Narrativas & Depoimentos traz um conto delicioso de Marcel Novaes, que primeiro saiu na recém-criada revista literária Unamuno e agora aqui para o seguidores do blog da VB&M: “Ninguém dança melhor que Maicon Jéquisson” acompanha a conversa do jovem Maicon, batizado em homenagem a Michael Jackson, com sua amiga Letícia, na qual os dois pré-adolescentes ponderam com a graça infantil que ainda guardam sobre raça e classe. Além de autor de excelentes livros de popularização histórica como O GRANDE EXPERIMENTO (Record) e DO CZARISMO AO COMUNISMO (Três Estrelas), Marcel é ficcionista de mão cheia com dois romances já finalizados, embora ainda inéditos, e contos publicados em diferentes canais.
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Em 1996, Michael Jackson veio ao Brasil, gravar cenas para seu novo clipe. Visitou o morro Santa Marta, no Rio de Janeiro, e também o Pelourinho, em Salvador. Apareceu na televisão sem parar. Foi por ocasião desse evento que Maicon finalmente ficou sabendo que tinha esse nome em homenagem ao cantor, o rei do pop.
Havia um disco de Jackson em sua casa, que seu irmão ouvia de vez em quando. A capa tinha um fundo branco e um homem de jaqueta preta que o encarava fixamente. Ele tinha um pouco de medo daquele homem. A música preferida do seu irmão era uma que dizia ai-bé, ai-bé, alguma coisa, e depois: rus-bé! Maicon gostava da música, mas achava graça da dança esquisita que o irmão fazia enquanto ouvia.
Não fazia sentido que seu nome fosse o mesmo daquele cantor. Afinal, na capa do disco estava escrito Michael, e não Maicon. É que em inglês eles não falam do jeito que escrevem, explicou sua mãe. E ele viu que aquilo era verdade ao reparar que, quando na televisão mostravam o cantor e mencionavam seu nome, diziam mesmo Maicon Jéquisson, ou às vezes Maicou ou Maiquel. Concluiu que teve sorte ao ser nomeado com a mais bonita dessas três possibilidades.
Quando Letícia veio chamá-lo para brincar, ele já saiu perguntando se ela sabia quem era Maicon Jéquisson. É óbvio que eu sei, disse ela, todo mundo sabe, imagine se existe alguém que não sabe quem é o Maicon Jéquisson, até no Japão as pessoas conhecem ele. Eu acho que ele é mais famoso que o Pelé.
Não é não, objetou Maicon. É sim, respondeu ela com segurança.
Caminhavam pela rua, sem que ninguém prestasse atenção a eles. Antes que ela começasse algum assunto, ele contou a novidade: minha mãe me chamou de Maicon por causa dele, sabia? Nós temos o mesmo nome. Achou que ela fosse ficar impressionada, mas Letícia não deu muita importância.
— Não é o mesmo nome.
— É, sim.
— O seu é Maicon, o dele é Michael, o seu nome é brasileiro, o dele é americano. Totalmente diferente.
— Mas o som é o mesmo.
— O som até pode ser parecido, um pouco, mas o que importa é como se escreve.
Ele deu alguns passos olhando para o chão, chateado. Até que ela completou:
— Mas Maicon também é bonito.
E em seguida:
— Pelo menos, eu acho.
Maicon olhou para ela, sorrindo, mas Letícia não olhou para ele, estava concentrada em amarrar o sapato que tinha se desamarrado. O tênis de Maicon nunca desamarrava, nunca mesmo, porque ele dava um nó duplo nos cadarços, apertado com toda a força. Para descalçar, pisava com cada um dos pés no calcanhar do outro. Letícia evitou seu olhar porque estava com vergonha de ter dito que ele era bonito, ou que seu nome era bonito, mas disso Maicon não sabia porque seu entendimento sobre o que outras pessoas sentiam, especialmente meninas da sua idade, era muito precário.
Perguntou a ela onde é que estavam indo, afinal. Ela disse que queria lhe mostrar uma coisa. Que coisa? Perguntou. Uma coisa, ela disse, você vai ver.
— Você gosta do Maicon Jéquisson? Meu irmão tem o disco dele. Viu ele dançando na televisão? Nossa, ele dança bem pra caramba. Meu irmão diz que ninguém dança melhor que o Maicon Jéquisson.
— Eu gosto mais ou menos. Quem não gosta nem um pouco é o meu pai. Diz que é porque ele era preto e quer virar branco.
Aquilo era novidade para Maicon. Sempre achara que a cor da pele de uma pessoa era fixa, a não ser quando alguém tomava muito sol, porque nesse caso a pele ficava mais escura, ou vermelha em alguns casos. Mas depois de algum tempo sempre acabava voltando a ser como era.|
— Tem como um preto virar branco?
Ela não respondeu na hora, precisou pensar um pouco. Afinal disse que não tinha certeza, mas que provavelmente era possível, só que devia ser muito, muito caro.
— O Maicon Jéquisson é rico, umas das pessoas mais ricas do mundo, e pode pagar por tratamentos muito caros, que a gente nem conhece, coisas que a gente nem tem aqui no Brasil. Com o dinheiro que ele gasta em cremes para a pele, você podia até comprar um carro.
— Caramba.
— Ou pelo menos uma moto.
Maicon se lembrou de sua mãe comentando que o cantor sofria com uma doença rara de pele, que o deixava manchado. Mas Letícia disse que isso era mentira, só uma desculpa que ele dava para poder ficar branco. Você não reparou no nariz?, perguntou ela, ele tem um nariz fininho, é óbvio que operou para ficar daquele jeito.
O menino também não sabia que era possível operar o nariz para deixá-lo fininho. Devia ser muito caro, o preço de uma casa.
Viraram uma esquina e Maicon perguntou se a coisa que ela queria mostrar ainda estava longe. Não, já está chegando, disse ela, é ali na água fedida.
A água fedida era um esgoto que corria a céu aberto, dentro de uma vala. O líquido mal cheiroso escoava devagar e era meio cinzento, decorado por manchas coloridas e atulhado de todo tipo de lixo que os moradores atiravam por ali. Todos os pais repetiam aos filhos que ficassem longe, recomendação que quase não era necessária, pois a maioria tinha nojo.
— Se você ganhasse muito dinheiro, ia querer virar branca? — perguntou ele. Ela ficou alguns segundos pensando.
— Não sei. Talvez. Quem você acha mais bonitas, as pretas, as brancas ou as mulatas?
Maicon levantou os ombros.
— Depende. Tem brancas bonitas e feias, pretas bonitas e feias, mulatas bonitas e feias. Cada uma é de um jeito.
Ele poderia ter dito que a cor mais linda do mundo era exatamente a dela, mas perdeu essa oportunidade.
— E você, ia querer ser branco?
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— De jeito nenhum. Se eu fosse branco, não ia jogar futebol tão bem.
O assunto foi interrompido com a chegada à água fedida. Estavam a uns três metros de distância, separados da vala por mato, mas o cheiro já incomodava. Se soubesse que Letícia pretendia trazê-lo ali, teria recusado desde o começo. Ela virou à direita e seguiu o curso da água. Maicon perguntou de novo o que ela queria lhe mostrar. Você vai ver, ela respondeu, e continuou andando.
Depois de uns cinquenta metros, ela parou. É aqui, disse, e se embrenhou no mato. Ele foi atrás, sentindo uma ponta de irritação. Mesmo que não houvesse nenhuma aranha por ali, nenhuma cobra, o que era uma possibilidade real, ficaria com as canelas coçando por causa do capim.
Atravessado o mato, chegaram à beira da vala. Lá no fundo, o asqueroso riacho, fedido como nunca.
— Ali — disse ela, apontando com a mão.
Ele procurou o alvo da atenção de Letícia. Seria aquele saco de lixo azul, todo rasgado? Não era. O pneu? Também não. Acabou percebendo, junto à água, a carcaça de um cachorro morto. O bicho tinha a pelagem branca muito encardida e cheia de falhas, e estava deitado com a boca aberta. Maicon nunca tinha visto um cadáver de cachorro.
— Vamos até lá — disse ela, dando um passo à frente.
O menino tentou segurá-la pelo braço, mas ela escapuliu e desceu, com cuidado. Ele achou que não tinha opção senão ir atrás dela. Chegaram bem perto e o cheiro ficou muito mais forte.
— Letícia…
— Nós já vamos.
A língua do cachorro caía para fora da boca aberta. Podiam ver seus dentes, alvíssimos, cobertos de baba seca. Maicon tinha medo de cachorros de rua, nunca jogava pedras neles como outros meninos faziam.
— Será que ele morreu porque bebeu a água fedida? — perguntou ele.
— Óbvio que não.
— Como você sabe?
— Cachorro sente o cheiro das coisas, eles nunca comem nada que faz mal. Nem bebem.
— Não é verdade, eu já ouvi falar de cachorro que foi envenenado.
Uma mosca pousou no focinho do bicho. Maicon sentiu pena, porque o morto não podia espantá-la. Coçou o nariz, num reflexo. Não ia querer uma mosca pousando ali. A mosca caminhou pelo focinho e depois foi até o olho. Quando ela passou por cima do olho, que estava aberto e embaçado, Maicon fechou os próprios olhos com força, aflito.
Letícia quebrou um galho seco e cutucou a barriga do cachorro. A mosca voou.
— Não faz isso!
— Está morto, seu bobo, você tem medo de cachorro morto?
Não era medo, era um respeito instintivo, uma cautela fundamental. Maicon intuía que algumas atitudes não deveriam ser tomadas nunca: apertar o gatilho de um revólver, mesmo descarregado; xingar a mãe, mesmo quando ninguém está ouvindo; cutucar um animal feroz, mesmo morto.
Vamos embora, disse ele, e estava decidido a ir sem ela. Letícia percebeu sua determinação e jogou o galho na água. Durante a subida, estendeu a mão para ajudá-la. A mão dela ficou na sua até estarem de volta à rua. Maicon achou que ela gostaria de se ver livre o quanto antes, então relaxou os dedos, mas se surpreendeu ao perceber que Letícia preferia não soltar. Caminharam de mãos dadas. A mão era quente.
Ela sugeriu que voltassem por um caminho diferente, e ele aceitou sem dizer nada, com medo de que qualquer palavra perturbasse o momento. Logo depois mudou de ideia e decidiu que era preciso dizer alguma coisa.
— Nunca tinha visto um cachorro morto.
— Eu também não.
— É fedido pra caramba.
— É.
— Você quer ir lá em casa ouvir o disco do Maicon Jéquisson?
— Quero.