MERGULHANDO EM FRANCISCO AZEVEDO

Escritor, editor e jornalista, Alexandre Staut revela sua FRASE SUBLINHADA na primeira página do encantador A ROUPA DO CORPO (Record, 2020), de Francisco Azevedo, seu colega de agência. Ele explica: “Vários livros da minha biblioteca têm suas primeiras frases ou aberturas grifadas. Em romances, principalmente, a primeira frase me dá uma pequena amostra do tom da narrativa. Se para alguns leitores a capa, o texto de orelha ou da quarta capa têm papel de seduzir (ou não), para mim o trecho inicial é decisivo.

Talvez essa obsessão venha do tempo em que fui jornalista. Demorei a aprender a fazer um lead que trazia informações de forma sintética ao mesmo tempo em que carregava o leitor pelas mãos e passei a estudar leads de maneira informal.

Sobre o trecho de Francisco Azevedo – eu poderia grifar livros inteiros seus, não apenas primeiras frases –, escolhi a abertura de A ROUPA DO CORPO (Record, 2020), pela maestria e delicadeza com que introduz seus personagens e pelas pistas que dá sobre o que virá pela frente, deixando no ar certo mistério que não nos dá outra opção a não ser mergulhar na leitura.”

“Os que, com a cara e a coragem, juntaram os trapos e foram em frente. Os que, por amor e teimosia, se deram a conhecer e, bem ou mal, se acertaram. Se tão desiguais, como se entendiam? Ela, costureira, franzina, pele clara, sempre às voltas com os panos. Ele, pescador, corpo maciço curtido pelo sol, pouca roupa, quase nenhuma. Ela, água. Ele, vinho. Eu? Porções bem dosadas de um e de outro — mistura sagrada e, ao mesmo tempo, degenerada: vinho fraco, água impura. Fazer o quê? Cada um me enfeitiçava do seu jeito. Na simplicidade, nos contrastes. No trato com a vida e com as pessoas. No trato comigo, único filho — os dois juntos em um só copo, em um só corpo. O teor de minha mãe prevaleceu na infância. O de meu pai, na adolescência. Até que, de repente, alheias e inesperadas poções me foram acrescidas, causando espanto.”