil e em Portugal. Para o Brasil, a editora feminista canadense Inanna, que tem um potente catálogo de literatura de gênero, e a editora infantil britânica BookLife; para Brasil e Portugal, a poderosa editora canadense Québec-Amérique International, que tem um sensacional catálogo de literatura adulta e juvenil, tanto na ficção quanto na não ficção.

Dez anos depois, volto de Londres com a mala mais leve de brindes literários (a maturidade chega também para a muambeira do livro) e com a mesma certeza da primeira vez: estou fazendo com minha vida exatamente o que eu queria dela.