MUSSA NA ESTIRPE LITERÁRIA CARIOCA

No blog da VB&M, a notícia em primeira mão, muito quente, verdadeiro furo de jornalismo literário, é sobre o romance que Alberto Mussa promete terminar até janeiro de 2022: FANTÁSTICO DESFILE DA ESCOLA DE SAMBA FLORESTA DO ANDARAÍ. Generosamente, em plena temporada de lançamento do ensaio A ORIGEM DA ESPÉCIE, Mussa ofertou três fragmentos do “Preâmbulo” e dos primeiros capítulos do livro à coluna Narrativas e Depoimentos.

Passado em 1974 com breves flashbacks a 1961, FANTÁSTICO DESFILE vai configurar a primeira incursão do autor à segunda metade do século XX, depois de uma obra que privilegiou a reconstrução de épocas remotas. O protagonista é o detetive particular Domício Baeta, descendente do sensual investigador de O SENHOR DO LADO ESQUERDO. A narrativa envolve, é claro, um assassinato e a biblioteca da tradicional família Baeta do Grajaú – de repórteres de polícia, oficiais de justiça, um advogado de defesa e professor de Direito, médica legista, redatora do programa radiofônico Cidade Bandida, até um juiz, por afinidade; portanto, tudo gente muito próxima do crime.

Pelos fragmentos, é evidente que vem aí mais uma obra-prima de um legítimo representante da escola literária do Rio de Janeiro fundada por Machado de Assis, perpetuada em Lima Barreto e depois adotada pelo pernambucano de nascimento e alma carioca, Nelson Rodrigues. A melhor estirpe.

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fragmento 1

[ do preâmbulo ]

A grande reviravolta veio depois, quando Domício, exonerado de duas ou três repartições, resolveu tirar licença de detetive particular. Cumpria, assim, daquele modo pusilânime, o destino da família.

É esse o cenário que o leitor encontra, em 1974, quando a história começa. Haverá talvez quem pense que este longo preâmbulo pretenda antecipar os conflitos existenciais de Domício Baeta, os embates entre seus impulsos atávicos e sua formação erudita.

Não é o caso: o romance não analisa personagens, não trata exatamente de indivíduos. Eles são, aqui, representantes circunstanciais da espécie humana.

Embora haja crime, e haja mistério, o verdadeiro tema desta história são as outras histórias: é na verdade o conteúdo dos volumes daquela velha biblioteca que existiu na rua da Borda do Mato, no número 63.

O assassino, certamente, também lia aqueles livros.

fragmento 2

[ princípio do livro ]

Não sei se se pode chamar de sorte o fenômeno que envolveu Domício Baeta naquela quarta-feira, 9 de janeiro. O romance o surpreende no princípio da noite, voltando do escritório, depois de revelar certas fotografias (exuberantes, explícitas, comprometedoras) onde aparecia uma mulher casada.

Foi talvez por isso que decidiu saltar dois pontos antes e subir o morro do Andaraí, para ir ver a Donda, moça com quem andava saindo desde meados do ano anterior.

Como se sabe, o verão, sob o trópico, é cruel. E Domício, depois de galgar quase toda a ladeira da Ferreira Pontes, resolveu dar uma parada na tendinha do Biro, na intenção de uma gelada.

Conheço Domício (digamos) parcialmente: porque ninguém conhece a si mesmo. Mas posso afirmar que esse pretexto da gelada, que adiava seu encontro com a Donda, se deveu também a um segundo intento: sondar a razão de haver dois carros de polícia estacionados naquela altura da ladeira, onde a passagem entre as casas começava a se estreitar, impedindo que um veículo entrasse e fizesse, depois, a manobra.

fragmento 3

Era aquela, a rotina: o detetive saía de casa, pegava o 226, sentava no banco de trás e descia na Saenz Peña. Durante o trajeto, lia. E, na praça, antes de caminhar para o escritório, tomava café num balcão de botequim; comprava jornais e um maço de cigarros; e apostava 20 cruzeiros no bicho.

A circunstância de haver certa ordem, certa circularidade naqueles movimentos, não implicava monotonia nem falta de emoção: porque os livros mudavam; e o palpite nunca era o mesmo. Naquele dia, Domício Baeta carregou tudo no Tigre.

Não descreverei o jogo — que constitui, em si, uma ciência exata. Basta saber que se trata de um simples sorteio de números; e que cada número corresponde a um bicho, segundo certa fórmula matemática.

Para o romance, importa mesmo é conhecer quem joga; ou melhor: o tipo humano de quem joga — porque desse tipo humano se obtém Domício.