MELHOR ESTAR NO NEGÓCIO DO LIVRO DO QUE NO DA AVIAÇÃO

Texto apresentado na Festa Digital do Livro, promovida pela Fundação Joaquim Nabuco no dia 23 de abril.

MELHOR ESTAR NO NEGÓCIO DO LIVRO DO QUE NO DA AVIAÇÃO

Por Luciana Villas-Boas

 

A crise sanitária e econômica provocada pela pandemia da Covid-19 atingiu todos os setores e aspectos da vida humana; o meio literário e a indústria do livro não ficariam imunes. Ainda que se descubra a improvável curto prazo vacina ou medicação para a síndrome virótica, a vida social e econômica terá que se adaptar ao conhecimento que, nestes primeiros meses de 2020, adquirimos sobre riscos epidêmicos enfrentados pela humanidade. O trauma destes meses em que no mundo inteiro toda gente teve de se confinar em suas casas não permitirá que o aprendizado seja rapidamente esquecido.

Para a indústria do livro, a adaptação tornou-se premente, inapelável e inadiável. Curiosamente, uma indústria que vinha sendo convocada a se reinventar há mais de 20 anos, mas que revelava dificuldade de desapegar de velhos modos e processos, praticamente ceifados em março, quando o Coronavirus começou a se espalhar pela Itália.

O que a tecnologia digital, contra todas as previsões, não conseguiu realizar foi fácil para a Covid- 19: o fim de grandes feiras do livro. Quando comecei a trabalhar no mercado editorial, em 1995/96, já se falava de uma crise do livro de papel, a ser substituído – imaginem que bola fora em termos de prognóstico – pelo CD-Rom, mas principalmente comentava-se o iminente fim das feiras literárias de negócios, que estariam se tornando irrelevantes diante da rapidez da comunicação digital – de início o e-mail e, na primeira década do século 21, o envio de originais por pdf. Os encontros presenciais de negócios e apresentação de originais e projetos literários não seriam mais necessários, dizia-se na época.

Entretanto, as feiras literárias de negócios e também de público só cresceram ao longo do século XXI. A Feira de Literatura Infanto-Juvenil de Bolonha, inaugurada em 1963, teve comparecimento recorde em 2019 reunindo quase 30 mil visitantes. A Feira do Livro de Londres, estritamente para profissionais, tem reunido cerca de 25.000 pessoas nos últimos anos, mas quando a visitei pela primeira vez, em 1996, era um evento ainda pequeno, eu, a única brasileira presente. A mega e mais antiga feira de livros do mundo, em Frankfurt, que abriu portas pela primeira vez no século 15 e que desde 1949 é maior a cada ano, congregou 302.267 visitantes em 2019, quando celebrou seu septuagésimo aniversário.

Em 2020, Bolonha e Londres já não aconteceram. O encontro em Londres abriria dia 10 de março, mas foi cancelado na semana anterior, transtornando os negócios de milhares de profissionais do mundo todo, que haviam contratado e pago passagens aéreas, stands e mesas no centro de agentes. O transtorno seria muito maior se os organizadores houvessem insistido na realização da feira. Àquela altura, primeira semana de março, com a Itália conflagrada pelo vírus, a feira de Bolonha já fora transferida de abril para maio antes de ser cancelada definitivamente para 2020. A organização da Feira do Livro de Frankfurt ainda não se manifestou sobre a edição deste ano, programada para outubro, mas não acredito que o evento venha a se realizar – ainda que a primeira parte dos pagamentos por espaços de stands e mesas de agentes já tenha sido feita.

Para quem não atua diretamente no mercado editorial, é difícil imaginar a centralidade dessas feiras no calendário de editoras e agências literárias. Vi crescer o tamanho das equipes enviadas aos eventos pelas grandes editoras brasileiras; na virada do século eram duplas formadas pelos proprietários das empresas acompanhados no máximo de um editor executivo. Nos últimos anos, as maiores editoras compareceram com grandes times de profissionais. Editores médios e pequenos se empenham para participar, muitas vezes se organizando para concentrar o investimento anual em originais estrangeiros na época da feira.

Agora, estamos diante da questão: quem há de querer desafiar os bolsões viróticos que, sob comprovação científica, existem no Hemisfério Norte, prontos a explodir a cada estação de outono/inverno, encarando aeroportos lotados e longos voos, a fim de dividir espaço, no caso da Feira de Frankfurt, com centenas de milhares de pessoas, e fazer muitas dezenas de reuniões tête- à-tête no espaço de cinco dias? Autoridades europeias já anunciaram que pessoas acima de 60 anos devem permanecer em isolamento pelo menos até o fim deste ano. Correr esse risco, para quê?

Há décadas novos originais promissores não esperam as datas de feiras para serem submetidos à análise dos editores internacionais. No mesmo período em que as feiras se expandiram, cresceu no mundo todo uma rede de profissionais chamados scouts, que, com um cliente por país, investigam o que de interessante possa estar pousando nas mesas de editores nos Estados Unidos, Grã- Bretanha, França e em outros territórios. Fazem relatórios sobre seus achados tanto em termos de conteúdo literário como de aspectos mercadológicos, emitindo opiniões sobre a pertinência da contratação de cada projeto.

No passado, eu mesma, que compareci a Frankfrut de 1994 a 2019 sem a quebra de um único ano, tinha a crença de que as feiras jamais se extinguiriam. Dizia que o livro se difere de outros gêneros da criação artística por ser impenetrável à apreciação em um curto espaço de tempo. As artes plásticas podem ser apreciadas imediatamente, assim como a música; o teatro, a ópera e o cinema exigem algumas horas. O livro pede do leitor entrega de no mínimo meia hora para ele avaliar se deve investir dias ou semanas em sua completa fruição. A única maneira de decidir sobre o que publicar em um plano industrial, com conhecimento de causa do produto que se está adquirindo e que será oferecido no mercado, driblando a demanda de tempo típica do livro, era – acreditava eu

– ouvir, se encontrar, estar com interlocutores de confiança no meio literário ou apurar informações nas reuniões sociais dos grandes eventos como Bolonha, Londres e Frankfurt.

Lembro-me do já falecido editor Sérgio Machado, da Record, dizer que a ausência em Frankfurt sinalizava mal para a reputação de uma empresa do livro. No entanto, os dias de quarentena, quando as reuniões marcadas para as feiras foram compensadas pelo Skype, Facetime ou WhatsApp, já provaram que a tecnologia digital substitui muito a contento o encontro presencial, e tudo indica que a suposta obrigatoriedade de comparecimento não sobreviverá à Covid-19.

Não é só o fim das feiras literárias que mudará a natureza do negócio editorial. Discorro sobre esse ponto justificando o título dessa exposição: organizadores de conferências e feiras internacionais, concertos e outros eventos que congregavam milhares de pessoas do mundo todo, assim como companhias de aviação, com jatos capazes de transportar centenas de pessoas parqueados nos aeroportos e previsão de falência para os próximos meses, com um efeito quase lockdown de viagens pelos próximos anos, têm um desafio de adaptação de seus modelos de negócios infinitamente maior do que os editores.

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O mercado editorial diminuiu o ritmo, mas não parou. Desde o inicio da crise conseguimos vender livros brasileiros para o exterior. De nosso ângulo restrito, arrisco enxergar duas tendências: busca por títulos com mensagens positivas, que ajudem a se ter um olhar otimista sobre a vida, ou por narrativas de momentos dramáticos atravessados pela humanidade, que ponham a tragédia que vivemos em perspectiva histórica.

Por exemplo, a VB&M, agência que dirijo, vendeu para a Polônia os direitos de tradução do romance de Luize Valente, SONATA EM AUSCHWITZ, e o título dispensa explicações. Para Portugal, foi O MAL SOBRE A TERRA, original tratamento histórico do grande Terremoto de Lisboa, de 1755, escrito por Mary del Priore. Na ponta do otimismo, editoras da Turquia e da Coreia do Sul contrataram LIBERDADE, FELICIDADE E FODA-SE, de Mirian Goldenberg. Houve ainda a venda de A MÃE DA MÃE DE SUA MÃE E SUAS FILHAS, de Maria José Silveira, para uma editora chinesa, assim que foram anunciadas medidas de relaxamento do isolamento social na China, o que nos pareceu auspiciosa sinalização e nos encheu de alegria.

Tampouco no Brasil a vida parou. Participamos ativamente do projeto de podcasts de contos VAI FICAR TUDO BEM, da Storytel, de áudio-livros. Contratos foram executados, pagamentos feitos tanto de royalties por vendas de livros no Brasil como de adiantamentos.

Todo respeito e admiração pelo editor brasileiro que cumpre seus compromissos enquanto enfrenta crises dolorosas uma atrás de outra desde muito antes da pandemia. Crises que vão além do desafio de publicar livros para uma sociedade com baixo índice de leitura por cidadão.

O relatório Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, da Fipe com a CBL e o SNEL, as duas entidades do mercado, apontou em seu último número a quinta retração anual de 2013 a 2018. Mas o primeiro grande baque foi em 2015, quando Dilma Roussef anunciou um calote nas compras de livros feitas pelo governo. Não só os programas de aquisições seriam suspensos, como o governo não pagaria por livros já impressos para atender compras passadas. Àquela altura, 25% da indústria do livro dependiam do segmento governamental. Muitas editoras haviam desenvolvido departamentos para disputar o filão e atender ao MEC. Para algumas, o governo representava 75% da receita.

Os editores vinham de um falso boom, na verdade uma bolha, que os levara a disputar ferozmente originais, sem, na verdade, ampliação da base de leitores. No jargão do meio, estavam todos “comprados”. Isto é, tinham títulos, muitos adiantados em dólar, suficientes para mais de 30 meses de programação. Os anos de 2015 e 2016 foram de muita demissão, enxugamento radical das editoras, raríssimas contratações de novos livros e diminuição acentuada das carteiras de lançamentos.

Quando se pensava estar a caminho da normalidade, na segunda metade de 2017, sinais perturbadores começaram a ser captados nas relações dos editores com as duas maiores redes de livrarias brasileiras, Cultura e Saraiva. Foi a vez delas darem o cano nos editores deixando abertas contas milionárias a pagar com Companhia das Letras, Planeta, Record, Rocco, Globo, Autêntica, Sextante, Intrínseca – todas as grandes casas. Árduas batalhas marcaram 2018 até se chegar aos acordos de recuperação judicial das duas livrarias. Em 2019, apontou a esperança de retomada de pagamentos, mas o sonho acabou logo após a primeira semana de quarentena com o anúncio pelas duas redes de que não cumpririam seus compromissos com os editores credores.

Por que retomar a lista de pragas não do Egito, mas do Brasil mesmo, que se abateram sobre os editores brasileiros? Para mostrar que a necessidade de renovação da indústria editorial já estava dada antes ainda da pandemia. Os últimos passos da dança entre as duas livrarias e os editores, para qualquer bom observador, já tinham o tom de “me engana que eu gosto”. Os principais canais de vendas de livro no Brasil evaporaram ao longo dos últimos cinco anos. No mundo todo, as grandes lojas físicas haviam sido abaladas pelo e-book e pela Amazon. De agora em diante, serão inviáveis porque o número de público que exigem para pagar custos de pessoal e aluguel em shoppings e outros grandes espaços vai se constituir em um impedimento sanitário.

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A primeira vez que vi a ideia de que o livro, por sua própria natureza, seguia na contramão da vida contemporânea foi em um belo artigo de Marilena Chauí do início dos anos 90. A filósofa realçava a questão do tempo demandado pela leitura. Mas há um outro aspecto da natureza do livro que tornava difícil o seu consumo até poucos meses atrás e hoje se configura um imenso facilitador. O livro e a leitura praticam o isolamento social.

Todas as outras artes têm forte dimensão coletiva ou social. Pensemos em exposições em museus e galerias, concertos de música popular ou erudita, peças de teatro e filmes: a fruição do espetáculo tende a ser coletiva ou familiar, como, aliás, acontece com todos os tipos de esporte.

No caso do livro, mesmo quando leitores se reúnem em grupos de leitura, chegam em geral com o texto lido. A produção e absorção da obra são irredutivelmente individuais. Ao longo da vida, observei que o livro causa problema para casais com hábitos de leitura distintos, mais frequentemente quando a mulher é leitora, e o marido, não. O homem tende a ter ciúme do tempo dedicado pela mulher à leitura, é a dimensão dela totalmente incontrolável por ele, sentimento agravado pelo fato de desconhecer e temer aquela relação entre o leitor e a narrativa.

Enquanto exposições e concertos, para não falar de idas ao cinema e ao teatro, estarão severamente comprometidos pelos próximos anos, a leitura vem florescendo na quarentena. No círculo de pessoas com quem estou em contato, a maioria já leu mais do que leria em tempos normais e muitas compraram livros em quantidade que talvez não comprassem.

Aquela história de que toda crise embute uma oportunidade é um clichê e, como tal, meio irritante, mas o fato é que o doloroso isolamento social que nos foi imposto pode favorecer no Brasil a ampliação da base de leitores. Claro que o negócio do livro vai diminuir, mas isso já estava colocado na mesa quando a rede digital foi inundada por títulos de todo tipo – no Brasil, principalmente autores nacionais autopublicados, desvalorizando – pela oferta incomensurável e sem filtro de originais desqualificados – o trabalho de selo conferido pelas editoras.

O fato é que quase todos os negócios vão diminuir. O consumo de quase tudo – viagens, festas, roupas e artigos de luxo – vai diminuir. Qual será a graça da ostentação – motor de boa parte do consumo no capitalismo tardio – quando esta só pode se dar virtualmente? Infelizmente, é possível que a população do globo também diminua muito. Mas tecnologia digital não vai diminuir. Pesquisa em medicina e ciência não vão diminuir. Talvez, a leitura se amplie. Ainda terá a favor a valorização social do cientista, grande herói que poderá nos salvar. Será a valorização do saber que só se conquista com muito tempo de biblioteca.

Grandes empresas multinacionais do livro atuam no Brasil como Planeta, Penguin Random House e Harper Collins, entre outras, por isso é impreciso falar de editor brasileiro. Digamos que os profissionais da edição que atuam no Brasil não podem adiar por um dia sequer a mudança profunda de seus modelos de negócio – desde a captação de originais até e principalmente a distribuição de seus livros. É bem possível que as tiragens diminuam, mas a verdade é que durante anos os editores publicaram em larga escala, mas não receberam das grandes livrarias. Melhor seria se tivessem lançado menos.

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Sacerdotes de todas as religiões mandam mensagens assegurando que com essa crise caminhamos para um mundo melhor, mais solidário. Quem sabe se, no mundinho do livro brasileiro, editores e pequenos livreiros não possam trabalhar mais em parceria. Por Elisa Ventura, proprietária da mini cadeia Blooks, soube por exemplo de pequenas livrarias que, nesta quarentena, estão vendendo por site e telefone, mas no caso de livro da Companhias das Letras a entrega do exemplar ao cliente fica por conta da editora. Mais ainda, a Companhia não exige que a livraria tenha o livro em estoque. Isso é parceria. É preciso que editores e livreiros encontrem uma solução digital para a venda de seus livros – o e-commerce –, que possa competir minimamente com a Amazon.

Durante décadas, os editores se digladiaram por originais que julgavam potenciais best-sellers – muitas vezes não o eram – mas, estranhamente, não se preocupavam em conhecer seus leitores. As mídias sociais mudaram esse quadro, principalmente no que toca ao público jovem, mas agora o trabalho de interlocução com o cliente tem que se expandir muito mais, alcançando também aquele número significativos de leitores que não usam Facebook e Instagram, mas podem ser alcançados por e-mail, whatsapp ou o velho telefonema.

Se o Brasil sobreviver à pandemia, nenhum governo poderá adiar mais a entrega ao povo de Educação e Saúde de qualidade explorando intensamente as tecnologias digitais. Na área cultural, aguardaremos sugestões criativas de promoção da leitura, como esta Festa Digital do Livro, clubes de leitura à distância, formação literária de professores e tantas atividades possíveis com custo inferior às grandes feiras presenciais. Estas vão acabar ou diminuir muito, o que é um trunfo a menos para o autor brasileiro, mas ele contará sempre com a nossa bela língua portuguesa para se comunicar virtualmente com seus leitores, uma vantagem sobre os escritores estrangeiros.

O livro deixará de ser incompatível com a vida contemporânea. Isolado, o leitor estará em paz com as demandas da sociedade. Com menos dedicação à vida social e desgaste em transporte, porque o home office acabará normalizado, haverá mais tempo para a leitura. A experiência dessa quarentena assustadora revelará que os leitores de livros são capazes de atravessá-la melhor do que aqueles agarrados a Instagram e Facebook, absorvendo e transmitindo compulsivamente emoções negativas e caindo em patéticas fake news. O editor aprimorará seu trabalho, e a oferta literária será cada vez mais de melhor qualidade. A busca do conhecimento será mais intensa e valorizada. O livro não morrerá no mundo ou no Brasil. O livro não morrerá.